Remédio para enjoo pode gerar sinais de crise de ansiedade e enganar médico
Você ou alguém da sua família vai ao pronto-socorro porque não para de vomitar e, após ser medicado, sente uma inquietação tão grande que não consegue ficar parado na mesma posição. Há quem arranque o acesso venoso e saia correndo, e os mais sensíveis ainda podem ter movimentos involuntários nos olhos e na língua, rigidez muscular e dificuldade para falar e andar. Crise de pânico? Fobia de injeção ou de hospital? Nada disso. É só uma reação adversa a certos remédios contra enjoo.
O quadro é chamado de reação extrapiramidal e ocorre em cerca de 5% da população. As principais vítimas são os que tomam antipsicóticos, principalmente os mais antigos, como o haloperidol (Haldol), mas os efeitos também podem aparecer, em menor escala, com drogas para combater náuseas, como a metoclopramida (Plasil) e a bromoprida (Digesan), além de outros tipos de medicamentos. A boa notícia é que esses efeitos passam assim que a substância sai do organismo. A ruim é que muita gente demora para associar a manifestação aos remédios, inclusive médicos.
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Sufoco após cirurgia
A escritora Vanessa Barone ficou apavorada quando viu a filha Helena, de 14 anos, ter a reação, há cerca de dois meses. A garota se recuperava bem de uma cirurgia de apendicite, mas vomitou após a primeira refeição sólida e foi medicada com metoclopramida e bromoprida, no Hospital São Luiz, em São Paulo. Foi quando o drama começou:
Ela estava com os olhos arregalados e virados para cima, o pescoço tenso, também voltado para cima, e sem conseguir falar” Vanessa Barone
Segundo Vanessa, a filha foi examinada por um neurologista. “Disseram que podia ser reação ao Plasil, mas também podia ser que ela estivesse somatizando, já que o ambiente hospitalar pode causar ansiedade”, relata a mãe.
A adolescente foi, então, medicada com clorpromazina (Amplictil), um antipsicótico que, na explicação da equipe, ajudaria Helena a relaxar e aliviaria os sintomas da reação. O problema é que o fármaco, apesar da ação sedativa, também causa reação extrapiramidal em pacientes suscetíveis. Depois de dormir o dia todo, a garota acordou com o quadro piorado.
Uma psicóloga chegou a ser enviada para conversar com a menina, que tentava, mas não conseguia pronunciar as palavras. “Ela me deixou um cartão, e fui levada a crer que se tratava de uma crise histérica”, diz Vanessa. Ao conversar com uma psiquiatra por telefone, soube que o antipsicótico tinha potencializado os efeitos do remédio contra enjoo e exigiu que a equipe não administrasse mais nada que provocasse a reação. Helena melhorou e teve alta no dia seguinte.
Procurado pela reportagem, o hospital “esclarece que alguns medicamentos podem provocar efeitos colaterais como a reação extrapiramidal, que não são identificados com antecedência. Esclarece, ainda, que tão logo a reação foi diagnosticada, a paciente foi avaliada por um neurologista, teve sua medicação readequada e seu quadro revertido”.
Por que os médicos podem falhar
“O grande problema é que muitos médicos têm formação fraca em farmacologia”, lamenta o médico e professor Anthony Wong, diretor do Centro de Assistência Toxicológica (Ceatox) do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP). Toxicologia (especialidade que estuda os efeitos adversos de substâncias químicas), segundo ele, é disciplina optativa na USP, e em outras faculdades nem existe.
Quando dou aula, sempre apresento um caso de criança com o quadro, e 100% dos médicos dizem que é tétano, uma doença que está erradicada em São Paulo há anos” Anthony Wong, diretor do Centro de Assistência Toxicológica
Muitas vezes, um medicamento sozinho não causa sintomas importantes. Mas, ao receber o remédio na veia ou numa dose maior, o quadro se agrava. Mais ainda se forem associadas duas substâncias com o mesmo potencial. Wong afirma que esse tipo de mistura, em pacientes mais vulneráveis, pode até ser fatal: “Em algumas crianças pode haver parada respiratória, eu mesmo já vi caso”, declara. Ele recorda que, há algumas décadas, era comum administrar antipsicóticos e um vermífugo à base de piperazina a crianças com parasitas intestinais, os famosos “ataques de bicha”, o que causava reações extrapiramidais gravíssimas.
“Leva tempo para um médico se familiarizar com os efeitos colaterais de certas drogas”, justifica a médica norte-americana Anne-Michelle Ruha, do hospital da faculdade de medicina da Universidade do Arizona, que também integra o American College of Medical Toxicology. Ela acrescenta que quando os sintomas são apenas de inquietação – a chamada acatisia (do grego “que não consegue sentar”) – fica ainda mais difícil para os profissionais reconhecerem a reação.
“Às vezes os próprios pacientes vão embora sem se queixar”, observa. Provavelmente porque é difícil para um leigo suspeitar que um remédio para enjoo cause uma sensação tão estranha.
Desde pequena, eu tomava cloridrato de metoclopramida (Plasil) quando ia viajar (de carro, avião, navio etc), para evitar enjoo. Em diversas viagens, ficava ansiosa, inquieta e com mal-estar, mas demorei muito para relacionar ao remédio" Luiza Testa
"Certa vez, aos 23 anos, tive uma dor de estômago muito forte e fui ao pronto-socorro, onde tomei Plasil intravenoso pela primeira vez e tive a reação mais forte”, conta a produtora Luiza Testa, 31 anos. Ela conta que só descobriu o que era aquilo anos depois, ao conversar sobre a experiência com uma psiquiatra. Foi procurar mais informações e encontrou poucas respostas, por isso decidiu publicar o blog Reação Extrapiramidal.
A enfermeira Deysen Girão, integrante da Sociedade Brasileira de Enfermeiras Pediatras (Sobeb) e doutora em farmacologia, conta que hoje em dia não vê mais médicos prescrevendo metoclopramida para menores de 18 anos. Mas ela diz ter presenciado a reação em muitos pacientes antes da mudança: “Acompanhei um caso de uma criança de 7 anos, que, após a infusão de bromoprida, começou a ficar agitada, apresentando movimentos involuntários nos braços, pernas e pálpebras. Essa criança solicitava voltar para casa a todo momento, querendo retirar acesso venoso”, lembra.
Como paciente, Deysen também já sentiu o drama na pele: “O mais desagradável foi a sensação de iminência da morte, um sentimento de que algo terrível está prestes a ocorrer”, recorda. Essa sensação de morte iminente também foi descrita pela enfermeira pediátrica Andreia Cruz, 36 anos, ao ter sido medicada com Plasil e um remédio para cólica num pronto-socorro, há alguns anos.
Depois de alguns segundos eu comecei a me sentir muito mal. Começou a faltar ar, me deitaram na sala de emergência e colocaram oxigênio por cateter nasal. Minha pressão e frequência cardíaca ficaram muito baixas. Eu lembro que olhava para o meu esposo e dizia 'eu vou morrer'" Enfermeira pediátrica Andreia Cruz
Ela não lembra qual foi a conduta da equipe, mas aos poucos voltou ao normal. Sempre que preenche algum formulário médico, Andreia anota que tem alergia ao Plasil. “Na verdade não é uma alergia, mas assim eu tenho certeza que ninguém vai me administrar [o medicamento]”. A estratégia, aliás, é recorrente entre quem passou pela situação.
Drogas diferentes, mesmo sintoma
Por que drogas com funções tão diferentes – combater psicose e enjoo – podem causar o mesmo tipo de reação? É que elas possuem um mecanismo de ação parecido: “O sistema extrapiramidal é um sistema neuronal do cérebro que está envolvido no controle do tônus muscular e da postura”, explica Francisco Paumgartten, médico e pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz). Esse conjunto de neurônios do Sistema Nervoso Central se comunica com ajuda de neurotransmissores como a dopamina. Assim, medicamentos que atuam em cadeias neuronais que usam a dopamina podem ter esses efeitos colaterais.
O psiquiatra Luiz Sperry, blogueiro do VivaBem, explica que esses neurônios que usam a dopamina têm várias funções no organismo: estão relacionados aos pensamentos, à liberação de prolactina e lactação, ao controle de movimentos e, claro, ao centro de controle de vômitos”, ensina. “Embora o haloperidol e a própria clorpromazina funcionem contra enjoo, o Plasil não funciona como antipsicótico, esclarece ele.
Boa parte dos sintomas extrapiramidais é típica do Mal de Parkinson, um processo degenerativo que também envolve a dopamina. Assim, o principal antídoto contra reações mais graves é o biperideno, um antiparkinsoniano. O antialérgico difenidramina, que tem efeito sedativo, também costuma ser empregado. Na internet é possível encontrar a informação de que a prometazina (Fenergan) seria outra opção, mas cuidado: a substância também pode exacerbar os sintomas – está na bula. Nos casos mais brandos, portanto, a melhor solução é esperar o efeito passar.
Por que só alguns?
É difícil explicar por que alguns reagem mal a certas drogas e outros não. “A genética pode influir na velocidade com que o indivíduo elimina o medicamento e, obviamente, os que eliminam mais lentamente estão expostos a um risco maior de apresentar efeitos colaterais”, argumenta Paumgartten. Ele avisa que crianças e idosos são mais propensos a ter os sintomas: o primeiro grupo pelo risco de receber uma dose elevada para seu tamanho e idade; e o segundo, pela tendência ao uso de vários remédios ao mesmo tempo. Além disso, os idosos podem já ter algum processo de degeneração na área do cérebro envolvida nos movimentos involuntários, com perda de neurônios, e nesse caso o bloqueio da dopamina atuaria como “a gota d`água”.
Benefícios e riscos
Todo medicamento tem efeitos colaterais. Os centros de toxicologia de todo o país recebem, diariamente, queixas de reações graves causadas por analgésicos e anti-inflamatórios que as pessoas consomem por conta própria, sem o menor receio. Por isso não dá para condenar um remédio que causa reações em uma parcela pequena dos usuários. E controlar enjoo não é frescura.
“Os anestésicos, de modo geral, provocam náuseas, e a força que o paciente faz quando vomita pode prejudicar o corte da cirurgia. A metoclopramida ainda é muito usada porque é uma droga muito segura e boa” Presidente da Federação Brasileira de Gastroenterologia Flávio Quilici
“Quando a dose é pequena, a reação é incomum e passageira, basta parar com o medicamento”, reitera o gastroenterologista. Além de evitar vômitos, a metoclopramida ajuda no esvaziamento do estômago e intestino, o que é útil para pacientes com refluxo ou problemas digestivos associados ao diabetes, por exemplo.
A incidência de reações adversas fez as agências reguladoras de medicamentos exigirem mudanças nas bulas da metoclopramida nos últimos anos. Em 2009, o FDA (Food and Drug Administration), nos EUA, divulgou que 20% dos pacientes que utilizam a substância por mais de três meses desenvolviam uma condição chamada discinesia tardia, às vezes irreversível, caracterizada por movimentos involuntários, como tiques nervosos, principalmente nos olhos e na boca. A condição também pode ser provocada por antipsicóticos.
A substância também recebeu sinal amarelo da Agência Europeia de Medicamentos, em 2013. Após revisar estudos, a entidade determinou que seu uso fosse limitado a no máximo cinco dias. Crianças só deveriam ser medicadas com essa droga quando outras não funcionassem, e somente em casos de cirurgias e tratamentos contra o câncer.
A farmacêutica Sanofi, que na época detinha todas as versões do medicamento de referência, o Plasil, alterou a bula logo em seguida: o produto passou a ser contraindicado para menores de 1 ano e não recomendado para jovens de 1 a 18 anos. Além disso, a versão injetável foi restrita a hospitais, devido à possibilidade de eventos cardiovasculares.
Procurada pelo VivaBem para falar sobre reações extrapiramidais, a Sanofi informa ter descontinuado a fabricação da solução oral, gotas e injetável do Plasil em 2016. “Hoje, apenas a apresentação Plasil comprimidos, indicada para o tratamento de distúrbios da motilidade gastrointestinal, como enjoos e vômitos de origens central e periférica, continua sendo comercializada normalmente e contém em bula todas as precauções e reações adversas deste medicamento”, diz o comunicado. Segundo a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), sintomas extrapiramidais ocorrem em 1 a 10% dos usuários de metoclopramida, mesmo após administração de dose única, principalmente em crianças e adultos jovens.
É importante lembrar que a metoclopramida também é indicada para gestantes com enjoos severos, bem como para algumas mulheres com dificuldade para amamentar, já que, como certos antipsicóticos, pode ajudar na produção de leite materno. A bula diz que “o uso de Plasil pode ser considerado durante a gravidez, se necessário”. Mas, nos Estados Unidos, o informe esclarece que a substância atravessa a placenta, podendo causar sinais extrapiramidais nos recém-nascidos. O mesmo documento recomenda que, quando o remédio é utilizado em lactantes, deve-se observar possíveis reações no bebê.
Depressão, outro efeito adverso
Há ainda inúmeros relatos de depressão causada pelo remédio. Os médicos explicam que os sintomas depressivos não podem ser atribuídos à reação extrapiramidal, mas a outros mecanismos de ação da substância. Novamente, as diferenças entre as bulas no Brasil e nos EUA são grandes: aqui, há apenas a palavra “depressão” na lista de efeitos adversos comuns. Já a norte-americana adverte que algumas pessoas podem ficar deprimidas e ter pensamentos sobre se matar ou se ferir ao tomar o remédio, e até informa que há casos de usuários que se suicidaram. Ainda há a recomendação para que um médico seja procurado imediatamente se esses pensamentos surgirem após o uso.
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A reportagem encontrou poucas informações sobre essa relação em estudos científicos e nas conversas com os especialistas. Para explicar por quê, o professor de psiquiatria, pesquisador e psicofarmacologista David Healy, da Universidade Cardiff, no Reino Unido, cita o exemplo da reserpina, uma droga à base da planta Rauwolfia serpentina que foi o primeiro medicamento lançado no mundo a agir no sistema nervoso autônomo. Seu mecanismo de ação é diferente ao das drogas contra enjoo, já que envolve, também, outro neurotransmissor, a noradrenalina. Mas os efeitos colaterais do fármaco, de acordo com o pesquisador, também podem ser perigosos para alguns pacientes.
Assim como a metoclopramida, a reserpina foi usada nos anos de 1950 para problemas físicos e não mentais – no caso a hipertensão – até descobrirem que causava acatisia e suicídio. Hoje, todos os médicos sabem disso, mas levou tempo para que isso acontecesse" Psicofarmacologista David Healy
Autor de livros como “Pharmageddon” (sem tradução no Brasil), Healy fundou o site rxisk.org, que ajuda a informar médicos e leigos sobre efeitos colaterais de medicamentos que podem não estar muito claros nas bulas. Ao VivaBem, ele explica que a metoclopramida é um parente próximo de antipsicóticos como a sulpirida e a amissulprida, e, assim como essas drogas, pode causar acatisia, discinesia tardia e suicídio. “Apesar de a propensão ser menor [com a metoclopramida], é o marketing, e não alguma diferença substancial entre essas drogas, que faz os médicos acharem esses riscos não existem”, diz.
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