"A cegueira é só uma parte de mim, eu sou muito mais que tudo isso"
Veja o dia a dia e a história de um casal de cegos que vive sozinho em São Paulo
Cozinhar, passar e lavar roupa, limpar a casa, ver TV, usar o celular, estudar, fazer cursos... São atividades simples e que muitas vezes você faz sem pensar muito. Mas você já imaginou executá-las sem enxergar? É o caso da dona de casa Eliane Marçal de Souza, 51 anos, moradora de São Paulo.
Ela e seu marido, Moacyr Moreira Junior, servidor público de 48 anos, são deficientes visuais. Ambos têm 99% da visão comprometida, ou seja, conseguem distinguir algumas formas ou claridade.
O problema teve causas diferentes em cada um: Elaine nasceu com glaucoma e aos 13 anos passou por um transplante de córnea para conseguir seu 1% de visão atual. Já Moacyr nasceu com uma atrofia no nervo óptico. No entanto, nenhum deles sente mudanças significativas em seu estilo de vida quando se comparam com pessoas com 100% de visão.
“A gente só não enxerga, no meu caso eu consigo ver apenas claridade. Mas de resto não muda muita coisa, principalmente quando a cegueira é algo que já vem desde a infância”, garante Moacyr, que trabalha, pega ônibus e adora cozinhar quando está em casa.
“Só não mexo na parte de eletricidade e hidráulica em geral. Quanto a isso, sim, temos dificuldade, que é a de ter alguém que, mesmo recebendo pelo serviço, prefere não fazer nada em nossa casa, só porque somos cegos. Por quê? Não sei, vai entender”, lamenta Moacyr.
Busca por autonomia sempre
Para se aprimorar nas tarefas do lar, Eliane, que cursou até a quinta série numa escola regular, frequenta três vezes por semana um curso gratuito de Atividades de Vida Autônoma (AVA) no Centro de Tecnologia e Inovação para Pessoas com Deficiência Visual, região da Vila Leopoldina, zona Oeste de São Paulo. Para chegar ao local, pega dois ônibus e um metrô. “Lá eu faço aulas de mobilidade tanto para as ações diárias de casa, como para ter mais autonomia na rua e, assim, conquistar cada vez mais independência e ganhar autoconfiança”, explica.
Ela também já fez curso de maquiagem para cegos. E aprendeu a passar rímel, lápis de olho, blush, e tudo mais. “Hoje não saio de casa sem passar pelo menos uma base e um batom”, diz.
Mas estudar, que hoje pode parecer natural, não foi sempre tão simples. “No primário eu ficava numa classe especial, embora não fosse uma escola para cegos. Na maioria das vezes, eu estudava e até tomava lanche sozinha”, comenta Elaine. Ela diz que foi um período de solidão, “mas isso não me abalou porque, como tudo na vida, a gente se acostuma,
No entanto, depois da aula ela se soltava, brincava na rua e não sentia diferença com os outros. “Eu subia em cima de árvore! Uma das minhas molecagens era jogar limão lá de cima na cabeça de quem passava pela rua”, relembra. Questionada sobre como sabia da presença de seus alvos, respondeu com propriedade: “Com esse ouvidinho aqui né? Eles passavam e eu me escondia no vão da árvore e jogava o limão. Ficava escondidinha lá e me divertia com a situação”.
“Meu esposo é um grande parceiro”
Eliane cresceu e passou a mirar outro tipo de alvo. “Eu era namoradeira”, conta. E foi por meio de uma revista para cegos que seu flerte com Moacyr teve início, num espaço de classificados. “Me interessei logo de cara com o anúncio dele. Ele contou um pouco sobre o que fazia e que buscava novas amizades. Na mesma hora eu enviei uma carta para ele, e não é que ele se interessou pela bonitona aqui?”, diverte-se.
O namoro por correspondência durou seis meses, até que um dia, Eliane resolveu pegar um ônibus e enfrentar quatro horas de estrada para conhecer o amado pessoalmente. “Com esse meu um por cento de visão consegui ver o rosto dele, o cabelo, que hoje é meio grisalho”.
Passados quinze dias da visita de Eliane, foi a vez de Moacyr visitá-la, até que, poucos meses depois, ela conseguiu moradia para ele na Associação para Cegos São Judas Tadeu, na Vila Mariana, e um ano e meio depois foram morar juntos. Essa história já dura duas décadas. “Ele é meu grande companheiro, a gente faz tudo junto”.
Eles moram sozinhos. Não tiveram filhos inicialmente por opção e depois por problemas de saúde de Eliane. “Minha mãe já tinha tanto trabalho para me levar ao hospital, que então não quis ter filhos. Mais tarde o médico disse que eu não poderia ter parto normal, porque minha córnea poderia estourar, então não quis correr esse risco e desisti, mas não sinto falta”, conta.
“Na rua a gente às vezes parece novidade”
A desenvoltura do casal no cotidiano de um modo geral ao sair, pegar um ônibus, ir ao supermercado ou à feira livre, acaba chamando a atenção de algumas pessoas. Os dois dizem não ligar muito para isso, só se incomodam quando são vistos ou como coitadinhos, ou como “novidade”, nas palavras da Eliane.
“Às vezes, dentro do mercado, eu pego uma embalagem para ler e tem gente que para e fala: ‘nossa, você lê?’. Sim, eu leio, cego lê em braile e, apesar de poucos, alguns produtos nos permitem essa possibilidade. Também tem momentos que a gente perde um pouco a paciência, por exemplo, quando me questionam se eu sou totalmente cega. Eu costumo responder que não, que fico cega só até as 18 horas, depois eu viro motorista de ônibus”, riu .
Dificuldades na cidade
Por mais que o casal se movimente pela cidade, ainda há questões de mobilidade que os incomoda. Moacyr sonhar com uma moradia num lugar mais acessível, com mais facilidade de locomoção. “Mas isso não é o fim do mundo também, é só um desejo, quem sabe um dia?”, comenta o servidor público. “A gente anda e tropeça bastante nas ruas, nas calçadas, pois têm muitos buracos”, explica Elaine.
No entanto, Elaine filosofa que mesmo sem ver, eles continuam se movendo na vida. “Vamos atrás do que queremos, sem medo, nem ter pena de si próprio. Eu fui atrás de tudo o que eu quis e ainda assim acho que falta fazer muito, e tudo o que a vida me der, eu vou fazer. A cegueira é só uma parte de mim, eu sou muito mais que tudo isso”, diz Eliane. “Assino embaixo”, finaliza Moacyr.
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