Terapia genética é esperança para hemofílicos; cura ainda é sonho distante
Os cientistas estão chegando perto de derrotar um antigo inimigo da saúde humana: a hemofilia, doença caracterizada pela incapacidade de formar coágulos sanguíneos.
Depois de décadas tentando desenvolver uma terapia genética para tratar a doença, os pesquisadores estão começando a ter sucesso. Em experiências recentes, breves infusões intravenosas de tratamentos novos e poderosos livraram os pacientes --pelo menos por enquanto-- de uma condição que os acompanhou durante toda a vida.
Houve contratempos --vários testes clínicos fracassados e esperanças frustradas ao longo dos anos. Na semana passada, por exemplo, uma empresa de biotecnologia informou que a terapia genética basicamente parou de funcionar em dois dos 12 pacientes que participam de seu teste.
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No entanto, a trajetória geral tem avançado e muitos especialistas esperam que novos tratamentos sejam aprovados em poucos anos.
Ninguém está dizendo ainda que a hemofilia será curada. A terapia genética --que usa um vírus para colocar um novo gene nas células-- só pode ser usada uma vez. Se parar de funcionar, os pacientes perdem os benefícios.
Por enquanto, "estamos prevendo que este é um tratamento que pode ser feito apenas uma vez na vida", afirma Steven Pipe, diretor do programa de hemofilia e distúrbios de coagulação da Universidade de Michigan e principal pesquisador de um estudo clínico conduzido pela empresa de biotecnologia BioMarin.
Os tratamentos bem-sucedidos são tão recentes que é difícil dizer quanto tempo vão durar. No entanto, para os poucos pacientes que passaram pelos testes clínicos com sucesso, a vida após o tratamento se tornou incrivelmente diferente.
Existem 20 mil pacientes com hemofilia nos Estados Unidos que não possuem uma das duas proteínas necessárias para o sangue coagular. Essa é uma condição genética, e o gene da coagulação do sangue fica no cromossomo X. Praticamente todas as pessoas com hemofilia são homens.
Os mais gravemente afetados devem se injetar a cada dois dias com as proteínas ausentes, o fator de coagulação VIII ou o fator IX. As injeções mantêm os hemofílicos vivos, mas os níveis de proteínas da coagulação diminuem no período entre as aplicações.
Mesmo com injeções regulares, as pessoas com hemofilia correm o risco de ter um sangramento descontrolado em um músculo ou em uma articulação, ou até mesmo no cérebro. Eles devem ser extremamente cuidadosos. Quando a hemorragia começa, uma articulação pode inchar porque seu interior se enche de sangue. Quando o sangramento para, a articulação pode já estar danificada.
Mesmo um voo de rotina é arriscado, conta Mark Skinner, advogado de 57 anos de Washington, que tem a doença e é ex-presidente da Federação Mundial de Hemofilia.
"Carregando a bagagem, você pode torcer algo da maneira errada e imediatamente causar um sangramento. Ou pode ser atingido por um carrinho cheio de malas enquanto anda pelo corredor."
Em geral, pessoas com hemofilia aprendem ainda quando crianças a evitar a maioria dos esportes e a encontrar profissões que não exijam muita atividade física. Várias se mudam de cidade para obter acesso mais fácil ao tratamento.
Elas podem trocar de emprego para conseguir o seguro necessário para cobrir contas médicas de hospitalizações e cirurgias, capazes de chegar a US$1 milhão por ano, além de uma média de US$250 mil a US$300 mil anuais para as proteínas da coagulação. (Só as injeções chegam a custar até US$1 milhão por ano).
Apesar de sua vigilância, a maioria das pessoas com uma condição grave acaba desenvolvendo danos permanentes nas articulações por sangramento, o que muitas vezes leva a cirurgias para a fusão do tornozelo ou a substituição de quadril ou joelho em idade precoce. A maioria vive com dor crônica por causa de sangramentos antigos.
Para pacientes mais velhos, há uma complicação adicional. As proteínas de coagulação usadas na década de 1980 estavam contaminadas com HIV e hepatite C. Quase todos os hemofílicos foram infectados.
Agora, porém, os pesquisadores veem o início de uma nova era.
"Estamos em um momento realmente otimista", diz Lindsey A. George, hematologista do Hospital Infantil da Filadélfia e principal pesquisadora da Spark Therapeutics, uma das várias empresas que desenvolvem terapias genéticas para a hemofilia.
Sucessos Imperfeitos
O objetivo da terapia genética é reduzir ou eliminar a necessidade de injeções de fator de coagulação e o número de episódios de sangramento do paciente. O gene a ser inserido varia dependendo do problema: se o paciente tem hemofilia A, causada por uma mutação no gene do fator VIII, ou hemofilia B, causada por uma mutação no gene do fator IX de coagulação.
Embora os sintomas sejam os mesmos em ambas as formas da doença, a hemofilia A é de longe a mais comum.
Agora, várias empresas de biotecnologia estão correndo para lançar suas terapias no mercado. A Spark, que estuda a terapia genética para hemofilia B, e a BioMarin, com um tratamento parecido para a hemofilia A, estão começando testes clínicos grandes já na fase final para aprovação. (A Spark tem uma parceria com a Pfizer.)
Os resultados dos testes preliminares das duas empresas, no entanto, não foram perfeitos.
Os pacientes no estudo de hemofilia A da Biomarin obtiveram, em média, níveis normais ou acima do normal do fator VIII no sangue, mas, no segundo ano, esses níveis caíram para uma média de 46 por cento. Os pesquisadores ainda não sabem o motivo.
Os pacientes no teste de hemofilia B da Spark atingiram, em média, 35 por cento dos níveis sanguíneos normais do fator IX. Mas esses níveis permaneceram estáveis nos dois anos em que foram acompanhados.
A boa notícia é que esses níveis são suficientes para o sangue coagular, porque os níveis normais são maiores do que o necessário.
Depois de sonhar com uma cura por décadas, alguns pacientes tratados estão tentando se adaptar à nova liberdade.
John Brissette, de 39 anos, designer de interface de usuário de computador de Hanover, em Massachusetts, conta que a hemofilia A sempre dominou sua vida.
Ele passou a infância desejando ser ativo como as outras crianças, mas os sangramentos nas articulações faziam com que precisasse usar muletas por dias ou manter o braço em uma tipoia.
Ele passava uma semana fora da escola, depois voltava, e então tinha que ficar em casa novamente por causa de mais um sangramento. Ele sentia vergonha das hemorragias nasais constantes.
Depois de adulto, precisou fazer uma cirurgia para fundir os ossos danificados do tornozelo. Seu cotovelo, após vários sangramentos ao longo dos anos, deixou-o com uma dor crônica.
Prevendo mais dor e lesões no futuro, Brissette começou a procurar testes clínicos de terapia genética. Por fim, inscreveu-se em uma pesquisa da Spark. (A empresa também tem uma droga experimental para hemofilia A.)
Ele recebeu uma única infusão no dia 19 de abril. Os níveis de fator VIII em seu sangue foram de zero a 30 por cento do normal e até agora estão estabilizados.
"Não me machuquei, não sangrei", conta Brissette.
Desde que passou pelo procedimento, ele também não precisou tomar injeções de coagulantes.
No entanto, ainda está lutando para deixar de lado uma vida inteira de precauções. Enquanto faz tarefas em casa ou brinca com os filhos, ainda não consegue esquecer o medo de ter um sangramento.
"Eu me tornei uma pessoa muito cautelosa", explica.
Uma Mutação de Sorte
No início, a hemofilia parecia ideal para a terapia genética.
Os níveis normais de proteínas de coagulação no sangue variam amplamente, de 50 por cento a 150 por cento da média. Uma terapia genética para a doença não teria que fornecer muito para ser eficaz para os pacientes.
E os pesquisadores sabiam exatamente quais genes inserir nas células do fígado dos pacientes. Os genes para hemofilia A e B foram isolados no início dos anos 1980.
No entanto, a pesquisa se mostrou difícil, e o primeiro resultado positivo foi relatado há apenas uma década por cientistas da Universidade College London. Eles trataram dez pacientes com hemofilia B e conseguiram aumentar seus níveis sanguíneos de fator IX para entre dois por cento e seis por cento do normal.
Nesses pacientes, as proteínas de coagulação continuaram nesses níveis desde então.
Tempos depois, os cientistas se depararam com uma bonança inesperada. Eles encontraram um homem em Pádua, na Itália, que tinha uma mutação genética que fazia com que as células produzissem 12 vezes mais do que as quantidades normais de fator IX.
Os pesquisadores perceberam que poderiam colocar o gene transformado em um vírus e usá-lo para inserir o gene nas células dos pacientes com hemofilia B.
A vantagem era que eles não precisariam usar tantos vírus --e quanto menor a dose, menor a probabilidade de acontecer ataque do sistema imunológico.
"Diminuímos a dose quatro vezes", explica a doutora Kathy High, hematologista e presidente da Spark.
"Nossa primeira paciente foi uma enfermeira de 23 anos. Seu nível de fator IX subiu para cerca de 30 por cento e permaneceu assim por dois anos", conta ela. A enfermeira não precisou injetar o fator coagulante e não teve hemorragias.
A hemofilia A, porém, é mais assustadora. Os vírus usados para transportar genes modificados para as células dos pacientes são chamados de adenoassociados. No entanto, não conseguem carregar um gene grande, e o gene do fator VIII, necessário para tratar a hemofilia A, é enorme.
Após 15 anos de esforços, os pesquisadores finalmente descobriram que poderiam reduzir o gene a um tamanho administrável cortando as porções que não eram necessárias.
Hoje, os cientistas e os pacientes já não ficam deslumbrados com um tratamento que eleva os níveis do fator de coagulação do sangue a apenas seis por cento da média. "Meu pensamento evoluiu", diz Skinner, da Fundação Mundial de Hemofilia.
Segundo ele, os resultados que as empresas estão relatando agora "realmente pareciam inimagináveis" há apenas alguns anos.
Em Alerta Máximo
Bill Konduros, de 59 anos, dono de uma oficina mecânica em Mississauga, em Ontário, e seu irmão Jay Konduros, de 54 anos, padeiro de Cambridge, também em Ontário, assumiram que a vigilância constante e a deficiência crescente seriam seu destino na vida.
A hemofilia era "uma coisa para toda a vida", explica Jay. Então, os irmãos se juntaram ao teste de terapia genética da Spark para a hemofilia B.
A hora da infusão da droga experimental foi um anticlímax, lembra Jay. Ele entrou em um hospital na Filadélfia, sentou-se em uma cadeira e passou por um gotejamento intravenoso por meia hora. E pronto.
Agora, os níveis de fator IX no sangue de Jay Konduros estão em cerca de 50%. Bill Konduros, que também participou do teste, tem níveis próximos a 75%. Nenhum deles precisou de qualquer fator coagulante desde que fizeram a terapia genética.
Ambos ainda lutam para aceitar o fato de que, no momento, suas vidas são muito diferentes.
"Quando bato em algo ou estiro ou torço um músculo, eu imediatamente volto a pensar como um hemofílico", conta Bill. "A gente vive em alerta máximo. A dor está se espalhando? Está latejando?"
Em maio, Jay caiu sobre os antebraços. Seus pulsos atingiram o concreto com força, e ele bateu o lado esquerdo da coxa, já danificado por sangramentos anteriores.
Ele respirou fundo algumas vezes e disse a si mesmo: "Você vai ficar bem. Você vai ficar bem".
Jay ficou preocupado, antecipando um desastre. Naquela noite, alongou-se e se examinou. Nada parecia danificado. Ele acordou nas primeiras horas da manhã e nervosamente se examinou novamente.
Ele estava bem. Então, esperou três dias para ligar para o irmão e dizer que agora era uma pessoa normal que teve uma pequena queda.
"Você ouve falar de muitas coisas descritas como milagres ou milagrosas. Acho que isso realmente é um milagre", diz Bill.
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