Medo de ser visto como homossexual afasta homens do diagnóstico de anorexia
Normalmente associados às mulheres, o diagnóstico e o tratamento de transtornos alimentares ainda são temas pouco discutidos entre homens. Ainda mais dentro do consultório. Segundo especialistas, a invisibilidade do problema pode ter duas explicações: o medo de ser taxado como homossexual (já que a doença é vista como feminina) e a falta de pesquisas que descrevam as especificidades do quadro clínico no caso deles.
Até agora acreditava-se que as mulheres estivessem muito mais propensas a desenvolver bulimia, anorexia ou transtorno de compulsão alimentar. Isso porque entidades internacionais trabalham com o dado de que exista um homem para cada nove ou dez mulheres com transtornos alimentares. Mas esse número tem sido questionado por alguns especialistas. “Há trabalhos que já mostram que essa prevalência está errada”, afirma o médico psiquiatra Alexandre Pinto de Azevedo, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP (Universidade de São Paulo).
O médico falou sobre o tema nesta sexta-feira (28) no Simpósio Transtornos Alimentares, durante o 22º Congresso Brasileiro de Nutrologia, em São Paulo. Segundo o especialista, isso acontece por dois motivos principais: por um lado, é difícil levar esses pacientes para um tratamento, o que, consequentemente, se reflete no baixo número de estudos com esse público (“apenas 1% das pesquisas sobre transtornos alimentares”, comenta o especialista); na outra ponta, o resultado é que o diagnóstico pode ficar prejudicado, já que não há registros sobre as possíveis especificidades de seu quadro em relação às mulheres.
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Onde estão os pacientes?
Entre os pesquisadores que sugerem uma possível subnotificação desse tipo de doença entre os homens, um dos argumentos é de que a amenorreia era um dos critérios para o diagnóstico de anorexia. “Isso já caiu por terra, e era um grande limitador do diagnóstico para homens, porque eles não menstruam, obviamente”, disse o médico da USP. Até 2013, o sintoma fazia parte do DSM, o manual de referência da Associação Americana de Psiquiatria para o diagnóstico e as estatísticas de doenças mentais.
Além da mudança, alguns estudos buscam questionar possíveis distorções nas estatísticas sobre distúrbios alimentares entre homens e mulheres. Entre eles, está uma pesquisa publicada neste ano na revista científica Appetite, que ouviu quase mil estudantes nos Estados Unidos. Os resultados mostraram que a ocorrência de transtornos é maior entre as garotas, mas a proporção foi menor do que a registrada em outros estudos, de dois casos femininos para um masculino.
Outra pesquisa, dessa vez publicada em 2013 no periódico International Journal of Eating Disorders, avaliou mais de 3.000 pessoas e mostrou uma prevalência em homens de um para cada três casos de anorexia nervosa e bulimia nervosa em mulheres.
Eu, homossexual?
Outra barreira ao tratamento e ao diagnóstico de transtornos alimentares entre homens pode ser a associação entre o problema e a homossexualidade.
Para testar se essa imagem era real, uma pesquisa publicada em 2018 ouviu 311 estudantes de uma universidade no Havaí, nos Estados Unidos. Os entrevistados (90% deles se identificaram como heterossexuais) deveriam dizer qual era a orientação sexual de pessoas fotografadas segurando as placas que descreviam sintomas de anorexia, bulimia ou de transtorno de compulsão alimentar.
O público em geral tem maior probabilidade de perceber homens com transtornos alimentares como gays ou bissexuais em relação a mulheres com os mesmos distúrbios, concluiu o estudo. Para os pesquisadores, a orientação sexual percebida pode ser um fator importante a considerar quando se trata de homens com o problema. “Isso acaba sendo um dilema para quem faz tanto pesquisa quanto assistência, primeiro pelo caráter discriminatório quanto à orientação homossexual e, segundo, porque há um medo de ser encarado como tal”, expôs Azevedo.
No Hospital das Clínicas, foi formado um grupo de homens com bulimia, anorexia e transtorno de compulsão alimentar, onde há pacientes de orientação bissexual, homossexual, heterossexual e assexual. “O grupo funciona muito bem, porque a identificação com a doença alimentar em si permite que não haja nenhum componente discriminatório. Isso não é um fato de conflito”, disse o psiquiatra.
Eles querem músculos?
Entre as mulheres, em geral, os transtornos são resultado de uma busca incessante por um corpo magro. Mas será que este também é foco dos homens com distúrbios alimentares? E quando eles buscam um corpo musculoso, como enquadrá-los?
Segundo Azevedo, percebe-se os dois perfis de pacientes, mas há algumas confusões quando se trata do tema. “Trabalhos mais recentes têm falado de homens que apresentam transtornos alimentares clássicos, como anorexia e bulimia entre as mulheres, mas há uma sintomatologia que fica entre o que é a anorexia nervosa e a dismorfia muscular”.
No segundo caso, aparece um problema, já que o caso não existe um enquadramento específico como doença mental. Isso porque muitos relatos dão conta de pessoas com vigorexia, que é uma distorção de imagem em que a pessoa busca a definição muscular. Esse distúrbio, no entanto, não está associado à alimentação, mas principalmente ao excesso de atividade física.
“Mas parece que há casos em que a busca pelo aumento muscular pode estar associada a um comer transtornado, quando a pessoa adota uma dieta hiperprotéica, hipercalórica e hipogordurosa”, diz.
Esse novo olhar é importante porque pode iluminar uma realidade dos transtornos alimentares entre homens.
Nesse sentido, uma pesquisa de 2015 realizada com 400 pacientes do sexo masculino identificou que 1,9% podiam ter transtorno alimentar de acordo com os critérios clássicos de anorexia nervosa. Outro grupo, no entanto, de 6,9% tinha sinais que indicavam outro tipo de transtorno alimentar.
“Eles não eram incluídos no grupo de anorexia nervosa nem no grupo dismorfia muscular (que é não um transtorno, sim um overtraining), mas eram pacientes que tinham um comer transtornado com orientação para a muscularidade”, diz o médico. “Talvez esse fato tenha uma maior prevalência do que a gente realmente imagina dentro dos nossos manuais diagnósticos”.
Além disso, homens podem apresentar quadros específicos quando se trata de transtornos alimentares. Entre os fatores de risco, por exemplo, está a maior associação dos distúrbios com obesidade na infância e histórico de prática de esportes de competição que exijam baixo peso ou baixo percentual de gordura corporal.
“Entre os homens, podemos encontrar maior presença de comorbidades psiquiátricas do que em mulheres (principalmente relacionadas ao uso e abuso de substâncias químicas), uma maior prevalência de transtorno de personalidade narcisística, idade de início tardio quando comparado às pacientes, histórico de obesidade ou sobrepeso na infância com a presença de bullying, jejum prolongado e atividade física exagerada com objetivo de emagrecimento”, alerta o psiquiatra.
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