Ela deixou o hospital após 43 anos morando lá: "Sonhava viver em uma casa"
Vítima de poliomielite quando bebê, Eliana Zagui, 44 anos, perdeu os movimentos do corpo e só mexe o pescoço e a boca. A escritora e pintora foi encaminhada ao HC (Hospital das Clínicas de São Paulo) para fazer um tratamento quando tinha um ano e nove meses e desde então passou a morar lá, pois depende de aparelhos e uma série de cuidados especiais para sobreviver.
Em 22 de dezembro do ano passado, Eliana saiu para passar um período de férias em Sumaré, no interior paulista, com retorno previsto e documentado pelo HC para o dia 15 de janeiro. No entanto, decidiu não voltar e deixou a unidade hospitalar após cerca de 43 anos, para viver com amigos e familiares afetivos.
"Meu sonho sempre foi morar em uma casa. Consegui realizá-lo e já tenho vários planos. Pretendo montar um ateliê de pintura e desenvolver um projeto com deficientes físicos. Também quero andar de avião pela primeira vez, conhecer a região Sul do Brasil e viajar para Portugal. Por último, desejo voltar a estudar, fazer faculdade de psicologia", revelou Eliana.
Eliana afirma ser eternamente grata por ter sido acolhida pelo HC nesses anos e por todo o amor e afeto que recebeu de médicos, enfermeiros e voluntários. "Mas já não aguentava mais morar lá, ficar olhando para o teto e as paredes, me sentia em uma prisão. O que me diferia de um presidiário comum é que ele pode tomar banho de sol no pátio, eu não podia."
Uma vida internada
Eliana foi diagnosticada com poliomielite durante o surto da doença no Brasil na década de 1970. "Na época, meus pais me levaram para tomar a vacina, mas eu não pude receber a dose porque estava com febre e a garganta inflamada", explica.
Os médicos diziam que era gripe, mas na realidade ela já havia contraído o vírus. Seu quadro piorou e ela ficou com uma das pernas paralisadas, não tinha mais firmeza para ficar em pé e parou de andar. "Fui em vários hospitais, mas ninguém descobria o que eu tinha. Após retirarem o líquido da minha espinha, constataram que era paralisia infantil."
Em janeiro de 1976, por indicação dos médicos de Guariba (SP), onde ela nasceu, os pais a levaram para o Hospital das Clínicas de São Paulo. O estado de Eliana era grave. "Fiquei na máquina pulmão de aço e fui submetida a uma traqueostomia." Após um tempo, a saúde melhorou e ela recebeu alta do hospital, mas os médicos advertiram que para sobreviver ela precisaria de um respirador artificial e de uma estrutura hospitalar complexa.
Meus pais eram pobres e decidiram que o melhor seria eu ficar no HC por ser um local seguro
Na época, o hospital "adotou" Eliana e outras crianças com poliomielite que não tinham condições de ir embora. "Quando cheguei lá, o Paulo [Henrique Machado], que dividia o quarto comigo até eu decidir morar em Sumaré, já vivia lá. De todo o grupo, só eu e ele sobrevivemos."
Eliana conta que por causa da distância e falta de condições financeiras, os pais a visitavam duas vezes por ano, em seu aniversário e no Natal. "Pedia para me levarem embora, mas eles falavam que não dava. Eu ficava triste e chorava. Eles também sofreram. Minha mãe faleceu há cinco anos. De vez em quando meu pai e meu irmão mais velho ainda me visitam."
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Ela aprendeu a pintar e retratou lugares em que queria estar
Eliana conta que na infância o hospital reunia todas as crianças que moravam lá em uma sala e elas brincavam, cada um na sua cama, de boneca, de casinha. Aos oito anos de idade ela aprendeu a escrever com a boca e, aos nove, começou a pintar quadros.
"Iniciou como um hobby, mas virou profissão. A pintura é a principal forma de expressão na minha vida, significa liberdade e o desejo de estar, tocar, conhecer e explorar o que eu retrato na tela. Minha maior inspiração é a natureza: paisagens, praias, campos, o amanhecer, flores, animais. Como nunca tinha visto essas coisas, usava livros e fotos como referência para pintar."
A primeira vez fora do hospital
Eliana tinha 15 anos a primeira vez que saiu do HC para visitar uma amiga. "Do meu quarto, a única visão que tinha da janela era a parte de cima de uma árvore e os telhados dos prédios. Quando saí, o que mais me impressionou foi ver a árvore do chão até o topo. Eu achei linda, não imaginava que ela era tão grande."
Aos 24, ela realizou o sonho de conhecer a praia junto com Paulo. "Estava um dia chuvoso, mas Deus foi tão generoso que metade do céu ficou cinza e a parte que estávamos fez sol." Ao ver o mar, ela conta que ficou procurando pelo fim dele, mas não achou. "Experimentei a água e senti a textura da areia. Foi emocionante. Depois conheci vários lugares, biblioteca, praças, cinema, teatro, exposições."
A "adoção" e busca por um lar
Em 2002, Eliana conheceu pela internet Lucas Negrini, que virou seu melhor amigo, assessor e principal responsável pela saída definitiva do HC. "Ele foi me visitar e me 'adotou'. Em nossas conversas, sempre confidenciava a minha vontade de ir embora do hospital, ter uma vida diferente. O Lucas abraçou a causa e começou a viabilizar esse desejo."
Em 2014, ele alugou uma casa em Sumaré, no interior de São Paulo, onde Eliana passou a ir a cada três meses e ficar 20 dias. Mas isso mudou nesta semana e agora a casa é seu novo lar.
"A ideia é morar provisoriamente nesse imóvel até comprar um terreno e construir uma casa completamente adaptada para as minhas necessidades. Quero também que o Paulo venha morar com a gente."
A decisão de deixar o HC não foi algo feito sem planejamento. Recentemente, ela já havia sido notificada pelo hospital que suas condições clínicas estavam ótimas e que a alta hospitalar só dependia de sua assinatura. "Faltava só algumas questões financeiras para concretizar isso", explica Eliana, que vai continuar recebendo assistência médica e usar os aparelhos do hospital.
O objetivo dela é ainda este ano fundar a Associação Eliana Zagui e desenvolver um projeto inclusivo-social com deficientes físicos, em que possa trabalhar no ateliê e ensinar pintura a eles. E é claro que ela ainda tem muitos outros planos e sonhos que vai buscar realizar.
"A tendência de uma pessoa que mora tanto tempo no hospital seria vegetar, mas isso não aconteceu comigo porque eu não me entreguei, não desisti de viver, de sonhar. A cada dia eu faço a vida valer a pena estudando, trabalhando, criando novas amizades e, acima de tudo, depositando minha fé em Deus. Ele me ajudou nessa caminhada e vai continuar me sustentando na minha nova vida fora do hospital."
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