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Brasileiros desenvolvem terapia que descontamina órgãos para transplante

Pulmão de porco no banho de radiação vermelha para inativação de vírus - Cristina Kurachi/Agência Fapesp
Pulmão de porco no banho de radiação vermelha para inativação de vírus Imagem: Cristina Kurachi/Agência Fapesp

Do UOL VivaBem*, em São Paulo

14/03/2019 10h25

Uma nova técnica que possibilita descontaminar órgãos para transplante com uso de radiação ultravioleta e luz vermelha foi desenvolvida por pesquisadores brasileiros e canadenses e descrita em um artigo publicado no periódico Nature Communications.

"Esta técnica biofotônica é revolucionária, pois ajuda a evitar a transmissão de doenças durante transplantes de órgãos", disse Vanderlei Bagnato, diretor do Instituto de Física de São Carlos (IFSC) e coordenador do Centro de Pesquisas em Óptica e Fotônica, sediado na Universidade de São Paulo (USP) em São Carlos.

O grupo de Bagnato trabalhou em parceria com pesquisadores da Universidade de Toronto, no Canadá, que abriga o maior programa de transplante de pulmão do mundo, com 197 cirurgias realizadas em 2018. Segundo o coordenador do serviço, Marcelo Cypel, um dos obstáculos para a realização dos procedimentos é a necessidade de descontaminar os órgãos a serem transplantados, principalmente quando o doador era portador do vírus da hepatite C.

"Já foram realizados 10 testes com pacientes [usando a terapia biofotônica]. Em oito casos, a nova técnica se mostrou capaz de reduzir significativamente a carga viral dos órgãos para transplante. Em outros dois, o procedimento praticamente eliminou a presença do vírus", contou Cypel.

Segundo Bagnato, a técnica foi inicialmente desenvolvida para tratar pulmões, mas já está sendo adaptada para fígado e rins. "Isso deverá melhorar muito as condições pós-operatórias dos transplantados e, ao mesmo tempo, permitirá aproveitar melhor órgãos que hoje, dependendo do nível de contaminação, são descartados", disse.

Descontaminação em dois passos

No caso do transplante de pulmão, o órgão a ser transplantado tem o sangue substituído por um líquido de preservação --procedimento conhecido como perfusão, desenvolvido no Canadá por Cybel.

"A perfusão consegue reduzir a carga viral e bacteriana, mas não eliminá-la. Isso obriga o paciente a ser submetido a um tratamento com antibióticos e antivirais nos três meses seguintes ao transplante", explicou o cientista.

"Pensando em formas de reduzir ainda mais ou eliminar a carga viral dos órgãos para transplante, especificamente o vírus da hepatite C, considerei a possibilidade de usar métodos de descontaminação por luz ultravioleta, que são comuns na descontaminação de sangue, por exemplo", contou Cypel.

"A técnica de descontaminação biofotônica desenvolvida nos laboratórios de São Carlos consiste de dois procedimentos específicos, que acontecem simultaneamente", explicou Cristina Kurachi, professora no IFSC e participante do projeto.

Durante o processo de perfusão, enquanto os pesquisadores fazem circular o líquido no pulmão a ser transplantado, adicionam-se moléculas no tecido pulmonar e a descontaminação biofotônica ocorre diretamente no órgão, que é exposto à radiação de luz vermelha com comprimento de onda de 660 nanômetros (nm). Essa radiação, por ação fotodinâmica oxidativa, elimina microrganismos aderidos ao tecido.

Ao mesmo tempo, a carga viral é também carregada pelo líquido circulante, que está em constante descontaminação por receber radiação ultravioleta de comprimento de onda de 254?nm.

"A função da radiação ultravioleta é destruir diretamente os microrganismos por meio do rompimento e da quebra das moléculas presentes em bactérias e vírus. Assim, as bactérias são mortas, e os vírus, totalmente inativados. Já com o banho de luz vermelha a ação de descontaminação ocorre de forma indireta, pela fotossensibilização", disse Kurachi

Essa terapia biofotônica envolve a introdução de um fármaco fotossensibilizador no líquido da perfusão. A ativação do fármaco requer moléculas de oxigênio (presente nos vírus) e irradiação de luz em um comprimento de onda específico (a luz vermelha de 660 nm). Uma vez que a droga fotossensibilizadora é banhada pela luz vermelha, suas moléculas absorvem energia. Tal energia é transferida às moléculas de oxigênio do vírus, que se tornam extremamente oxidantes, causando danos irreversíveis às membranas e ao material genético de diversas cepas virais, incluindo o vírus da hepatite C (HCV) e da Aids (HIV-1).

"O líquido de preservação da perfusão é especial, muito caro, composto de tal forma a preservar o órgão. Pelo seu custo, utiliza-se uma quantidade mínima nos procedimentos. Agora com a técnica e o equipamento desenvolvidos, com apenas um litro do líquido é possível circular no órgão por centenas de vezes, limpando por completo os contaminantes", disse Bagnato.

De acordo com ele, o aperfeiçoamento da terapia biofotônica, com a queda da carga viral e bacteriana cada vez mais acentuada, proporcionará melhores chances de sucesso dos transplantes. "Nosso objetivo é que a terapia com luz elimine totalmente os contaminantes bacterianos e virais dos órgãos a serem transplantados. Se conseguirmos, o uso do líquido perfusivo poderá mesmo vir a ser eliminado", disse.

Uma patente foi depositada no Canadá e já existe interesse de duas empresas internacionais em estudar a possibilidade da fabricação e comercialização do equipamento. A equipe trabalha agora para implantar o programa de descontaminação de fígados e rins no Brasil.

*Com informações da Agência Fapesp