Vírus do surto de febre amarela surgiu no Pará em 1980, diz estudo da USP
A origem do vírus responsável pelo recente surto de febre amarela, o maior dos últimos 40 anos, foi traçada por cientistas do IAL (Instituto Adolfo Lutz) e da USP (Universidade de São Paulo).
Por meio de estudo molecular do vírus da febre amarela encontrado em macacos mortos e em mosquitos, o grupo descobriu que a linhagem causadora do surto ocorrido do fim de 2016 ao início de 2018 teve origem no Pará, em 1980.
De lá, o vírus infectou macacos e se espalhou por toda a região amazônica, chegando a atingir a Venezuela e o Suriname. A partir do início dos anos 2000, sempre por meio da infecção de macacos, a doença migrou em direção às regiões Centro-Oeste e Sudeste, até finalmente chegar ao Estado de São Paulo, em 2013. As primeiras mortes de humanos em São Paulo ocorreram em 2016.
Resultados da pesquisa foram publicados na revista Scientific Reports. A investigação foi conduzida por Mariana Sequetin Cunha, pesquisadora no Núcleo de Doenças de Transmissão Vetorial do IAL e contou com a participação de cientistas do IMT (Instituto de Medicina Tropical) da USP e das universidades federais do Pará e de São Paulo.
Desde meados de 2016, foram confirmados 2.245 casos da doença, com 764 mortes, segundo dados do Ministério da Saúde. Até então, o ano 2000 tinha registrado o maior número de casos desde 1980, quando o governo começou a notificação. Na época, 40 mortes foram associadas ao surto.
Outra face do problema é a infecção de macacos pelos mesmos mosquitos que transmitem o vírus para humanos. Desde 2016, a vigilância epidemiológica dos estados do centro-sul do país --onde se concentra o surto-- coletaram carcaças de mais de 10 mil macacos encontradas em florestas e parques. Entre os animais afetados há bugios (ou guaribas), macacos-prego e diversas espécies de saguis. O vírus da febre amarela foi detectado em 3.403 deles, indicou o boletim epidemiológico de febre amarela do Ministério da Saúde.
"Acredita-se que mais de 90% dos macacos mortos sejam bugios. A espécie é extremamente suscetível à febre amarela", disse Ester Sabino, diretora do IMT-USP.
"Bandos de bugios com mais de 80 indivíduos foram inteiramente dizimados", disse Cunha, referindo-se ao ocorrido no fim de 2017, quando bugios do Parque Horto Florestal, na Zona Norte da cidade de São Paulo, foram mortos pela febre amarela.
A febre amarela é uma doença aguda causada por um vírus transmitido a macacos e humanos por meio da picada de mosquitos infectados. Uma das características do quadro é a icterícia, que provoca uma coloração amarelada na pele e nos olhos.
No ciclo de transmissão silvestre da febre amarela, o vírus circula entre os mosquitos dos gêneros Haemagogus e Sabethes e macacos bugios, pregos e saguis. Nesse ciclo, o homem é considerado um hospedeiro acidental, infectando-se ao entrar em áreas de mata e ambientes rurais.
No ciclo de transmissão urbana, a interação ocorre entre mosquitos da espécie Aedes aegypti e o homem, que nesse caso representa o hospedeiro principal. A febre amarela era endêmica nas regiões Sul e Sudeste no início do século 20. Foi graças a campanhas de vacinação, aliadas ao combate aos focos do Aedes, que a transmissão urbana foi erradicada.
Nas duas últimas décadas, foram registradas transmissões de febre amarela a humanos além dos limites da região amazônica, área onde a doença ainda é considerada endêmica. Foram registrados casos em humanos e em macacos na Bahia, Goiás, Minas Gerais, São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul.
A partir do fim de 2016, no entanto, a transmissão ganhou novas proporções. A dispersão do vírus alcançou a região da Mata Atlântica, bioma que abriga grande diversidade de macacos e onde o vírus não era registrado há décadas.
O novo estudo investigou amostras de tecidos (geralmente de cérebro, fígado ou baço) coletadas em todos os macacos mortos encontrados pela vigilância epidemiológica estadual e enviadas compulsoriamente para análise. Entre julho de 2016 e março de 2017, foram encaminhadas amostras de 430 macacos mortos. A grande maioria vinha de bugios (gênero Alouatta), macacos-prego (gênero Sapajus) e saguis (gêneroCallithrix), mas havia também alguns titis (Callicebus nigrifrons) e micos-leão-dourados (Leontopithecus rosalia).
Cunha e colegas investigaram cada um deles, em busca do vírus da febre amarela. Os resultados do estudo agora publicados são importantes para tentar compreender os caminhos bióticos que levaram o patógeno a sair da Amazônia e chegar ao centro-sul.
"O estudo descreve a evolução do vírus em diferentes espécies de macacos. Os saguis têm uma forma mais branda da doença, quando comparados aos bugios e aos macacos-prego" disse Sabino.
Nem todos os macacos mortos encontrados pela vigilância e encaminhados ao Adolfo Lutz morreram de febre amarela. "Alguns morreram atropelados e outros foram eletrocutados, por exemplo. Mas, a partir do momento em que um macaco é achado morto, seja por qual circunstância aparente for, o protocolo exige que amostras de tecido sejam enviadas para cá e analisadas", disse Cunha.
A presença do vírus foi descartada na maioria dos casos. E, mesmo na minoria em que o vírus foi confirmado, nem sempre foi possível afirmar que a morte decorreu da infecção. Macacos-prego apresentam certa suscetibilidade ao vírus, podendo ou não morrer da doença, enquanto os saguis são considerados resistentes. Já entre os bugios, a presença do vírus é praticamente uma sentença de morte.
A partir dos primeiros casos do surto, em meados de 2016 no norte do estado de São Paulo, o vírus avançou até atingir a região de Campinas, em meados de 2017. "O vírus não circulava em Campinas desde o início do século 20", disse Cunha.
O primeiro macaco infectado pelo vírus foi confirmado no Adolfo Lutz em julho de 2016. Era um sagui da região de Ribeirão Preto. Como a espécie é resistente, não poderia ter morrido de febre amarela, apesar de o vírus ter sido detectado em seus tecidos.
"O animal entrou em contato com o patógeno ao ser picado por um mosquito, mas acabou morrendo por outras causas. Nossa dúvida é saber se, apesar de resistentes, os saguis não poderiam estar servindo como reservatórios naturais do vírus", disse Cunha.
Entre o material coletado de 430 macacos --analisado por Cunha e colegas do IMT-USP-- o vírus da febre amarela foi confirmado em 67 animais, sendo 30 bugios, nove macacos-prego, sete saguis e 21 animais de gênero não identificado.
"Nesses 21 casos, o material não trazia a identificação do gênero do macaco, mas suspeitamos que quase todos eram bugios, devido à elevada concentração do vírus que foi detectada nos tecidos analisados", disse Cunha.
Linhagem de 40 anos
Os pesquisadores isolaram o vírus em cada uma das 67 amostras confirmadas, de modo a sequenciar seus genomas e compará-los com os genomas (disponíveis na internet) dos vírus de surtos pregressos de febre amarela, ocorridos entre 1980 e 2015, no Brasil e países vizinhos.
Com isso, foi possível traçar a origem da linhagem responsável pelo surto recente. Os resultados apontaram para a Venezuela e os estados de Roraima e Pará, o que está de acordo com estudos prévios sugerindo que o surto de 2016/2017 se disseminou a partir da região Norte, espalhando-se por meio de um longo ciclo silvestre contínuo de mosquitos e macacos até chegar à região Sudeste.
Os resultados do estudo ajudaram a desvendar uma trajetória evolutiva de largas proporções tanto temporais como espaciais. Em 1980, o vírus da febre amarela era endêmico no Pará. Desde lá, passou a se espalhar para outras regiões centrais do país.
Em 2000, atingiu os estados de Mato Grosso do Sul, Goiás e Minas Gerais e continuou se espalhando. Em 2004, havia chegado à Venezuela e, em 2009, à ilha caribenha de Trinidad e Tobago. Em 2010, estava presente em Roraima, no extremo norte do país, ao mesmo tempo em que uma cepa foi encontrada no Rio Grande do Sul, no extremo sul. O vírus da febre amarela chegou a São Paulo em 2013.
As análises moleculares de Cunha e colegas mostraram que, em 2017, o vírus da febre amarela se encontrava totalmente disseminado na maioria dos estados brasileiros e também no Suriname.
No momento, estão sendo realizados por outros pesquisadores do Adolfo Lutz e do IMT estudos semelhantes relativos aos macacos mortos coletados pela vigilância epidemiológica do Estado de São Paulo durante a segunda onda do surto de febre amarela (julho de 2017 a junho de 2018) e a terceira onda, iniciada em julho de 2018 e que deve terminar com o fim do período das chuvas e o inverno, quando praticamente cessa a reprodução dos mosquitos.
A depender do resultado desses próximos estudos, será possível determinar se o atual surto no Estado de São Paulo está chegando ao fim, ou se, apesar da cobertura vacinal maciça da população, o vírus continua se alastrando entre as populações de macacos, o que pode resultar em novos surtos epidêmicos.
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