Custo faz jovens racionarem insulina nos EUA; por que remédio lá é caro?
Histórias de jovens com diabetes tipo 1 que morrem por racionarem insulina e mães que se tornam ativistas por causa de medicamentos de alto custo mostram que cuidar da saúde é um desafio até para quem vive na maior economia do mundo
Jesimya Scherer-Radcliff, um garoto de 21 anos que vivia no Estado de Minnesota, nos EUA, tinha diabetes tipo 1. Como muitos americanos, tinha um seguro saúde que cobria parte de suas despesas com insulina, vital para quem convive com a condição. Mesmo assim, os custos eram altos demais. Para fazer a terapia caber no orçamento, ele passou a racionar as doses que ele conseguia adquirir, o que resultou num quadro de cetoacidose, uma complicação aguda que pode levar à morte. Foi o que aconteceu com Jesi e com pelo menos quatro outros conterrâneos com diabetes em julho deste ano.
A história de Jesi é apenas uma das várias contadas na página da campanha #insulin4all, criada pela organização sem fins lucrativos de apoio a pacientes T1International. Não são poucos os casos de jovens que morrem por não ter conseguido custear um tratamento médico em todo o mundo, mas eles chamam atenção quando o endereço é o país com a maior economia do mundo. Uma pesquisa publicada no ano passado pela T1International com mais de 1.400 indivíduos com diabetes tipo 1 de 90 diferentes países mostra que um a cada quatro americanos com diabetes tipo 1 racionam insulina por causa do alto custo da terapia. Nos países com renda média ou baixa, 22% responderam o mesmo, e nos desenvolvidos com exceção dos EUA, apenas 6,5% dos pacientes admitiram a prática.
Embora a insulina seja usada há quase um século, as formulações mais recentes são produzidas a partir de células vivas. Como qualquer medicamento biológico, depende de um processo de produção complexo e caro, que não permite a obtenção de genéricos de baixo custo. As versões trouxeram um avanço indiscutível para os pacientes: "A insulina análoga se assemelha mais a que é produzida pelo nosso organismo", justifica Fernanda Laranjeira, da ADJ Diabetes Brasil. As formulações antigas custam muito pouco, mas geram picos no organismo e nem sempre são bem toleradas pelos pacientes.
Um preço para cada caso
Como o sistema de saúde nos EUA é majoritariamente privado e cada estado possui suas próprias regras, rastrear preços de medicamentos e insumos não é algo tão simples. Tudo depende de onde o comprador mora, sua idade, se tem seguro saúde, quanto paga de franquia, qual a rede de farmácias e quem são as empresas intermediárias que negociam preços com elas para as seguradoras —as chamadas Pharmacy Benefit Managers, ou PBM. No caso do diabetes, o custo mensal também depende da quantidade de insulina utilizada, que varia de acordo com peso, altura e estilo de vida do paciente.
Apesar da inflação baixa, os preços dos medicamentos têm subido a cada ano. Para as insulinas, cuja produção é dominada por três farmacêuticas, os valores ficaram 300% mais altos na última década. Só para citar um exemplo: um frasco de 10 ml de insulina lispro ultrarrápida Humalog hoje custa em torno de US$ 330 (cerca de R$ 1.320), segundo pesquisa recente da GoodRx, que rastreia preços de farmácias. O relatório da T1International aponta que esse mesmo frasco custava US$ 130 em 2012 (ou R$ 520). No Brasil, o mesmo produto tem preço máximo estipulado pelo governo de R$ 125,30, de acordo com a Eli Lilly. A formulação também está disponível no SUS (Sistema Único de Saúde).
É verdade que poucos norte-americanos pagam os chamados "preços de lista", já que a maioria conta com planos de saúde privados, programas financiados pelo governo (como o Medicare, para aposentados e deficientes, e o Medicaid, para os pobres, e o Veteran Affairs, para as Forças Armadas). Ou, ainda, consegue ajuda de fundações ou programas de descontos oferecidos pelas próprias farmacêuticas. Mesmo assim, a conta da farmácia pesa. O gasto médio por cidadão é de US$ 1.200 por ano (cerca de R$ 4.800), segundo o levantamento mais recente da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD).
A fundadora do T1International, Elizabeth Pfiester, que cresceu nos EUA e agora vive no Reino Unido, dá uma ideia de valores: "Posso te dizer que aqui não pago nada para ter insulina e suprimentos, enquanto que, nos EUA, gastava ente US$ 800 e US$ 1.000 por mês, e com plano de saúde". Em reais, isso seria o equivalente a cerca de R$ 4.000. Quanto ela gastaria no Brasil? Como no Reino Unido, os análogos de insulina são oferecidos pelo sistema público.
Fernanda, da ADJ, conta que não gasta um centavo com o medicamento. Mas ela usa uma bomba de infusão de insulina que custa em torno de R$ 1.000 (e não está disponível no SUS), e paga cerca de R$ 250 por mês por insumos como agulhas, cânulos, tiras para medir glicose etc., porque obtê-los de graça é burocrático. Por sua atuação na ADJ, ela comenta que não é raro os pacientes enfrentarem atrasos no fornecimento. E acrescenta que muitas tecnologias para facilitar o controle da doença comuns nos EUA ainda são inacessíveis para os brasileiros.
O custo da fibrose cística
A Patients for Affordable Drugs é outra organização sem fins lucrativos que tem se destacado na luta por medicamentos mais baratos não só para pacientes com diabetes, mas diversas outras doenças. Seu fundador, David Mitchell, sofre de mieloma múltiplo, um tipo de câncer cujo tratamento demanda cerca de US$ 650 mil por ano. Aposentado, ele conta com o Medicare e pode arcar com um plano suplementar para ter desconto em medicamentos. Mesmo assim, decidiu lutar por quem não tem esse privilégio.
Juliana Keeping se juntou ao grupo por causa do filho, que sofre de fibrose cística, uma doença genética sem cura que tem como característica o acúmulo de secreção nos pulmões e em outros órgãos. Com um ano de idade, os médicos sugeriram que ele recebesse o palivizumabe, uma droga que previne infecções pelo vírus sincicial respiratório —comuns na infância, esses quadros podem ser fatais para pacientes com doenças crônicas. Seriam necessárias cinco injeções de US$ 1.000 (R$ 4.000) cada uma, e o plano negou cobertura.
"Ninguém tem US$ 5.000 sobrando na conta", relata, lembrando que o tratamento da fibrose cística já envolve um custo mensal altíssimo. Depois da terceira internação do filho, ela decidiu que não desistiria tão fácil de lutar e abraçou o ativismo.
No Brasil, o palivizumabe é coberto pelo SUS, bem como algumas outras drogas e suplementos utilizados por pacientes com fibrose cística. A cirurgiã-dentista Priscila Bertoncini, mãe de duas crianças com a condição, conta que, se não tivesse ajuda do governo, a família teria que desembolsar cerca de R$ 30 mil por mês. "Nem que eu trabalhasse 24 horas e fizesse plantões no final de semana conseguiria pagar", observa. Mas nem tudo é perfeito: "Sempre enfrentamos problemas de desabastecimento de medicações, principalmente quando estão em fase de licitação", diz.
O apoio de associações de pacientes também é fundamental para Priscila e tantas outras famílias: "Se isso acontece conosco aqui em São Paulo, imagine o que enfrentam os brasileiros do Norte e do Nordeste?" Ela própria vinha lutando para comprar um colete para fisioterapia respiratória que custa quase R$ 40 mil e não é coberto pelo SUS ou planos de saúde. No fim, conseguiu uma doação de uma conhecida que vive nos EUA, onde o equipamento é coberto pelo seguro saúde.
Terapias de alto custo
Nos últimos anos, novas terapias gênicas foram aprovadas para impedir a progressão da fibrose cística, com resultados animadores. Um dos produtos, o Orkambi (ivacaftor + lumacaftor) custa US$ 260 mil por ano nos EUA (mais de R$ 1 milhão) e muitas operadoras de saúde têm questionado esse valor. No Brasil, as drogas chegaram ao mercado há pouco tempo e ainda não foram incorporadas ao SUS. O custo anual do tratamento é de aproximadamente R$ 500 mil.
"Temos no Brasil alguns poucos pacientes usando esses medicamentos graças a ações na Justiça, mas a grande maioria das pessoas elegíveis para o tratamento não está conseguindo fazer uso dessas tecnologias", conta Cristiano Silveira, da Aliança Fibrose Cística Brasil. A entidade conta com 22 associações e, ao lado do Instituto Unidos Pela Vida, tem feito reuniões com órgãos do governo para tentar acelerar a incorporação.
"O que nós esperamos é que esses medicamentos, que já estão em uso há anos lá fora, possam também ajudar os pacientes daqui, onde a média de expectativa de vida [dos pacientes com fibrose cística] é menor que a metade da observada em países como os Estados Unidos e o Canadá", informa Silveira.
Em reuniões com a indústria farmacêutica, as associações de pacientes sempre ouvem o argumento de que os preços refletem o alto custo das pesquisas e tecnologias envolvidas na produção de novas drogas. Sem esse retorno, não seria possível obter terapias novas e mais eficazes.
"O preço dos medicamentos leva em consideração o enorme custo do desenvolvimento desses tratamentos, o risco e o investimento contínuo necessário para trazer medicamentos para doenças raras e pouco conhecidas, como a fibrose cística", declara a Vertex, farmacêutica que produz o Orkambi. A companhia acrescenta que nos últimos cinco anos investiu 73% de suas despesas operacionais em pesquisa e desenvolvimento.
Onde começa a negociação
Os grupos T1International e Patients for Affordable Drugs acreditam que a indústria farmacêutica impõe preços astronômicos por um motivo muito simples: porque elas podem fazer isso. "Os EUA são o único país do Primeiro Mundo que não faz controle de preços quando o medicamento entra no mercado", afirma Gonzalo Vecina Neto, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP (Universidade de São Paulo) e ex-presidente da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
"Nos EUA, o governo federal não tem autoridade para negociar preços com a indústria dentro do programa Medicare para aposentados e idosos", esclarece Robert Field, professor dos departamentos de Direito e de Administração e Políticas de Saúde da Universidade Drexel, na Filadélfia (EUA). Alguns políticos querem permitir que o Medicare possa negociar com as empresas, assim como já é permitido ao departamento responsável pela saúde dos veteranos. O Medicaid (para pobres) tem os preços mais baixos garantidos, mas cada Estado possui políticas específicas de acesso às drogas.
No Brasil, o preço de todos os medicamentos são negociados no momento em que entram no mercado. Quem estabelece o teto é a Cmed (Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos), um órgão interministerial coordenado pela Anvisa. Depois, quem avalia se uma droga terá subsídio do governo ou não é a Conitec (Comissão Nacional de Incorporações de Tecnologias no SUS), após análise de efetividade em relação a outros tratamentos já incluídos no rol. Será que o brasileiro perde acesso a terapias mais eficazes por causa dessa política? Gonzalo Vecina Neto garante que não. Países como o Reino Unido e o Canadá fazem o mesmo.
Solução difícil
O presidente Donald Trump tem feito ataques às farmacêuticas desde que assumiu. Recentemente, anunciou a intenção de liberar a importação de medicamentos do Canadá para forçar a baixa dos preços. Muitos norte-americanos já cruzam a fronteira para comprar certos remédios no país vizinho, que tem preços subsidiados pelo governo. Mas se houver um movimento em massa, é provável que os canadenses fiquem sem medicamentos. Mas não há mudanças concretas por enquanto.
No caso do diabetes, a única novidade é que ao menos um Estado conseguiu estabelecer um teto de preços para a insulina —a partir de janeiro, os copagamentos de pacientes do Colorado não poderão ultrapassar US$ 100 por mês. A T1International vê com cautela a aprovação do projeto, pois é provável que a medida resulte em aumento de mensalidades, franquias e preços de outros medicamentos para todas as pessoas que vivem na região. Como dizem no país: "There is no free lunch (não existe almoço grátis)".
O que pensa a população geral? Segundo pesquisa divulgada em fevereiro pela Kaiser Family Foundation, cerca de 80% dos norte-americanos acham que os preços dos medicamentos são injustificáveis e que o lucro das farmacêuticas contribui mais para os valores do que os gastos com pesquisa e desenvolvimento. Por outro lado, 59% acreditam que as drogas lançadas nos últimos 20 anos melhoraram significativamente a vida das pessoas.
Na opinião de Juliana Keeping, é ótimo poder contar com drogas inovadoras para doenças raras, mas não faz sentido que pouca gente tenha acesso a elas. O professor Robert Field, que tem dois livros publicados sobre o sistema de saúde no país, faz um bom resumo da situação: "Os EUA são o melhor lugar para estar se você tem uma doença terminal e um bom seguro saúde, mas não o melhor para quem quer se manter saudável."
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