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Estudo que aponta carne como segura à saúde é mentiroso, mas ela não é vilã

O excesso de carne vermelha e processada faz, sim, mal à saúde - iStock
O excesso de carne vermelha e processada faz, sim, mal à saúde Imagem: iStock

Gabriela Ingrid

Do VivaBem, em São Paulo

24/10/2019 04h00

No último dia de setembro deste ano, um comunicado foi distribuído à imprensa com o título "Não há necessidade de reduzir o consumo de carne vermelha ou processada para obter uma boa saúde". O artigo falava de um estudo publicado naquele dia em uma grande revista científica, a Annals of Internal Medicine, e se espalhou por agências de notícias do mundo inteiro com chamadas do tipo "A carne não é mais uma vilã".

Mas antes que os amantes de um bom hambúrguer pudessem incluir o alimento em todas as refeições possíveis, na mesma semana a Associação Cardíaca Americana, a Sociedade Americana do Câncer e a Escola T.H. Chan de Saúde Pública da Universidade Harvard criticaram ferozmente as conclusões do estudo. "Do ponto de vista da saúde pública, é irresponsável e antiético emitir diretrizes alimentares equivalentes à promoção do consumo de carne, mesmo que ainda exista alguma incerteza quanto à força das evidências", escreveram os especialistas de Harvard.

Problemas no estudo

O estudo que causou a polêmica confronta diretrizes alimentares mundiais que recomendam limitar a ingestão de carne vermelha e processada devido à associação de seu consumo com o desenvolvimento de doenças cardíacas, diabetes ou câncer. Mas não foi só por isso que as instituições de saúde e universidades o criticaram.

A pesquisa selecionou 24 artigos para comparar os resultados, sendo 12 ensaios clínicos. Segundo a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), um ensaio clínico é um estudo sistemático de medicamentos em voluntários humanos que seguem estritamente as diretrizes do método científico. No caso da pesquisa em questão, ao invés de um medicamento foram analisados os hábitos alimentares.

Churrasco, carne, tábua, picanha - iStock - iStock
Especialistas de Harvard consideraram a publicação desses estudos e as diretrizes de carne em uma grande revista médica como "lamentável"
Imagem: iStock

"Diferentemente das drogas, fatores dietéticos, de estilo de vida e ambientais geralmente não são passíveis de grandes ensaios clínicos randomizados de longo prazo", escreveram os especialistas de Harvard.

Segundo eles, os cientistas aplicaram um critério chamado GRADE (Classificação das Recomendações de Desenvolvimento e Avaliação), desenvolvido principalmente para avaliar evidências de ensaios com drogas e não com alimentos.

Aline Martins de Carvalho, doutora em nutrição em saúde pública pela Faculdade de Saúde Pública da USP (Universidade de São Paulo) e coordenadora do Sustentarea (núcleo de extensão da USP sobre alimentação sustentável), diz que revisões sistemáticas têm alguns problemas, principalmente comparar coisas que não são comparáveis. "Muitas vezes eles usam estudos que utilizaram métodos diferentes como se fossem a mesma coisa. E não é."

Os ensaios alcançaram apenas pequenas diferenças entre a ingestão de carne vermelha nos grupos intervenção e controle, equivalentes a cerca de uma a três porções por semana, o que já é um consumo considerado baixo, em comparação com a média americana. Naquele país, come-se cerca de 4,5 porções de carne vermelha por semana, de acordo com o Centro de Controle e Prevenção de Doenças.

"Este é um excelente exemplo em que é preciso olhar além das manchetes e das conclusões abstratas", alertam os especialistas de Harvard. "É importante que jornalistas, profissionais de saúde e pesquisadores olhem além das manchetes sensacionalistas e até dos resumos dos trabalhos para verificar as evidências por trás das alegações." Segundo eles, as recomendações existentes são baseadas em evidências sólidas de estudos controlados, bem como estudos epidemiológicos de longo prazo.

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O próprio estudo considerou que suas estimativas provavelmente se aplicam predominantemente à carne vermelha, e não à processada, como o título sensacionalista dizia
Imagem: zeljkosantrac/Istock

Conflito de interesse

As críticas ao estudo não pararam por aí. Uma semana depois da divulgação da pesquisa, o jornal The New York Times revelou que o principal autor do estudo tem laços de pesquisa anteriores com a indústria de carnes e alimentos.

Bradley C. Johnston não contou no formulário de divulgação que em 2016 foi autor sênior de um estudo patrocinado pelo Ilsi (International Life Sciences Institute), grupo comercial apoiado por empresas do agronegócio, de alimentos e farmacêuticas cujos membros incluem Coca-Cola, PepsiCo, McDonald's e Cargill (um dos maiores processadores de carne bovina dos Estados Unidos). Na época, o estudo também foi polêmico no meio científico: ele questionava as diretrizes sobre o consumo de açúcar.

Flávia De Conti, doutora em nutrição em saúde pública pela Faculdade de Saúde Pública da USP, diz que a explicação por trás desses patrocínios enviesados é óbvia: a indústria de alimentos quer publicar apenas os resultados favoráveis ao seu produto. "Se estamos falando da indústria da carne, principalmente nos dias de hoje, em que a consciência ambiental tem crescido muito entre os jovens, a indústria que financiar a pesquisa vai querer mostrar dados a favor do consumo de carne", diz.

Segundo De Conti, a melhor forma de a população se "proteger" desse tipo de estudo é buscar por fontes de informações sérias, isso é, com o próprio profissional de nutrição.

Mas no caso dos estudos da carne e do açúcar, ambos foram publicados em uma revista científica renomada, o que confundiu até jornalistas. "É desconcertante que a revista publique diretrizes alimentares desenvolvidas por um painel autonomeado equivalente à promoção do consumo de carne, apesar de suas próprias descobertas de que o alto consumo é prejudicial à saúde", escreveram os especialistas de Harvard.

De acordo com eles, deve-se notar também que a revista pode ter exacerbado a situação divulgando um comunicado à imprensa intitulado "Novas diretrizes: não há necessidade de reduzir o consumo de carne vermelha ou processada para obter uma boa saúde". "Essas manchetes sensacionalistas podem causar enorme confusão entre profissionais de saúde, jornalistas e o público em geral." Por esse motivo, o questionamento deve sempre existir, inclusive da imprensa.

Além disso, De Conti alerta que a população deve entender que não existem alimentos milagrosos ou alimentos que, quando ingeridos, farão mal imediatamente. "Uma alimentação saudável é uma alimentação equilibrada, sem proibições, que siga preceitos culturais/religiosos/afins, tendo como base o consumo de alimentos in natura ou minimamente processados."

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Do ponto de vista da saúde pública, é irresponsável e antiético emitir diretrizes alimentares equivalentes à promoção do consumo de carne, mesmo que ainda exista alguma incerteza quanto à força das evidências
Imagem: iStock

Carne é vilã ou não?

"Não acho que a carne seja vilã. Dentro da evolução da humanidade ela é essencial para a nossa sobrevivência. Agora, o excesso de carne, associado ao excesso de gordura e sal, aí sim vai ser ruim", diz Celso Cukier, nutrólogo da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein.

Segundo ele, não só a carne, mas qualquer coisa em excesso faz o corpo trabalhar mais para absorver e utilizar. E isso faz mal. "O excesso de carne tem sido associado a uma série de doenças há muito tempo. A gordura saturada é ligada ao aumento de colesterol e problemas de circulação, além de alterações da microflora intestinal, favorecendo o câncer de intestino."

Ao mesmo tempo, a falta de proteína também favorece negativamente essas situações. "O consumo equilibrado de carne pode melhorar o colesterol, já que 30% das gorduras da carne podem servir para o colesterol. Tanto o excesso quanto a ausência são desfavoráveis", diz Cukier.

Mas qual seria esse equilíbrio?

A recomendação do Fundo Mundial para Pesquisa em Câncer é que o consumo de carne vermelha e processada seja de, no máximo, 500 g por semana, o que dá cerca de 70 g por dia. O brasileiro consome, em média, 80 a 90 g por dia de carne vermelha ou processada, ou seja, precisa reduzir. "É preciso mostrar qual o impacto do alto consumo de carne na saúde e no meio ambiente e como ela pode reduzir, por qual alimento ela pode substituir", diz Carvalho.

Segundo ela, os melhores substitutos à carne são as proteínas de origem vegetal (feijão, soja, ervilha e lentilha) ou animal (frango, peixe, ovo). "É importante reduzir não só a quantidade, mas também a frequência. Se ela come 300 g no bife, reduz para 150 g em menos vezes na semana. Mas se ela consome isso uma vez por semana, não temos que falar para ela reduzir."

A percepção do consumidor para quem se está recomendando a redução também é importante. "No Brasil, por exemplo, temos alguns bolsões de pobreza em que a prevalência de anemia é muito alta. Falar para esse grupo de pessoas reduzir o consumo de carne é complicado, porque esse alimento é rico em ferro, em várias vitaminas e minerais que são importantes principalmente para crianças e mulheres grávidas", diz Carvalho.

Já em outros locais, onde o consumo é muito alto, falar sobre redução é essencial. E não só pelos danos do excesso à saúde, mas também pelo impacto ambiental. O estudo em questão declarou "considerações de impacto ambiental" fora do escopo de suas recomendações. "Essa é uma oportunidade perdida, porque as mudanças climáticas e a degradação ambiental têm efeitos sérios na saúde humana e, portanto, é importante considerar ao fazer recomendações sobre dieta, mesmo que isso seja tratado separadamente dos efeitos diretos na saúde individual", dizem os especialistas de Harvard.

Segundo Carvalho, no Brasil, por exemplo, 50% do impacto ambiental alimentar vem da carne bovina. "Falar em redução do consumo de carne no contexto brasileiro pode ter impacto na saúde dessas pessoas e no meio ambiente. A carne está relacionada a mudanças climáticas e na redução da biodiversidade, já que há grande quantidade de uso de água e terra."

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