Mentir para o próprio terapeuta, será que tem mal nisso?
Resumo da notícia
- O paciente nem sempre está pronto para reconhecer suas próprias verdades
- Vergonha, negação e medo de reviver um trauma podem levar à mentira
- A terapia pode auxiliá-lo a suportar a carga emocional envolvida nesse ato
A decisão de fazer uma terapia costuma ser algo muito particular, ou seja, não adianta a prescrição se o próprio paciente não se sentir motivado a enfrentar esse desafio. Afinal, durante as sessões, muitos temas virão à tona sendo que a maioria vai mexer em traumas, feridas e dificuldades. E omitir ou mentir nesse processo não deve provocar julgamento.
A psicóloga e psicanalista Luciana Balestrin Redivo Drehmer, professora do curso de psicologia da PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul) explica que, nem sempre, o paciente está pronto para viver o que propõe, ou seja, reconhecer suas próprias verdades. "Durante o tratamento, muitos pacientes vão diminuindo a resistência para olhar coisas que antes não estavam dispostos a encarar e, muitas vezes, não por falta de vontade, mas porque traz dor", ressalta.
Mentira inconsciente
Existem situações em que o paciente mente ou evita determinados assuntos de maneira inconsciente. Muitos fatos podem vir à tona de forma fantasiosa ou distorcida, pois é a verdade do paciente naquele momento. "Há situações em que ele mente para si mesmo, pois não quer buscar ferramentas para avançar mais", diz Drehmer. E cabe ao profissional respeitar esse tempo, sem cobranças ou julgamentos.
Isso porque alguns sinais podem deixar claro que existe uma resistência como um discurso truncado, um lapso de memória ou ir fugindo do tema proposto. Tais atitudes durante a sessão podem apontar que o paciente não está pronto ou ainda não quer falar sobre algo.
"Os problemas mentais ou psicológicos não têm objetividade ou racionalidade. Mentimos e, às vezes, nem nos damos conta disso", destaca o psiquiatra Oswaldo Ferreira Leite Netto, coordenador do serviço de psicoterapia do IPq (Instituto de Psiquiatria) da USP (Universidade de São Paulo). E mesmo quando o paciente se dá conta, isso pode não ser suficiente para o enfrentamento da situação.
Por isso, a terapia deve ajudar o indivíduo a desenvolver, amadurecer, adquirir conhecimento e sabedoria. Ele vai conquistando jogo de cintura para superar essa resistência e lidar com a vida como ela é. "Buscamos a verdade, porém essa busca se depara com o conflito", destaca Leite Netto.
Mentira convicta!
A decisão em não falar, mudar o rumo da conversa e até mentir pode ser também consciente. Como uma escolha mesmo. Vergonha, não querer lidar com as consequências, negação, medo de reviver um trauma ou até necessidade de agradar podem levar à mentira.
"O cenário de confiança ainda não foi estabelecido e o paciente precisa sentir-se seguro de que o terapeuta não vai desistir dele", justifica Drehmer.
Por isso, o psicanalista Leonardo Câmara, professor do departamento de psicologia da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos) afirma que, em geral, a mentira tem a função de proteger o indivíduo de uma experiência ruim. "A vergonha, por exemplo, é um sentimento muito doloroso que consiste em tentarmos esconder, da visão e do julgamento das outras pessoas, algo negativo, repulsivo e socialmente inadequado que faz parte de nós", acrescenta.
E na percepção do paciente, esse algo, caso seja descoberto, pode levar a romper laços. Portanto, pode ser uma forma encontrada para não ser rejeitado pelo terapeuta e não ser submetido a uma experiência de vergonha e de humilhação diante dele.
Assim como uma pessoa que mente para agradar o terapeuta também busca autoproteção, faz isso por medo de decepcioná-lo. "Pode ser que agia dessa forma na infância, mentindo aos pais temendo que ficassem desapontados e não o amassem mais", reforça Câmara.
Do mesmo modo, uma pessoa que não quer lidar com as consequências de um ato imoral, pode mentir para se proteger de punição ou retaliação, talvez por ter sido repreendido de uma forma muito violenta quando criança.
Neste caso, segundo Leite Netto, mentir não seria necessariamente defeito ou falha moral, mas uma defesa, uma forma de evitar mais sofrimento ou frustração. "Uma terapia pode ser um processo lento, é uma investigação, não um jogo de perguntas e respostas. Por isso, deve ser trabalhado com tanta delicadeza", completa o psiquiatra.
Tudo ao seu tempo
De acordo com Drehmer, pode levar um tempo até que o paciente esteja pronto para tocar em determinados assuntos. E o indivíduo não precisa sentir-se culpado por não conseguir abordar tudo que gostaria. "O tratamento é construído ao longo do tempo", alerta a psicóloga. Nesse processo, a pessoa vai identificando questões e entendendo o julgamento que faz de si própria. E não é nada fácil reencontrar fenômenos e memórias que estavam escondidos.
No entanto, o efeito da mentira, que pode inclusive ser esperado e ansiado pelo indivíduo, é preservar as coisas como estão, impedindo possíveis mudanças. Na prática, a mentira não é considerada como algo que atrapalha, dificulta ou compromete o andamento da terapia, mas antes algo esperado e que tem uma função na vida do paciente.
"O que a terapia pode fazer é ajudar o paciente a entender o motivo pelo qual ele mente e auxiliá-lo a suportar a carga emocional envolvida nesse ato e responsabilizar-se pelos efeitos que pode acarretar, tanto nas suas relações quanto na sua vida interior", finaliza Câmara.
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