"Já temos doentes por causa do cigarro eletrônico", acredita médica do Inca
É só andar pelas ruas badaladas de São Paulo à noite para perceber que o cigarro eletrônico é moda. O cheiro não é ruim como o do cigarro tradicional, mas a fumaça é maior. Proibido no Brasil desde 2009, o dispositivo entra na categoria dos ilegais fáceis de achar. A reportagem encontrou os aparelhos à venda em bancas de jornal e vários sites, com preços em torno de R$ 200.
A moda em si escancara a falta de regulação, mas o que fez os vaporizadores ganharem destaque recentemente, na verdade, foram as mortes relacionadas ao seu uso. Até 34 pessoas falecerem nos EUA, de acordo com o CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças), que solta um relatório sobre o problema toda semana. No último deles, divulgado na segunda-feira (28), foram contabilizados 1.604 casos de Evali, nome dado à doença pulmonar relacionada ao uso de cigarro eletrônico.
Tania Cavalcante, médica do Inca (Instituto Nacional do Câncer) e secretária-executiva da Conicq (Comissão Nacional para Implementação da Convenção-Quadro para Controle do Tabaco), acredita que no Brasil há uma subnotificação de Evali —ou seja, casos da doença ocorrem, mas não são avisados aos órgãos competentes. "Mas com certeza já existem casos parecidos [aos de Evali nos EUA] por aqui", sugeriu Cavalcante, durante o Simpósio Internacional Sobre Formas Alternativas de Exposição ao Tabaco, realizado no mesmo dia em que o CDC divulgou o relatório com números atualizados do problema no país norte-americano.
Em setembro deste ano, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) solicitou a hospitais e profissionais de saúde os relatos de problemas relacionados ao uso de cigarros eletrônicos. Ao todo, 255 instituições foram acionadas. O mesmo pedido foi feito ao Conselho Federal de Medicina (CFM), no sentido de que os médicos estejam atentos e relatem quaisquer suspeitas.
Segundo a agência, a ação tem como objetivo reunir informações para antecipar e prevenir uma crise de saúde como a que tem sido noticiada nos Estados Unidos.
José Roberto Jardim, professor de pneumologia da Escola Paulista de Medicina da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), também acredita que estamos na fase de subnotificação. Segundo o médico, duas coisas podem explicar a descoberta recente do Evali nos EUA e, possivelmente, no Brasil e um futuro próximo: ou a doença já existia, mas não a reconhecíamos porque não conseguíamos juntar as coisas (antes os casos eram tratados como apenas uma inflamação pulmonar); ou as pessoas começaram a colocar substâncias junto à nicotina e só agora e essa mistura está gerando uma reação diferente do que se esperaria.
"Assim é a medicina. Depois de anos conseguimos juntar as peças, assim como foi com o HIV", diz Jardim.
"Comecei para deixar de fumar e hoje só uso o 'vape'"
Quando os dispositivos eletrônicos surgirem, um dos trunfos usados pela indústria para incentivar seu uso foi a premissa de que eles ajudariam quem desejava parar de fumar. A ideia era que as pessoas usassem esses aparelhos como substitutos parciais ou totais da versão normal do cigarro, em vez do chiclete ou pastilha de nicotina, medicamentos ou vários outros métodos mais consagrados.
Segundo Cavalcante, a criação dos cigarros eletrônicos deve ser encarada com suspeita. "A indústria não é 'boazinha'. Ela está pensando no mercado, em como vender seu produto. O mercado de nicotina está em retração devido à queda no consumo de seu principal vetor, que é o cigarro. Portanto, eles introduziram novos produtos", diz ela.
O Brasil e a Turquia se tornaram referências internacionais no combate ao tabagismo, de acordo com a OMS (Organização Mundial de Saúde), tendo alcançado o mais alto nível das seis medidas de controle do tabaco. São elas: monitorar o uso do tabaco e as políticas de prevenção; proteger as pessoas contra o tabagismo; oferecer ajuda para parar de fumar; avisar sobre os perigos do tabaco; aplicar proibições à publicidade, promoção e patrocínio do tabaco; e aumentar os impostos sobre o tabaco.
De acordo com o Vigitel (Sistema de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico), em 2018, apenas 9,3% dos brasileiros afirmaram ter o hábito de fumar. Em 2006 eram 15,7%.
A especialista em dados Beatriz Ferraz, 26, está entre os jovens que usaram o 'vape' para deixar de fumar. O maço diário foi substituído pelo dispositivo, adquirido em um site. O produto escolhido, entretanto, não tem nicotina. "Eu me sinto muito melhor do que com o cigarro. O 'vape' nunca me provocou tosse, nada. Já me deu aquela sensação de peito cheio de tanto fumar, mas foi porque exagerei. Nada perto do cigarro."
A sensação de peito cheio tem um motivo. Além da quantidade alta de fumaça presente nesses produtos, um estudo feito em camundongos e publicado em setembro no periódico The Journal of Clinical Investigation mostrou que mesmo as soluções livres de nicotina levam substâncias danosas ao pulmão.
Embora não tenha sido o mesmo tipo de dano observado nos ratos expostos à fumaça derivada da queima do tabaco, os pesquisadores descobriram um acúmulo anormal de gordura nos pulmões, principalmente em células que trabalham para detectar e destruir organismos prejudiciais.
"Em resumo, nossas descobertas experimentais revelam que, independentemente da nicotina, os vapores de cigarro eletrônico por inalação crônica reduzem a capacidade das células imunológicas residentes de responder à infecção, aumentando a suscetibilidade a doenças", escreveram os autores.
O cigarro eletrônico é "menos pior"?
Diferentemente de Ferraz, Fábio Carvalho* decidiu largar o cigarro eletrônico após uma tentativa como substituto ao tabaco. "Tive curiosidade em experimentar esse e-cigarette e, como vi que tinha muito equipamento pirata trabalhando com isso, eu quis ter certeza de que ia comprar algo de qualidade. É um produto que fica muito quente e muito próximo da boca", diz ele. Quando foi aos EUA, adquiriu o Juul (um e-cig muito famoso por lá, com nicotina). "Não usei por muito tempo. Em uma das vezes em que estava fumando, a essência vazou e na mesma época comecei a ver uma 'porrada' de conteúdo sobre danos à saúde", conta.
Depois do episódio, Carvalho desistiu de parar de fumar e voltou ao tabaco. "Tenho feito outras tentativas para abandonar o cigarro, por exemplo, só fumo depois das 18h30 e me obrigo a dar um intervalo de pelo menos 40 minutos entre cada cigarro. Como ainda não se sabe ao certo qual mal o e-cig faz e se ele é seguro, prefiro parar de fumar de outro jeito."
Segundo Hayden McRobbie, médico do Centro de Medicina Ambiental e Preventiva da Queen Mary University of London, apesar de o cigarro eletrônico ser proibido no Brasil, é inegável que as pessoas estão o usando. "O que o poder público pode fazer é assegurar que os consumidores tenham informação correta sobre o 'vaping'", disse, durante o simpósio.
No Reino Unido, onde o cigarro eletrônico não é proibido, McRobbie sugere o uso do dispositivo para quem deseja parar de fumar. "É óbvio que parar de fumar é a melhor coisa que os fumantes podem fazer à sua saúde, mas as pessoas também precisam saber que o cigarro eletrônico pode estar associado a uma redução de riscos à saúde. Os ex-fumantes poderiam ser aconselhados a parar de usar o vape assim que eles se sintam capazes de não voltar a fumar."
Já Jardim ressalta que existem outras medidas mais seguras para deixar de fumar. "Temos vários programas eficazes no Brasil. A pessoa precisa saber que não vai ser o dispositivo que vai fazê-la parar de fumar, afinal, ela continuará fumando algo que é prejudicial de alguma forma."
Substâncias presentes nos cigarros eletrônicos que são perigosas à saúde
Aerosol (vapor):
Em altas temperaturas e tragadas frequentes, propilenoglicol e glicerina vegetal podem formar acetaldeído, formaldeído e acroleína, substâncias relacionadas ao aumento de risco de câncer;
Nitrosaminas (compostos químicos cancerígenos) especificas do tabaco podem estar presentes em extratos do tabaco e nicotina;
Químicos oxidativos.
Bateria e bobina:
Metais, como níquel, crômio, cádmio, chumbo, estanho, silicatos.
Líquido:
Nicotina;
Sabores (benzaldeído, nos sabores de morango, cinamaldeido, nos de canela, diacetil, nos de manteiga).
De acordo com Cavalcante, o Brasil proibiu os novos produtos para não cometer o mesmo erro do passado. "O tabagismo é um equívoco histórico. Estamos correndo atrás do prejuízo agora", diz. A médica conta que a indústria do tabaco omitiu o malefício do cigarro durante décadas. "Depois que o vício se tornou uma epidemia, ninguém segurou mais, porque proibir o tabaco economicamente é muito difícil, o lobby é pesadíssimo. Vamos correr atrás do prejuízo com uma regulação global de redução de danos. Quiçá algum dia a gente possa tirar esse produto também e não deixar outro entrar."
*A pedido do entrevistado, a reportagem mudou seu nome
Podcasts do UOL
Ouça o podcast Maratona, em que especialistas e corredores falam sobre corrida. Os podcasts do UOL estão disponíveis em uol.com.br/podcasts, no Spotify, Apple Podcasts, Google Podcasts e outras plataformas de áudio.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.