Acre vive surto de doença causada por medo de vacinação
Medo de vacinação pode fazer com que uma pessoa saudável tenha convulsões? Um relatório do IPq (Instituto de Psiquiatria) do HCFMUSP (Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo) mostra que não só isso é possível, como dezenas de casos do tipo aconteceram no Acre nos últimos anos, sempre afetando crianças e adolescentes que tomaram a vacina contra o HPV. Os médicos avaliaram jovens acrianos com sintomas que iam de febre e mal-estar a desmaios e convulsões. A conclusão: os sintomas não têm nenhuma causa biológica ligada à vacina.
A equipe médica do IPq fez a avaliação a pedido do Ministério da Saúde. "O ministério nos procurou no início de 2019 em função de uma série de reações adversas graves à vacina de HPV que ocorreram no período entre 2014 e 2017, e que estavam sem elucidação diagnóstica", conta José Gallucci Neto, médico que integra a equipe e diretor da unidade de Videoeletroencefalograma do IPq. Foram analisados 74 casos que haviam sido notificados pela Secretaria de Estado da Saúde do Acre. Devido à dificuldade de conseguir um diagnóstico, as famílias haviam assumido de antemão que os sintomas vinham de sequelas neurológicas causadas pela vacina. Porém, os exames descartaram essa possibilidade.
A partir da triagem desses 74 casos, os médicos filtraram os 16 com sintomas mais graves e característicos para uma extensa etapa de avaliação no Hospital das Clínicas, em São Paulo. Doze jovens já haviam sido avaliados até o final de outubro e outros quatro aguardavam a autorização do Ministério da Saúde para viajar.
"A maioria dos pacientes apresentava um conjunto de manifestações clínicas neurológicas atípicas, normalmente se iniciando por um quadro de dor generalizada, principalmente cefaleia e dores nas pernas, seguido por episódios de desmaios repetidos. Uma parcela desses pacientes acabou evoluindo para apresentar crises de tipo convulsivo", completa o psiquiatra Renato Luiz Marchetti, coordenador do projeto de neuropsiquiatria do instituto.
As meninas e meninos vieram a São Paulo acompanhados de suas mães e passaram um período de 15 dias internados no Serviço de Videoeletroencefalografia. O serviço, especializado, combina o monitoramento da atividade cerebral com acompanhamento em vídeo para melhor diagnosticar casos que chegam ao hospital classificados como epilepsia. Os jovens também passaram por uma bateria de exames, que incluiu ressonância magnética do crânio e exame de líquor (para descartar a possibilidade de encefalite, uma possível causa orgânica para as convulsões), angiorressonância, testes metabólicos, avaliação psicológica e mesmo teste de gravidez.
Surto de doença psicogênica
Os resultados dos exames com os pacientes mostraram que, entre os 12 casos avaliados até o final de outubro, dez não tinham epilepsia nem qualquer doença neurológica de natureza orgânica - ou seja, causada por lesão ou alteração elétrica no sistema nervoso central. Esses foram os pacientes diagnosticados com doença psicogênica. Os outros - dois irmãos - foram diagnosticados com um tipo de epilepsia de origem genética que costuma se manifestar na puberdade.
Os médicos do IPq, que é unidade de referência no exame e diagnóstico de epilepsias, acreditam que o Acre está enfrentando um surto de doença psicogênica. "Trata-se de uma doença funcional do sistema nervoso. Está associada a estresse emocional, que desencadeia uma reação psicológica automática do sistema nervoso", diz Marchetti, explicando que essas doenças surgem quando existe uma ameaça compartilhada socialmente.
"Existem vários exemplos de epidemias de doença psicogênica ocorrendo na história. Na Primeira Guerra Mundial, houve uma grande epidemia de doença psicogênica em homens envolvidos na guerra de trincheiras na Europa. Posteriormente, depois do ataque às torres gêmeas (em 2001), houve algumas epidemias em que se acreditava que as pessoas haviam adoecido por contaminação por antraz ou gás sarin. Foram todas epidemias psicogênicas", conta o psiquiatra.
Entre as crianças do Acre, vários fatores contribuem com o quadro. Nos casos avaliados, os médicos observaram que o medo da vacina foi um elemento imediato disparador. Mas os jovens também enfrentavam um contexto de convivência com famílias disfuncionais, marcadas por desemprego masculino muito alto e negligência parental. Eles também foram hostilizados por profissionais de saúde que não conseguiram encontrar as causas de seus problemas. Além disso, o uso de redes sociais e o contato com o movimento antivacina influenciaram.
"A gente acredita que a crença antivacinacionista sirva como um elemento estressante bastante significativo em alguns segmentos da população. Isso aconteceu no Japão, na Austrália, aconteceu no Brasil, acho que dois anos atrás. Recentemente, na Colômbia, em El Carmen de Bolívar, [houve] uma epidemia que teve impacto significativo no sentido de piorar a adesão à vacina do HPV", afirma Marchetti.
No relatório entregue ao Ministério da Saúde, a equipe do IPq faz uma série de sugestões para o tratamento específico dos pacientes e para melhorar o diagnóstico de reações psicogênicas pós-vacinais, incluindo o treinamento de uma equipe especializada no Acre. "Em paralelo, a gente fez algumas sugestões mais pontuais relacionadas à vacinação em si, para que seja feita de uma maneira que não exponha a pessoa que está sendo vacinada a outros; por exemplo, dentro da escola, a outros colegas", diz Gallucci.
Gallucci e Marchetti temem que, a exemplo do que aconteceu na Colômbia, o surto de doença psicogênica possa reduzir a adesão à vacina contra o HPV. A vacinação é um dos pilares da estratégia da Organização Mundial da Saúde (OMS) para erradicar o câncer de colo de útero, doença cuja causa mais comum é a infecção pelo vírus HPV.
Embora seja curável, esse tipo de câncer matou 311 mil mulheres em todo o mundo no ano passado. E, segundo dados apresentados por Ana Goretti Kalume Maranhão, assessora da Coordenação Geral do Programa Nacional de Imunização do Ministério da Saúde, a prevalência de novos casos no Acre é superior à do conjunto do País. No estado, o câncer de colo de útero lidera as causas de óbito entre mulheres. Maranhão apresentou estes dados em audiência pública na Câmara dos Deputados na quarta-feira, 20, ao lado de Gallucci e Marchetti.
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