Acesso difícil a novos medicamentos atrapalha tratamento de mieloma no país
A dificuldade em tornar os medicamentos para tratar o mieloma múltiplo acessíveis e a falta de dados confiáveis sobre a situação dos pacientes no país foram alguns dos problemas citados não apenas por especialistas brasileiros, mas também por médicos de Argentina, Colômbia e México durante encontro de hematologistas da América Latina em Orlando (EUA), a convite da IMF (International Myeloma Foundation). A proposta era debater os avanços e as dificuldades que enfrentam no dia a dia ao tratar de pacientes com mieloma múltiplo.
Ainda considerado uma doença rara, esse tipo de câncer começa na medula óssea e acomete os plasmócitos, células de defesa do nosso corpo, causando problemas ósseos (como dores e fraturas), fraqueza, falta de ar, danos aos rins e propensão a infecções.
O encontro aconteceu antes do início das atividades no Congresso da ASH (American Society of Hematology), que acontece em Orlando até esta terça-feira (10).
A questão brasileira
No Brasil, as dificuldades com a aprovação da lenalidomida, uma das principais drogas de primeira linha de tratamento para pacientes com mieloma (que nunca foram tratados e/ou que apresentam recaídas), ainda não terminaram. O ativo levou 11 anos para ser aprovado, em 2017, mas já era usado nos EUA desde 2006. No entanto, na prática, ele ainda não esta disponível.
"Como é um medicamento oral, ele precisa estar no rol da ANS [Agência Nacional de Saúde Suplementar] para que os pacientes da rede privada tenham acesso, o que ainda não ocorreu", explica a hematologista Vânia Hungria, professora adjunta de hematologia da FCM (Faculdade de Ciências Médicas) da Santa Casa de São Paulo e presidente do conselho científico da IMF Latin America.
A médica, que falou ao VivaBem logo após a reunião, reforça, no entanto, que a judicialização consegue ajudar os pacientes da rede privada a ter acesso aos medicamentos —o que não acontece no SUS. "O principal medicamento ainda é a talidomida. Mesmo o bortezomib, outra droga considerada essencial e de primeira linha para pacientes com mieloma, não é oferecida", afirma.
Sintetizada pela primeira vez na década de 1950, a talidomida foi inicialmente utilizada para controle de náuseas e enjoo e muito prescrita para gestantes. No entanto, foi retirada de mercado após relacionarem seu uso a má formação fetal, especialmente nos membros superiores.
Décadas depois, descobriu-se que o medicamento poderia ser usado como imunomodulador para o tratamento de câncer. No entanto, o medicamento já foi superado por duas novas gerações: a lenalidomida e a pomalidomida. Esta última, embora já aprovada em países como Argentina e Colômbia, ainda não tem previsão de quando será autorizada no Brasil.
Mas nem tudo está perdido para os brasileiros que convivem com o mieloma. Hungria afirma que o país começou a participar mais de estudos clínicos nos últimos anos, oferecendo uma oportunidade de melhores tratamentos —mesmo que experimentais— aos pacientes, especialmente aos que não respondem aos tratamentos de primeira linha.
"Um novo mundo"
A especialista ainda vê com bons olhos as novas descobertas em engenharia celular para o tratamento de cânceres como leucemia e mieloma —assunto que dominou grande parte das apresentações e estudos no ASH 2019. É o caso da célula CAR-T, tratamento de imunoterapia que usa células do paciente modificadas em laboratório para combater células cancerígenas específicas.
Isso acontece quando as células são programadas para combater marcadores específicos, como a proteína BCMA —que está presente na superfície das células cancerígenas de pacientes com mieloma. Mas ela não é a única. "Há inúmeros alvos possíveis, alguns ainda não foram descobertos. É um mundo novo que se abre", acredita.
Outro tratamento citado pela especialista e que também apresentou bons resultados para mieloma em estudos citados no ASH foi a tecnologia BiTE, (bispecific therapeutic engagers), um tratamento com anticorpos monoclonais biespecíficos que conecta os linfócitos T do paciente às células cancerígenas, combatendo o tumor.
Pacientes ativos
Estatisticamente, o mieloma é um câncer mais frequente em pessoas acima dos 60 anos. Isso não impede, no entanto, que ele apareça em pessoas jovens. "Tenho pacientes de 28, de 30 anos", diz Hungria.
São esses os mais frequentes na porta da sede da IMF Latin America, fundada e comandada por Christine Battistini em um escritório na região do Morumbi, na capital paulista. Lá ela passa informações atualizadas sobre novas combinações de medicamentos e o que há de mais atualizado nas opções de combate ao mieloma.
"O paciente hoje quer e precisa ser educado para poder participar de seu tratamento", diz. Ela, que falou à plateia de especialistas durante a reunião, tem um envolvimento pessoal com a causa: sua mãe teve mieloma e faleceu em decorrência da doença, mesmo após ter sido tratada nos Estados Unidos. Ela própria enfrentou um câncer de mama e precisou passar "de cuidadora a paciente", como ela mesma relembrou.
Battistini lembra ainda que outro trabalho a ser construído é a maior conscientização da doença entre a classe médica. "Dor nas costas pode ser um sintoma de mieloma múltiplo, e o paciente geralmente procura um ortopedista para esse problema", explica. Por isso, a entidade realizou uma campanha em um evento para médicos dessa especialidade lembrando que uma dor pode significar algo mais.
Acima de tudo, a presidente da entidade lembra que os pacientes são pessoas que levam uma vida normal. "Precisamos mudar a ideia de que são pessoas tristes. Eles são felizes, vivem bem", finaliza.
*A repórter viajou para Orlando a convite da Amgen
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