Consumo de cerveja foi 'banalizado' no Brasil, mas é álcool e traz riscos
"A música diz que cachaça não é água; e eu digo: cerveja também não é água não". A lembrança feita pelo professor de neurologia da Faculdade de Medicina da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e presidente da Sociedade Brasileira de Alcoologia, José Mauro Braz, é um alerta. Especialistas em alcoologia e especialistas em dependência química veem a banalização da cerveja como um problema sério de saúde pública, afetando cada vez mais jovens.
A cerveja goza de "privilégios" em relação a outras bebidas no nosso país. A lei 9.294, de 1996, vetou a propaganda de bebidas alcoólicas, mas fez uma ressalva: "consideram-se bebidas alcoólicas, para efeitos desta Lei, as bebidas potáveis com teor alcoólico superior a 13 graus Gay Lussac."
Como, em média, as cervejas no Brasil têm teor alcoólico de 5%, elas estão livres para usar e abusar de pessoas em cenários paradisíacos bebendo. "Isso é enganoso, não é uma bebida leve. A cerveja é uma bebida alcoólica como outra qualquer. E outro aspecto: é a bebida mais consumida por jovens e pelas mulheres", alerta Braz.
Ele defende que a cerveja deveria entrar na mesma lista de proibição. "Cachaça, vodca e vinho não têm mais propaganda. Mas cerveja não só tem liberação, como patrocina eventos como o Carnaval, fazendo uma associação dela a festas. O Brasil é um país que bebe muito. Somos um dos maiores consumidores de álcool, com destaque para cerveja", diz.
Bebemos mais
Uma pesquisa da Kantar Worldpanel apontou que o consumo de cerveja cresce no Brasil. Entre 2016 e 2018, o percentual de domicílios brasileiros com pessoas que bebiam saltou de 62,3% para 63,4%. Também foi registrado aumento no volume levado para casa: 4,2 litros para 4,5 litros, em média.
Segundo a Associação Brasileira da Indústria de Cerveja, o país tem um consumo anual de 14,1 bilhões de litros da bebida, com um faturamento de R$ 107 bilhões (dados de 2017).
"Nós tivemos crescimento de mais de 800% da produção e apenas 25% da população geral em 20 anos. É totalmente desproporcional, indica que o consumo aumentou muito. E isso tem ligação com problemas como doenças, acidentes, violência. Tudo isso está num contexto que chamamos de banalização do consumo de cerveja. Nós temos uma bebida que sai com o falso argumento alegado que ela seria fraca por conta do teor alcoólico, mas isso é puramente uma questão de cálculo. Uma taça de vinho, uma dose de cachaça ou uísque têm a mesma quantidade de álcool de uma lata de cerveja", afirma Braz.
É considerado uso abusivo de álcool a ingestão a partir de quatro doses entre as mulheres e cinco entre os homens em uma mesma ocasião em um intervalo de 30 dias. O consumo de álcool é associado a uma série de mortes por doenças não só fígado, mas cânceres e circulatórias.
Existe uso recreativo em eventos sociais; o uso abusivo, com a quantidade acima do limite permito do ponto de vista físico e psicossocial; e existe a dependência, com compulsão para o uso, sintomas de abstinência, prejuízo funcional, laboral e familiar. É uma doença reconhecida pelo Código Internacional de Doenças dividida em leve, moderada e grave.
Afetando mais jovens
Em 2019, segundo o Ministério da Saúde, foram 35.222 pessoas internadas por transtornos mentais e comportamentais devido ao uso de álcool. Desses, 493 tinham entre 15 e 19 anos e 2.614, entre 20 e 29 anos.
Uma pesquisa também feita Ministério da Saúde no ano passado apontou que o uso abusivo de álcool entre os homens é mais frequente na faixa etária de 25 a 34 anos (34,2% do total) e entre as mulheres nas idades de 18 a 24 anos (18%).
Segundo o Panorama 2019 do CISA (Centro de Informações sobre Saúde e Álcool), no Brasil, 26,8% dos jovens com idades entre 15 e 19 anos relataram consumo de álcool no último ano. "Outras pesquisas nacionais ainda apontam que 32% dos estudantes brasileiros com idades entre 14 e 18 anos relataram o BPE [Beber Pesado Episódico] no último ano e 8,9% dos estudantes entre 10 e 18 anos relataram consumo pesado no último mês."
"Outros países que têm consumo de álcool dão informação sobre a questão dos riscos, além das campanhas de uso e conscientização. A gente não pode fazer do álcool um demônio, não estamos fazendo uma demonização. Mas não pode fazer apologia como o Brasil faz de banalizar o consumo, como nós vemos aí. Isso afeta especialmente nossos jovens", diz Braz.
Porta de entrada
A psicóloga especialista em dependência química Roseane Albuquerque trabalha desde 2012 com dependentes em Alagoas e afirma: a grande maioria de quem chega para tratar alcoolismo começa com a famosa cervejinha.
"Ela é realmente a porta de entrada. A gente sabe que, especialmente nas regiões Norte e Nordeste, o início da ingestão de bebida é precoce, e o carro-chefe é a cerveja. As pessoas que eu atendo normalmente iniciaram uso bem precoce, alguns com 8, 10 anos de idade. E eles iniciaram pela cerveja, normalmente em casa, com familiares, com amigos e em festinhas", explica.
Segundo Albuquerque, por ser uma bebida com menor teor alcoólico, existe uma maior permissividade dos pais na ingestão. "Você vai desenvolvendo uma tolerância, precisa de doses cada vez maiores e disso vem o processo de dependência. Depois de estabelecida a dependência química, essa pessoa, esse adolescente já vai estar em outra fase: vai dar continuidade a esse uso, vai evoluindo e muitas vezes vai para outras drogas ilícitas", completa.
Riscos do álcool no corpo
De acordo com a OMS (Organização Mundial da Saúde), não existe volume seguro de álcool a ser consumido, porque ele é tóxico para o organismo humano e pode causar diversas doenças, como:
- doenças mentais
- câncer de diversos tipos
- problemas hepáticos, como a cirrose e a esteatose
- alterações cardiovasculares, com risco de infarto e acidente vascular cerebral
- diminuição de imunidade
Além de ser responsável por episódios de violência física contra si ou contra outras pessoas.
Apesar de causar males à saúde de qualquer pessoa, em qualquer idade, o álcool pode provocar patologias ainda mais graves em alguns casos. As gestantes são um exemplo. Bebidas alcoólicas consumidas durante a gestação aumentam o risco de aborto ou de parto prematuro.
Além disso, elas podem causar ao bebê má formação e retardo mental, alterações no rosto e diminuição do tamanho do crânio, retardo no desenvolvimento e no crescimento, problemas cardíacos e síndrome do alcoolismo fetal —que é o retardo no crescimento do bebê dentro do útero e após o nascimento, resultando em problemas de fala e raciocínio, diminuição da coordenação motora e problemas de coração.
Também há grande risco para pessoas em tratamento contra qualquer doença. Estas precisam de uma vida saudável, baseada em uma dieta totalmente livre do álcool.
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