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Longevidade

Práticas e atitudes para uma vida longa e saudável


Preconceito em tempos de coronavírus: "Idoso virou palhaço dos memes"

"Teimosia" de idosos a ficar em confinamento virou tema de memes país afora - iStock
"Teimosia" de idosos a ficar em confinamento virou tema de memes país afora Imagem: iStock

Janaina Garcia

Colaboração para VivaBem

26/03/2020 04h00

Se por um lado ela ganha ares apocalíticos, conforme alerta da própria OMS (Organização Mundial de Saúde), por outro, a pandemia de coronavírus parece ter dado uma injeção de ânimo na já sempre bem disposta capacidade do brasileiro de produzir piada a partir de situações trágicas.

Traduzindo para a linguagem das redes sociais, quem não recebeu um meme, uma tuitada genial ou um áudio de WhatsApp fazendo troça de alguma restrição imposta pela pandemia? E uma pergunta mais direta: quantas vezes você gargalhou quando essas aparentes piadinhas caçoavam da "teimosia" dos idosos em cumprir as restrições?

É fato: as pessoas com 60 anos ou mais, um dos principais grupos de risco da pandemia, ilustraram grande parte do material que tem circulado nos últimos dias pelas redes em meio aos apelos de autoridades para que se fique em casa e, com isso, as chances de contaminação diminuam.

Da "gaiola para velho" no meme ao "walking velho" no áudio engraçadinho, sem contar a montagem com o trocadilho na vaga de estacionamento para "teimosos", nos supermercados, os idosos foram o alvo predileto dessas incursões de humor embora as aglomerações devam ser evitadas, na medida do possível, por quaisquer faixas etárias.

Para especialistas em envelhecimento, no entanto, a prática pode surtir efeito antagônico se a ideia é a proteção da coletividade no combate ao coronavírus.

"O receio nosso, não só entre pesquisadores de universidades do Brasil como de outros países, é que a disseminação desse tipo de conteúdo piore o preconceito contra o idoso e coloque sobre essa pandemia uma pecha de doença de gente velha, o que não procede", alerta Jorge Félix, professor do curso de gerontologia da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP (Universidade de são Paulo).

Envelhecer é perder autonomia - e quem gosta disso?

Em entrevista ao VivaBem, Félix, que é autor do livro "Economia da Longevidade" (editora 106), explica que a covid-19 é especialmente desafiadora para os adultos com mais de 60 anos, uma vez que coloca como procedimentos de proteção e sobrevivência a essa faixa etária práticas como o isolamento social e o confinamento —ao passo que a medicina e a gerontologia recomendam exatamente o oposto por um envelhecimento saudável.

"Quem dispersa um meme fazendo troça do idoso, muitas vezes, não tem consciência de que está cometendo um crime, ao ferir a lei 10.741/2003, que estabelece o Estatuto do Idoso. Ao que parece, o idoso virou o grande palhaço dos memes", critica.

Por outro lado, o estudioso reconhece que nem sempre é tarefa simples convencer um idoso a mudar hábitos —especialmente se pesar sobre ele também a quase que ambulante pecha de figurar como grupo de risco a uma pandemia.

O ponto, porém, ele destaca, é compreender que envelhecer implica em perda de autonomia. E quem quer perder a própria autonomia?

"Devemos ter uma postura de maior empatia e jamais dizer ao idoso, por exemplo, que ele é 'teimoso': o que as pessoas enxergam como teimosia é um processo absolutamente natural, de todo ser humano, de ele defender sua própria autonomia", explica Félix.

"E isso se exacerba quando se é idoso, porque a pessoa vê sua autonomia sendo cada vez mais restrita, e por uma série de razões: a diminuição ou perda da capacidade de locomoção, a impossibilidade de comer ou beber algo de que se goste, por causa de alguma doença... Crianças e adolescentes também lutam por autonomia, bem como adultos; é curioso que, quando esse comportamento vem da idade idosa, seja enxergado como teimosia", destaca.

Jorge Félix - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Jorge Félix: "Devemos ter uma postura de maior empatia e jamais dizer ao idoso que ele é teimoso"
Imagem: Arquivo pessoal

Dica para as famílias: menos imposição e mais empatia

A reportagem quis saber: quais os conselhos para quem precisa orientar seus idosos, em tempos de pandemia, e enfrenta algum tipo de resistência? A questão principal, ele pondera, é que famílias e pessoas em torno dos idosos criem atividades de preenchimento do tempo —uma espécie de rearranjo ocupacional para quem precisa ficar em casa o tempo todo.

Para surtir efeito, entretanto, recomenda o professor, há que se atentar para o cuidado com a linguagem —menos imposição, o pronome certo e o entendimento de que não se está falando a uma criança podem fazer uma enorme diferença na tarefa de convencimento.

"E embora a intenção seja boa, deve-se evitar dar conselhos em tom imperativo, impositivo, sem levar em conta a opinião do idoso. É preciso ouvi-lo e entender que o convencimento da pessoa idosa é uma tarefa do dia a dia. Todo dia será um dia para você convencer seus pais, seus avós, é um monitoramento que exige trabalho e muito esforço. Então, se você acha que vai resolver com um minuto que seus pais aceitarão ficar confinados, sinto muito: terá que se dedicar monitorando isso todos os dias", orienta.

É o que ele tenta fazer com a mãe, de 80 anos, e a tia, de 86, que moram juntas no Rio de Janeiro. "É uma angústia estar longe agora, mas busco ligar para elas todo dia", conta. Já seu sogro, depois de passar por dois AVCs, precisa se privar, por ora, do contato com os netos —outra recomendação em tempos de covid-19.

"É um desafio para todos nós, mas esse cuidado vai ter que ser um esforço das famílias com idosos todos os dias. E um cuidado com empatia, dizendo 'eu entendo o que você está sentindo' e propondo não que 'você precisa fazer isso', mas 'nós precisamos', porque 'nós estamos todos no mesmo barco', entende?"

Falas de Bolsonaro afetam gestão das famílias com idosos

Por outro lado, um tipo de orientação que não tem partido exatamente dos familiares ou amigos próximos aos idosos preocupa particularmente o professor: os discursos do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) sobre a pandemia, principalmente ao minimizar o potencial letal da covid-19 —mais de uma vez, o mandatário a chamou de "uma gripezinha"— e ao relativizar a importância do confinamento.

"O governo federal tem um problema grave de comunicação: uma hora o presidente diz que a preocupação sobre a pandemia é histeria, outra hora as autoridades de saúde de fato reconhecem que é um problema grave... Isso também prejudica a gestão das famílias com os idosos, uma vez que grande parte da população idosa votou em Bolsonaro e, em meio a toda essa radicalização política, muitos deles acabam que por querer confirmar as atitudes que o presidente defende e, aí, desqualificam a gravidade de um problema que afeta o mundo todo", adverte.