"Compro para aliviar tristeza": quando o consumo se torna transtorno mental
É muito difícil fugir do consumismo e comprar somente o necessário. É aquela camiseta que você viu na vitrine e gostou, o chocolate com embalagem diferente, o tênis que postaram no Instagram. O sistema é feito para termos desejos frequentes e girar a roda da economia —já parou para pensar quantos celulares as empresas lançam por ano? Até aí, tudo (mais ou menos) normal. Mas nem todo mundo consegue ter o controle de comprar somente o quanto pode.
Jéssica*, por exemplo, de 30 anos, percebeu que havia algo de anormal em sua forma de consumir quando viu que "tinha tudo e muito de tudo": seu armário tem 60 calças jeans e mais de 100 pares de sapato. "Durante um período eu não comia e comprava de uma maneira absurda", lembra. "Meu psiquiatra chegou a falar que eu estava 'comendo roupas'".
A advogada percebeu que geralmente usa o consumo como uma forma de aliviar algum sentimento, como angústia ou tristeza, um sintoma comum de quem sofre de oniomania, a compulsão por compras. Assim como uma dependência química, a compra compulsiva funciona como uma pílula de prazer para quem está sofrendo. Mas o ato acarreta em prejuízos, e o prazer, na verdade, dura pouco.
"Ao longo do tempo, a proporção dos gastos se torna algo absurdo, influenciando não só a vida do consumidor, como também de sua família", diz Tatiana Filomensky, psicóloga e coordenadora do Grupo de Oniomania do IPq (Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo).
A especialista conta que já tratou pessoas que gastaram herança de quase um milhão de reais em apenas três meses, indivíduos que tinham 19 cartões de crédito, gente que passou por um processo criminal ou que perdeu a guarda dos filhos. "As pessoas podem perder tudo, mas quando se trata de um comportamento de consumo que todo mundo tem, é difícil. Poucos procuram ajuda e ninguém próximo a eles dá o apoio necessário, acham que é alguém desequilibrado".
Segundo a psicóloga, a família é descrente, não consegue olhar para o outro e entender porque ele se sente assim. "Eles veem alguém mentiroso, sem vergonha, que gasta o dinheiro de propósito. Às vezes a própria família não acredita que o indivíduo vai conseguir se tratar".
Já Cleide Maria Bartholi Guimarães, doutora em psicologia clinica pela PUCSP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e especialista em terapia de família e casal, diz que o sentimento da família ou de quem é próximo varia muito. "Alguns pais acham que o filho é mal-agradecido, que nunca deu valor, ou se sentem muito culpados".
Quando é marido e mulher, é como uma traição financeira; quando são amigos, costumam ser mais sutis. "Tudo depende dessa interação, de quem é o parente, mas em geral tem o preconceito e o sofrimento. Eles não sabem o que fazer, uma hora acusam, outra se culpam."
Consumismo versus compulsão
A oniomania é classificada como um transtorno do controle do impulso, que, segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde), tem como característica essencial a falha em resistir a um impulso, instinto, ou desejo de realizar um ato que é prejudicial ao indivíduo ou outras pessoas.
É essa definição que separa o consumismo da compulsão. Esta última gera um sofrimento, o indivíduo tenta evitar o consumo e não consegue, e pensa com frequência nele. Isso o deixa angustiado, triste, com raiva. "É uma dependência emocional do ato de comprar, da gratificação que se tem com a aquisição de um objeto. O que caracteriza o vício é a perda de controle, o exagero", diz Hermano Tavares, professor associado do Departamento de Psiquiatria da USP e coordenador do Pro-Amiti (Programa Ambulatorial Integrado dos Transtornos do Impulso).
Tavares diz que, quando esse indivíduo se sente angustiado, infeliz, tem uma recaída e acha que se comprar de novo conseguirá um reequilíbrio emocional. "Mas isso é passageiro e há uma nova tentativa de frustração. Controle, falha, recaída. A característica da dependência é isso, ele percebe esse ciclo, acumula prejuízos e mesmo reconhecendo eles não consegue cessar o comportamento."
Outro padrão frequente em quem sofre de oniomania são as mentiras sobre as compras e o quanto gastou. Geralmente, quem tem esse quadro gosta de comprar sozinho, não compartilha o momento, por vergonha. "Mesmo que o dinheiro seja meu, quando alguém vem me perguntar quanto eu paguei, falo que foi bem menos do que o valor real", diz Jéssica.
O designer João* , 27, diz que, quando compra, prefere não contar nada ao marido. "Chego em casa rapidinho e coloco a roupa no armário sem que ele veja. Ele sabe do meu problema, mas acho que se eu não melhorar, fico solteiro".
O Pro-Amiti listou nove perguntas que podem identificar um portador de oniomania. Cinco ou mais critérios positivos são indicativos do transtorno:
- Você tem preocupação excessiva com compras?
- Você muitas vezes acaba perdendo o controle e comprando mais do que devia ou podia?
- Você percebeu um aumento progressivo do volume de compras e nas suas despesas?
- Você já tentou e não conseguiu reduzir ou controlar as compras?
- Você percebe se faz compras como uma forma de aliviar a angústia, tristeza ou outra emoção negativa?
- Você mente para encobrir o seu descontrole e as quantias que gastou com compras?
- Você tem ou teve prejuízos sociais, profissionais ou familiares em função das compras?
- Você tem problemas financeiros causados por compras?
- Você já se envolveu com roubo, falsificação, emissão de cheques sem fundos, ou outros atos ilegais para poder comprar, ou pagar dívidas?
Por que eu?
Apesar dos problemas que Jéssica e João encontram devido à compulsão, nenhum dos dois faz tratamento. Segundo Tavares, o indivíduo com oniomania tende a minimizar o problema, mas em algum nível ele sabe que exagera e que tem dificuldades que não se limitam apenas a questões financeiras. "Se você perguntar a um alcoólatra se ele tem problema com bebida, ele vai dizer que não. Mas pergunta se ele acha que o álcool já causou algum um problema em sua vida. Com certeza a resposta será 'sim'".
Filomensky diz que é comum as pessoas procurarem ajuda somente depois que têm algum prejuízo amoroso, familiar, financeiro. "Eles pensam 'todo mundo compra, porque só eu tenho problema?'".
Os motivos para a oniomania aparecer ainda não são totalmente explicados, mas existem hipóteses. Uma delas é a própria genética. É comum encontrar na família de primeira linhagem (pai, mãe, avó, avô) alguém que tem uma dependência de jogo, álcool, drogas ou até mesmo a própria compra. "Tem estudo que fala de uma alteração em um gene chamado MAOA, responsável pela recaptação da serotonina. Os resultados mostraram que quem tem essa alteração tem uma deficiência dessa substância e mais chances de ter um comportamento de endividamento", diz a psicóloga.
Outra explicação seria a fragilidade emocional do próprio indivíduo, que busca na compra um reforço do seu ser, de sentir parte, estar inserido em um contexto. "Eles reforçam, de forma frágil, uma identidade que já é frágil". É comum a oniomania vir acompanhada de aspectos depressivos ou ansiosos também. Fazer diagnóstico de condições mentais pode inclusive ajudar. Segundo a psicóloga, não existe uma pílula que tire a vontade de comprar, mas tem uma que inibe impulsividade, que ajuda a diminuir a fissura.
Outro motivo para o surgimento da compulsão é a cultura de hipervalorização do "ter". "Quem não tem o problema já sente o estrago do consumismo, mas imagina quem tem? Eu mesma já entrei no Instagram e fui influenciada para comprar um brinquedo para o meu filho. O tempo inteiro aparece uma propaganda patrocinada", diz Filomensky.
João conta que, se antes comprava por estar sempre em contato com a moda, pesquisando tendências, agora o consumo vem como um substituto (falho) da tristeza. "Tenho depressão há algum tempo e o ciclo de comprar coisas bonitas para me animar continua se repetindo", diz. O problema é que na hora da compra, ele fica muito feliz, mas quando chega em casa fica triste, com vontade de chorar, arrependido e querendo vender tudo.
Segundo ele, as redes sociais têm um grande papel nisso. "A gente fica sonhando com a vida de outras pessoas e sempre se frustrando com a nossa. Sempre em busca de mais e de coisas que não temos."
É por esse motivo que alguns dos compulsivos decidem não ter mais redes sociais. Filomensky garante que faz muita diferença no tratamento. Ela conta que uma paciente desinstalou o aplicativo Rappi do celular e a fatura do cartão de crédito melhorou muito, já que agora ela tem que ir ao mercado para comprar.
Busca pela origem do problema
Como tratamento, alguns psicólogos recomendam que o paciente canalize a vontade de consumo em outra coisa, como praticar exercícios físicos. Mas Filomensky diz que essa tática funciona apenas provisoriamente. A ideia, na verdade, é entender a real função do consumo e aprender a ter outros tipos de prazeres, não só substituir os desejos de propósito.
Tavares diz que o tratamento é o mesmo de quem tem dependências comportamentais no geral: medicações que diminuem as fissuras, tratar comorbidades como depressão, ansiedade ou outras dependências comportamentais, e psicoterapia.
No Pro-Amiti, o processo terapêutico usado é a TCC (terapia cognitivo comportamental), específica para a compra. Os especialistas fazem o indivíduo questionar o hábito, e entender por que ele passou a usá-lo como forma de buscar alívio para questões da vida que não se resolvem com consumo. A tática, claro, inclui eliminar alguns cartões de crédito, sair de algumas redes sociais ou excluir aplicativos.
"Ao entender essas questões, do que realmente ele está tentando aliviar e por quê, buscamos uma relação mais saudável com consumo", diz a psicóloga. Segundo ela, não tem como propor abstinência, porque a gente precisa comprar, nem que for um papel higiênico. "É importante identificar o que é compulsivo e o que é adequado, normal".
Tavares salienta que não há cura, assim como todos os distúrbios psiquiátricos. "A gente ajusta a vida das pessoas", diz. O psiquiatra usa novamente o álcool como exemplo: "Se o problema fosse o consumo de bebida, falaríamos para ele evitar o primeiro gole. Mas se vai tratar a compulsão por compra, não tenho como falar para ele evitar comprar. Ele não vai poder nem comprar chiclete na padaria".
Segundo ele, é como uma reeducação alimentar. O indivíduo reeduca os hábitos de consumo, pensando no que é essencial e quais as motivações que o levam a comprar aquilo que não é necessário ou que sua situação financeira não comporta.
Fazendo o tratamento adequado, em cerca de seis meses já é possível notar uma melhora, mas também pode levar um ano, dois anos ou até mais. "Eles compram muito, guardam muito, fazem pequeno tesouro das coisas, com armários abarrotados de coisas que não usam. Mas quando começam a se desfazer desse tesouro, doar, compartilhar, dizemos que há uma melhora consistente", diz Tavares.
Mesmo sem um tratamento específico para o problema, Jéssica está tentando abordar o tema na terapia e com o psiquiatra e mudar sua forma de pensar antes de comprar. "Se eu entro numa loja, dou uma volta, olho, largo o item que eu separei para comprar, saio e penso se realmente vale a pena, tento fazer esse tipo de avaliação."
A advogada sente que está melhorando, mas ainda não tem certeza do futuro. "Muitas pessoas acham que é coisa de patricinha, menina mimada, não acham que é um problema, mas é, e eu estou tentando me livrar dele com todas as minhas forças."
*Os nomes foram alterados para preservar a identidade dos entrevistados