Famílias temem que isolamento afete crianças com necessidades especiais
A família da babá Débora Medeiros Nery está acostumada a se reinventar para ajudar o filho mais novo, Pedro Henrique. O menino de quatro anos tem paralisia cerebral e uma série de alterações cognitivas e motoras ligadas à doença.
Desde o nascimento, os cuidados na casa onde vivem quatro pessoas em Carapicuíba, na Grande São Paulo, aumentaram. Ao longo do tempo foram encontrando formas de tratar as dificuldades da criança, como os problemas para andar, respirar e falar, com terapias e tratamentos.
Com a pandemia de coronavírus a família teme uma involução sem a assistência que vinha recebendo.
A Rainha da Paz, entidade sem fins lucrativos que atende 400 crianças, jovens e adultos com deficiência, fechou para não expor seus assistidos e funcionários a risco. Toda semana um carro da ONG buscava Pedro Henrique em casa e o levava para a cidade vizinha de Santana de Parnaíba, onde fica a sede. Lá ele fazia gratuitamente terapia ocupacional, aulas de música, passava com fonoaudiólogo, nutricionista e clínico geral.
A mãe relata as diferenças já perceptíveis desde o fim das atividades e consultas do filho.
"Ele está muito irritado, inquieto. Acho que vai ter uma recaída. Logo agora que ele estava aprendendo a falar... Ele dá muita risada, consegue dizer as vogais A, E, I, O, U. O que mais me preocupa é que a respiração regrediu muito, Pedro não consegue engolir a saliva, então quando faz a terapia respiratória fica tranquilo por uma semana. Para mim a vida despencou".
A neurologista do Hospital Albert Einstein, em São Paulo, Carol Ladeia, explica que crianças com necessidades especiais apresentam diferenças físicas, sensoriais ou intelectuais que comprometem o desenvolvimento esperado de acordo com a idade e, por isso, é tão importante que tenham uma rotina sempre ativa.
"Para evoluírem com aquisição de habilidades social, motora e cognitiva, necessitam de estímulo através de terapias. Ao fim da quarentena, se não houver continuidade, poderá haver piora de função motora, alterações comportamentais como agressividade, surgimento de comorbidades psiquiátricas como depressão e ansiedade, distúrbios do sono e até dificuldade em se readaptar à sua vida cotidiana prévia", explica.
Por isso, o ideal é tentar reproduzir em casa algumas dessas tarefas. Débora tenta seguir as orientações passadas pelos profissionais que acompanham Pedro Henrique: a mãe coloca música, deita-o no chão com livros e leva-o para passear pelos cômodos fora da cadeira de rodas.
"A gente faz como dá. Graças a Deus ainda temos doações de comida e objetos de higiene". A babá está sem trabalho por causa da quarentena e seu marido desempregado.
A ASID Brasil, Ação Social para Igualdade das Diferenças, mapeou em seis estados do país ao menos 326 famílias de pessoas com deficiência em situação de vulnerabilidade, sem recursos para obter itens básicos de alimentação, higiene e medicamentos.
Distância segura
Na percepção da pequena Micaela, 3, as férias chegaram mais cedo. Ela está ficando na casa dos avós em Itanhaém, no litoral de São Paulo, e adora brincar pela casa espaçosa. A menina tem Síndrome de Down além de uma cardiopatia corrigida.
Apesar da pouca idade, integra o grupo de risco do coronavírus —não só pelo problema no coração, mas ainda pela pneumonia comum em pacientes graves da covid-19 ser grande causa da morte de pessoas com Síndrome de Down. Por isso, os pais preferiram deixá-la longe da capital, epicentro da doença no Brasil.
O publicitário Adriano Riva e sua mulher conversam com a filha duas vezes por dia para diminuir a saudade. As aulas de Mica foram canceladas semanas atrás, bem como a terapia ocupacional e as sessões de fonoaudiologia que fazia.
"Nós tememos que isso possa prejudicá-la, sim. A Mica já teve várias internações, por isso está acostumada a ficar distante quando necessário. Mas minha sogra contou que ela está mais arredia e ansiosa. Não dá para saber se vai ser por um mês, três meses, ela pode perder um pouco a referência, esses dias chamou o avô de pai. Mas esse atraso só é reversível se nossa filha estiver viva."
Barbara Calmeto, neuropsicóloga especialista em educação especial e diretora do Autonomia Instituto, avalia os efeitos da interrupção abrupta da experiência social gerada pela pandemia.
"As pessoas com atraso no desenvolvimento precisam de estimulação contínua em todas as fases da vida. A criança necessita evoluir as habilidades básicas, depois ampliamos as intervenções nas acadêmicas e na adolescência temos um foco grande nas habilidades sociais. Por isso qualquer período sem [os estímulos] causa involuções e regressos tanto físicos como psicológicos. Meu conselho é que a família faça uma rotina escrita mesmo, para ficar mais visual, e inclua momentos de atividades escolares, cognitivas, físicas, ajuda em casa e o que mais conseguir."
Os pais de Micaela tentam aproximar ao máximo a experiência em tempos de isolamento social à rotina da filha em casa: levaram boa parte dos brinquedos e roupas para o lar temporário.
Adaptação caseira
Heitor tem 9 anos e foi diagnosticado bem cedo com TEA (Transtorno do Espectro Autista). Desde o início da quarentena, tem sido difícil para a família administrar a nova realidade. A mãe, Josi Mariano, analista de comportamento, está trabalhando de casa, por isso nem sempre consegue conciliar o trabalho com a montagem das atividades passadas pelos profissionais que acompanham seu filho.
"Tem sido bastante difícil. O autista tem certa rigidez em relação à rotina. É estranho para o Heitor enxergar a casa como o novo ambiente para fazer tudo que estava acostumado a fazer fora. Ele tem terapia online, a escola indicou coisas para fazer, mas a mudança tem sido difícil de entender. Eu expliquei para ele o porquê do confinamento. Todo dia ele me pergunta se os médicos já acabaram com o coronavírus", conta.
A família montou dentro da casa em Paulínia, no interior de São Paulo, uma barraca de camping para que Heitor tenha a sensação de que aquele é um ambiente diferente. Mesmo assim a mudança no comportamento do menino é visível.
"Ele chora, fica bravo, frustrado, estamos o tempo todo tentando fazê-lo compreender a importância de ficar em casa por causa da doença", explica a mãe.
Francisco Baptista Assumpção Jr., livre-docente pela Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo) e professor do Instituto de Psicologia da entidade, explica que as mudanças de humor, irritabilidade e até mesmo a recusa na hora de realizar tarefas são efeitos esperados por ora, mas não devem se estender em longo prazo.
"Se você pensar em um adulto com condições plenas de entender o que está acontecendo no mundo, a situação já é difícil para ele. Imagine, então, para uma criança com quadro psicopatológico associado. Nessa população eu vejo os efeitos sendo pontuais enquanto a reclusão durar. Mas o processo de readaptação à rotina após a quarentena também tende a ser delicado."
Dicas do que fazer em casa
O ideal nesse período é estimular o contato com os amigos com o auxílio da internet. Conversar em grupos e fazer chamadas telefônicas está mais do que liberado.
A neuropsicóloga Barbara Calmeto aconselha ainda que, para aguçar funções cognitivas e neurológicas em casa, a família pode propor diversas atividades como jogo da memória, stop, jogos de tabuleiro, quebra-cabeça.
Também são aconselháveis atividades físicas como circuitos psicomotores de passar por baixo da cadeira, pular na almofada, escalar o sofá, jogar bola e andar por cima da corda. Além de a família pedir ajuda nos afazeres domésticos como molhar as plantas, dar comida para os animais de estimação, lavar a louça, arrumar a cama, etc.
As crianças também podem ter atividades sensoriais com objetos de várias texturas como espuma de barbear, tinta e bolinha de sabão.
Grupo de risco
Pessoas com deficiências intelectuais e atrasos no desenvolvimento, independentemente da idade, possuem um risco maior de contágio pelo coronavírus. Além disso, se infectadas, podem apresentar condições mais agudas da doença como consequência de comorbidades.
Questionado, o Ministério da Saúde informa que a LBI (Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência) assegura o atendimento prioritário às pessoas com deficiência, principalmente quando o intuito é a proteção e o socorro sobre qualquer situação.
A pasta esclarece que em "determinadas situações, especialmente as de risco, emergência ou estado de calamidade pública, a pessoa com deficiência será considerada vulnerável e o Poder Público adotará medidas para a sua proteção, seguindo os preceitos do direito à vida".
Fontes: Carol Ladeia, neurologista do Hospital Albert Einstein (SP); Francisco Baptista Assumpção Jr., professor livre-docente pela Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo) e professor do Instituto de Psicologia da entidade; Barbara Calmeto, neuropsicóloga especialista em Educação Especial e diretora do Autonomia Instituto e ASID Brasil, Ação Social para Igualdade das Diferenças.
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