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Flexibilização da telemedicina põe à prova segurança do sigilo médico

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Imagem: iStock

Janaina Garcia

Colaboração para VivaBem

17/04/2020 04h00

Embora vigore apenas durante a pandemia de coronavírus, em caráter excepcional e temporário, a portaria do Ministério da Saúde que libera as ações de telemedicina em todo o território nacional parece ter, até agora, apenas um consenso entre a classe médica: dificilmente a profissão volta a ser o que era, antes da pandemia, depois de testar as facilidades do atendimento remoto.

A portaria número 467 está em vigor desde o último dia 20, quando foi publicada no DOU (Diário Oficial da União) pelo então ministro da saúde, Luiz Henrique Mandetta. Nessa quinta-feira (16), a medida foi regulamentada, também via publicação no DOU, em lei sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), originada de projeto de lei de autoria do Congresso Nacional.

Se por um lado a regulamentação tem possibilitado um aumento expressivo dessa modalidade de atendimento, por outro, ainda há dúvidas sobre como implementar esse tipo de ação resguardando de forma absoluta o sigilo médico.

Na semana passada, por exemplo, o vazamento de uma receita médica indicando o uso de cloroquina ao coordenador do Centro de Contingência para o novo coronavírus no estado de São Paulo, o médico David Uip, mostrou que a invasão de privacidade pode ocorrer mesmo relacionada a consultas presenciais.

No caso de Uip, diagnosticado posteriormente com a covid-19, o episódio acabou alimentando um debate mais político do que necessariamente técnico ao ser explorado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), ardoroso defensor da cloroquina como solução mais imediata, embora cientificamente ainda não comprovada, de combate ao coronavírus.

Para representantes de diferentes especialidades e entidades médicas ouvidos por VivaBem, é fato que será necessária alguma plataforma pela qual o atendimento garanta mais segurança aos envolvidos —tanto ao médico quanto ao paciente.

No entanto, em meio à necessidade de isolamento social como forma de frear a transmissão viral, eles também admitem a relevância da telemedicina, embora vedada a casos urgentes ou que demandem exame físico.

Plataformas seguras demandam investimento

Um ponto destacado pelos entrevistados foi sobre o investimento nesse tipo de plataforma —algo que, se não existe, está aos poucos sendo implementado por grandes hospitais da rede privada, já que não há uso em larga escala da telemedicina no SUS (Sistema Único de Saúde).

Isso significa que, até que um meio mais seguro não apenas para as teleconsultas, como para o armazenamento dessas informações seja uma realidade, consultas remotas ainda serão feitas através de plataformas mais comuns à realidade de pacientes —as quais, no entanto, podem ser mais vulneráveis a ataques virtuais e roubos de informações.

"O Hospital Beneficência Portuguesa [em São Paulo], por exemplo, está desenvolvendo uma plataforma própria para isso —embora, sempre que usarmos outras plataformas bem estabelecidas, questões de gravação de dados e mesmo de ética no trato do paciente têm como pré-requisito a ética", afirma o professor associado do curso de Medicina da USP (Universidade de São Paulo) e gestor da Ginecologia da Beneficência Portuguesa, Maurício Abrão.

De acordo com ele, embora a classe no Brasil esteja "caminhando para" uma modalidade de atendimento que já é realidade em países como os Estados Unidos, "isso veio muito rápido para nós, acelerado por uma pandemia".

Certeza que as soluções [sobre segurança] vão vir e que se deve sempre agir com cautela, isso é essencial; mas esse é um processo irreversível do ponto de vista de futuro.

Abrão, por exemplo, afirmou já ter realizado teleconsultas e teleorientação, desde que a portaria do MS foi publicada, por meio de plataformas de chat virtual como Zoom e Skype, uma vez que, em ambas, é possível a gravação da chamada.

Ele admite, no entanto, que, para além da segurança, na telemedicina, "é impossível atender de uma forma 100% completa", ao menos no caso da ginecologia. "É possível dar uma certa orientação inicial; uma boa orientação vem em 30%, 40%, 50% das vezes".

Consulta ginecológica remota? Sim, e com foto

A reportagem de VivaBem quis saber: como as pacientes podem expor problemas de natureza ginecológica em uma teleconsulta?

"Eventualmente o médico pode receber da paciente a fotografia de um sangramento, por exemplo, embora nem sempre isso seja necessário. Às vezes pela própria conversa por vídeo se consegue orientar —o que acontece é que não propomos solução completa para todos os casos, mas uma facilitação, como em queixas mais simples", explicou.

No caso de uma candidíase vaginal, por exemplo, Abrão define a resolução via telemedicina como "muito tranquila com alguma orientação inicial". "Óbvio que para receitar uma medicação em caso infeccioso, com dor, passa a haver uma limitação desse procedimento virtual", ressalva.

Apesar das objeções, médico e professor diz ver na telemedicina um avanço irreversível à medida em que ela facilita o processo de consulta a quem encontra alguma restrição de mobilidade —seja em termos de espalhamento demográfico ou de isolamento em meio a uma pandemia.

"É possível atender pacientes de todo o país e ter uma conversa de uma orientação inicial para encaminhamento a um exame final. Para isso, a teleorientação ou a teleconsulta vão facilitar; para análises mais precisas, é preciso um exame clínico", afirmou.

"Nos maiores hospitais norte-americanos, os profissionais têm um período da semana dedicado à teleconsulta, porque eles veem nisso um facilitador. São novas realidades às quais o médico terá que se adequar", conclui.

Psiquiatria prevê custos ao médico e repasse ao paciente

Também o presidente da ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria), Antônio Geraldo da Silva, avalia que, superada a pandemia, "dificilmente se voltará [na medicina] ao que era antes".

Mas ele observa: essas mudanças "têm que ser cuidadosas". "Por que, se elas sobrecarregam o médico financeiramente, isso será repassado ao paciente. É o caso de se ter de pagar mensalmente para ter o certificado", mencionou.

Silva, que também preside a Apal (Associação Psiquiátrica da América Latina), se refere não somente a plataformas que garantam a segurança do atendimento a médico e paciente, como à obrigatoriedade de uma certificação digital para emissão de receitas e atestados médicos à distância.

A exigência consta da portaria 467 do MS, que determina o uso de assinatura eletrônica, nesses casos, por meio de certificados e chaves emitidos pela Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil).

Conforme o Instituto Nacional de Tecnologia da Informação, ligado à Presidência da República, um documento digital assinado com certificado ICP-Brasil "tem presunção legal de veracidade, autenticidade e não repúdio por parte de quem o assinou, além de integridade". Desse modo, haja alguma tentativa de fraude no documento, é possível identificá-la no momento da verificação da assinatura digital pelo farmacêutico, por exemplo.

O presidente da ABP lembrou que a telemedicina já é disciplinada pelo Conselho Federal de Medicina pela resolução nº 1.643/2002 —o que o próprio CFM ponderou, ao Ministério da Saúde, em ofício enviado à pasta na véspera da divulgação da portaria 467.

Médico alerta para acompanhamento psiquiátrico e prevenção a suicídios

Por outro lado, ele ressalva: além de custos ao profissional e dos cuidados de segurança a ele e ao paciente, a consulta presencial não deve e nem pode ser definitivamente prescindida. E é nela, avalia, que dados sigilosos estão mais resguardados de violação, já que, reforça, o paciente é quem acaba escolhendo a plataforma nas teleconsultas e teleorientações.

"É de extrema importância que não percamos contato com os pacientes, e que, no nosso caso, o apoio psiquiátrico seja mantido", defende.

"É importante que estejamos preparados para atender quem terá, agora, durante a pandemia, a primeira manifestação psiquiátrica na vida, face à situação de momento. Há pacientes que receberam alta e terão re-agudização de quadro; há gente em tratamento e que terá recaídas. Vamos recomendar aos médicos psiquiatras que obedeçam a recomendação e atendam por telemedicina —mas quem é paciente e quer escolher o meio de consulta, escolhe. E conscientemente".

No caso da psiquiatria, destaca o médico, é impossível pensar apenas nas facilidades do atendimento remoto quando o paciente, não raro, tem dificuldades de adesão ao medicamento —em geral, aqui, de venda controlada, mediante receita.

"O Brasil é um dos países com as maiores taxas de suicídio no mundo, em média, 36 registros por dia. Para o período de pandemia, ok adotar a telemedicina. Mas, acabando, isso precisa ser regulamentado pelo CFM, não pode virar rotina, porque a presença no consultório psiquiátrico ainda é importante como parte essencial do tratamento", pontuou.

E algo que também nos preocupa: o governo consegue jogar tudo isso no mercado, mas esqueceu de fazer a regulação para casos pacientes de convênio —não tem ainda uma regulação de quanto os convênios pagarão aos médicos em caso de teleconsultas.

O que diz a portaria do Ministério da Saúde

Segundo a portaria do Ministério da Saúde, ficam autorizadas em "caráter excepcional e temporário" as ações de telemedicina para o período da pandemia.

A medida abriu possibilidade para que o atendimento à distância fosse realizado não apenas em casos de suspeita de covid, como também para outros quadros clínicos em que o atendimento remoto se mostrasse uma alternativa que evitasse contaminação e/ou propagação do vírus.

Pela portaria, fica permitida aos médicos a possibilidade de prescrição "de tratamento ou outros procedimentos sem exame direto do paciente em casos de urgência ou emergência previsto no Código de Ética Médica" —ou seja, permite o atendimento à distância não só em casos de suspeita de covid, mas para outros quadros clínicos em que o atendimento remoto possa ser alternativa para reduzir o deslocamento de pessoas e, consequentemente, a propagação do vírus.

Até março passado, atendimentos online não eram permitidos no Brasil especialmente pela resistência de conselhos regionais de Medicina.

Em meio ao crescimento dos casos de covid-19 no país e à necessidade de se reduzirem deslocamentos desnecessários a pontos de alto risco e contágio, como hospitais, em 19 de março, o CFM enviou ofício ao Ministério da Saúde informando que liberava, temporariamente, atendimentos virtuais para triagem e monitoramento de pacientes em isolamento.

O que dizem sociedades de especialidades médicas

Outras entidades representantes de especialidades médicas no Brasil emitiram notas de orientação a seus profissionais sobre o uso da telemedicina durante a pandemia, sem deixar de enfatizar o caráter extraordinário da medida.

  • A SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria), por exemplo, destacou que, em caso de dúvidas do profissional, "o paciente em teleatendimento deve ser orientado a buscar consulta presencial para avaliação de sinais e sintomas e adoção de medidas terapêuticas necessárias, enfatizando-se ainda que outras doenças continuarão a ocorrer no período e necessitarão de avaliação presencial".
  • A SBC (Sociedade Brasileira de Cardiologia) lembra que a telecardiologia, para a entidade, é "um dos ramos mais desenvolvidos da telemedicina", mas pontua, sobre as questões de segurança inerentes à modalidade flexibilizada pelo governo: "o emprego do atendimento virtual é regulamentado por diversos instrumentos legais; a privacidade e proteção de dados são garantidas e é necessário o consentimento do paciente para a utilização das informações, que somente poderão ser utilizadas para finalidades que justifiquem seu levantamento. Todos que participarem do processo de coleta de dados, transferência, análise e armazenamento são responsáveis pelo sigilo dos dados, dos quais não podem constar informações pessoais e devem ser excluídos após o término do relacionamento entre as partes ou requerimento do paciente."
  • A SBOC (Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica) definiu que a medida "vai ao encontro das recomendações pela suspensão de uma série de atendimentos e da estratégia de distanciamento social que a SBOC também defende, para evitar aglomerações desnecessárias especialmente em ambientes hospitalares e de cuidados à saúde em geral".
  • Já a SBU (Sociedade Brasileira de Urologia) admitiu ser "difícil a decisão sobre a realização ou o adiamento de um procedimento cirúrgico eletivo" em meio a um cenário de pandemia, mas ressalvou: "Mesmo ciente dos riscos, tanto para o paciente quanto para a equipe cirúrgica, adiar o ato operatório pode, além de frustrar as expectativas, ocasionalmente, interferir na evolução do problema e gerar insegurança para quem aguarda um tratamento ou mesmo uma investigação cirúrgica". "A SBU reconhece a inviabilidade de regras rígidas neste complexo cenário, em que existe a tendência natural da maioria em postergar. As decisões devem sempre envolver a opinião médica e a participação do doente e/ou familiares", defende a entidade, para a qual, havendo decisão pela cirurgia, "deve-se solicitar que seja incluído no consentimento informado o risco de contágio viral durante o período de hospitalização, o que aumenta a morbimortalidade". Ela destaca, no entanto, que a equipe envolvida no ato operatório "deve ter a preocupação sobre a sua segurança e ter disponibilidade de usar os EPIs adequados para diminuir riscos de contágio."