Hemofilia adquirida: "Recebia transfusão todo dia; era como balde furado"
Resumo da notícia
- Tatiane Guimarães achava que seus hematomas e a dificuldade para andar eram sintomas da esclerose múltipla
- Ela foi em três hospitais e ficou internada por mais de dois meses até conseguir o diagnóstico de hemofilia adquirida
- A doença rara, que acomete 300 pessoas no Brasil, é desconhecida até por médicos
Tatiane Guimarães, 36, foi a três hospitais diferentes e ficou mais de dois meses internada sem saber o que tinha. O diagnóstico de hemofilia adquirida, mesmo que tardio, salvou sua vida. Mas ela clama por mais atenção à doença rara. Abaixo, ela conta sua história:
"Fui diagnosticada com esclerose múltipla em 2011, por isso, quando apareceram hematomas na perna esquerda e ela ficou pesada, achei que era uma das crises da doença.
O ano era 2018. Procurei um médico, que me indicou um hematologista. Quando consegui a consulta, minha perna já estava bastante inchada e doía muito, o dia inteiro. Eu já não conseguia dormir. Após analisar alguns exames, o hematologista viu que tinha alguma questão na coagulação do meu sangue. Ele pediu que eu fosse com urgência para o hospital.
Quando cheguei, o primeiro médico que me atendeu ficou sem saber o que era e queria me internar. Ele suspeitava de trombose, porque estava inchada e ficando muito roxa. Fiquei tomando remédio para dor. Mas quando saíram os exames, já tinha trocado o plantão e o novo médico falou que não era trombose e me deu alta, disse que os exames estavam normais.
Voltei para casa e quando tirei o curativo do acesso, meu braço não parou de sangrar. Eu não queria voltar para o hospital, já estava tarde e estava cansada. Amarrei uma toalha no braço e fui dormir. No outro dia a toalha estava toda encharcada. Então decidi ir a outro hospital.
Minha perna estava tão inchada que tive que ficar numa cadeira de rodas. Quando o médico me viu, reuniu mais cinco profissionais para debater o que poderia ser. Me internaram de novo. Como lá não havia um hematologista, me transferiram para um terceiro hospital.
Lá, fiquei tomando plasma [parte líquida do sangue] de duas a três vezes por dia no dia e recebendo transfusão duas vezes ao dia. Era como se fosse um balde furado, porque por mais que me davam sangue, não me curavam.
Não é que ele saía externamente, mas sim de forma interna, por dentro do músculo. Era uma dor insuportável. Eu sentia toda vez que meu sangue ia sair. Tomava morfina de quatro em quatro horas implorando para ser de duas em duas. Nada passava minha dor.
Ao todo, fiquei pouco mais de dois meses internada até descobrirem que eu tinha hemofilia adquirida. Finalmente pude saber qual proteína essencial para a coagulação do sangue eu tinha que repor. Já tinha sangue até no meu pulmão. Após o tratamento correto, tudo foi se estabilizando e recebi alta, para continuar o tratamento em casa.
Já tem um bom tempo que não tenho sangramento espontâneo. Evito correr riscos também, como cortar coisas. Faço acompanhamento com exames periódicos e eles estão melhorando.
É uma doença extremamente grave e agressiva, e não é contagiosa. Existe uma falta de informação por parte dos médicos e também da população. As pessoas já conhecem ou ouviram falar da hemofilia congênita. Agora, a hemofilia adquirida, ninguém sabe o que é".
Hemofilia congênita x adquirida
Apesar de ter o nome parecido com a doença mais comum, a hemofilia adquirida é bastante diferente. "Para que não houvesse confusão, o nome mais adequado seria inibidor adquirido do fator VIII", diz a hematologista Margareth Ozelo, diretora da Divisão de Hematologia do Departamento de Clínica Médica da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
Ozelo diz que essa doença rara acomete pessoas que não têm hemofilia, mas desenvolvem uma manifestação autoimune.
O próprio corpo desenvolve um anticorpo que reconhece como inimiga uma proteína essencial para a coagulação do sangue, chamada fator VIII. Quando ela é neutralizada pelo organismo, não há coagulação, ou seja, o sangramento não é estancado.
Carlos Magno, médico geneticista pela FMUSP-RP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo de Ribeirão Preto), diz que essas proteínas são codificadas por um gene, por isso que na hemofilia congênita os indivíduos já nascem com a falta delas (com a falta do fator VIII no caso do tipo A e com a falta do fator IX no tipo B). Na hemofilia adquirida, o indivíduo nasce com todos os fatores funcionando, mas por algum defeito imunológico, o próprio corpo o ataca.
Além da faixa etária diferente —ela é mais comum em idosos, que começam a ter a imunidade alterada— a hemofilia adquirida também tem uma apresentação clínica diferente da congênita, que costuma ser nas articulações.
"São sangramentos grandes subcutâneos ou embaixo do músculo. Podem se espalhar por todo o tronco ou pelo braço inteiro", diz Magno. E eles também podem ser espontâneos, nem sempre há um trauma associado.
A doença também pode estar associada a outras manifestações autoimunes, como foi o caso de Tatiane, que tem esclerose múltipla e hipotireoidismo. "É comum uma pessoa que tem uma dessas condições desenvolver outra. O processo é o mesmo, do próprio corpo atacar proteínas erradas", diz o geneticista.
Tratamento e desconhecimento
O cenário de doenças raras é complicado. Estima-se que 300 pessoas no Brasil tenham hemofilia adquirida, mas existem barreiras de diagnóstico e notificação.
De acordo com Magno, entre os hematologistas, uma pequena parcela viu um caso e não há um programa dentro do governo bem estabelecido para esses pacientes. "Se eu não tenho diagnóstico correto, terei tratamento incorreto".
Quando diagnosticada, a terapia inclui imunossupressores, que fazem correção dessa falha imunológica.
Em casos graves, de sangramentos grandes que não param, há a terapia hemostática. "Enquanto não se consegue corrigir a parte imunológica, medicações fornecem essa coagulação de alguma forma", diz o geneticista. É necessário também um acompanhamento frequente com o hematologista.
Mas segundo ele ainda há pouca difusão de conhecimento pelos médicos e pela sociedade, e pouco acesso a testes laboratoriais.
"É a primeira barreira para o tratamento. Se não penso na doença, não tenho diagnóstico. E não é exclusividade da hemofilia adquirida, mas é comum em doenças raras", diz.
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