"A dor nem sempre passa", diz médica sobre perder pacientes com covid-19
Especialista em cuidados de urgência com crianças, a médica emergencista Taiane Solin, 30, colocou seus conhecimentos à disposição também dos adultos diante do crescente número de pacientes que chegam aos hospitais com sintomas do novo coronavírus (SARS-CoV-2).
"Na última semana, foram 84 horas de trabalho", afirma. "Eu escolho ficar porque precisam de mim."
Taiane, que mora em Holambra, no interior de São Paulo, dá plantão em quatro hospitais em cidades da região. Na última semana, em um deles, a médica presenciou a morte de mais um paciente com covid-19 —o quinto que já passou pelas suas mãos.
A história viralizou depois que ela postou nas redes sociais um desabafo dolorido, que já havia sido compartilhado por mais de 30 mil pessoas até a publicação desta reportagem.
No texto, a profissional explica como foi feito o tratamento e o quão desanimador é sair de um plantão como esse e ver pessoas pedindo o fim do isolamento. "Não esperava essa repercussão toda", afirma.
"Me sinto traída. Arrisco minha vida, a vida da minha família, e tem gente pedindo o fim do isolamento, me criticando por andar de máscara na rua", diz. Veja a seguir o depoimento que ela deu a VivaBem:
"Sempre trabalhei na área de emergência, é uma área que eu gosto. Mas cuidava apenas de crianças. Com o aumento dos casos do novo coronavírus, optei por me colocar à disposição dos hospitais porque sei que precisam de mim. Nem todos os hospitais aqui da região têm UTIs, então os pacientes acabam ficando na emergência sob meus cuidados até o desfecho do quadro.
O paciente sobre o qual escrevi foi um deles. Não estava no grupo de risco, era jovem, ativo. E o quadro evoluiu muito rápido. Os mais jovens ficam mais tempo na UTI.
Quando ele piorou, emprestei meu celular para ele falar com a família. Ele mandou mensagem para a mãe, a esposa, o filho. Falou de dinheiro, disse que tinha uma quantia guardada e era para usarem no funeral. Senti que ele estava se despedindo naquele momento, sabe?
É algo comum para médicos como eu, que trabalham em emergência, mas é sempre difícil para nós. Não escondi minha emoção naquele momento, deixei algumas lágrimas caírem. Acho que isso mostra que também somos humanos, temos sentimentos. Mostra ao paciente e à família que nos importamos. Eles se sentem acolhidos.
Trabalhar com crianças me ajuda muito na forma como lido com adultos. A gente aprende a acalmar todo mundo, com criança é muito mais 'punk'. Precisamos passar tranquilidade e não deixar a pessoa, que já está numa condição vulnerável, em pânico.
Quando ele começou a ficar ruim, falei que ia precisar colocar ele para dormir um pouquinho e fazer alguns procedimentos que iriam ajudá-lo a respirar melhor. E que a gente conversava depois que ele acordasse. Infelizmente, ele não acordou.
Para nós, perder um paciente não é fácil. Alguns a gente se conforma que fizemos o melhor, o possível. Dói, mas sabemos que faz parte do trabalho. Mas há os que não temos tempo de fazer o nosso melhor. Aí é difícil encarar a perda, como pessoa mesmo.
Não dá para dizer 'ok, faz parte, vai passar', porque não passa. Não à toa, tenho vários colegas médicos que já estão com medicação para ansiedade e depressão.
Escolhi ajudar neste momento. No interior de São Paulo não existem muitos médicos emergencistas como nos grandes centros. Então me ofereci para trabalhar. Tenho asma, diabetes e estou acima do peso, tenho um filho pequeno de três anos. Sei que estou no grupo de risco, mas não consigo ficar em casa sabendo que posso ajudar.
Tento me cuidar ao máximo. Ao sair do plantão, tiro toda a paramentação [são cerca de 20 minutos de processo], que inclui o avental, óculos, duas luvas, máscara e face shield. Tomo um banho completo, coloco minha roupa e volto para casa.
Moro em sítio e, ainda no portão, tiro toda minha roupa de novo, entro em casa desviando do meu filho —que vem querendo abraçar e beijar, como toda criança— e tomo outro banho.
Meu marido diz todos os dias que tem orgulho de mim. Mas ele também tem medo. Todos temos. O que mais dói é não ver minha avó, que está isolada desde que iniciamos a quarentena. Ela está com uma tia em Indaiatuba e deve ficar lá por algum tempo.
As pessoas não estão levando a sério o isolamento aqui na região e, por isso, o número de doentes tende a aumentar nas próximas semanas. [pensa um pouco antes de responder] Eu queria ter uma mensagem positiva neste momento, mas a verdade é que eu acho que a situação ainda vai piorar."
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