Quarentena: mudanças causam tristeza e 'luto' pela nossa vida anterior
Resumo da notícia
- Com a mesma velocidade que o coronavírus se espalhou pelo mundo, tivemos que modificar nosso dia a dia para cumprir com o isolamento social
- Diante da ameaça do contágio, instabilidade financeira e privação da liberdade, restou uma sensação de perda, que está ligada com o processo de luto
- São mudanças bruscas que afetam nossa saúde mental, não só pela privação de desejos e vontades, mas por ter que assumir a finitude das coisas
Jogar futebol toda segunda-feira. Ensaiar com a banda do trabalho na quarta. Participar do grupo de estudos às quintas. Andar de bicicleta aos sábados. De repente, atividades como essas tiveram que ser deixadas de lado e o principal hábito nas nossas rotinas passou a ser manter a higiene das mãos.
Com a mesma velocidade que o novo coronavírus se espalhou pelo mundo, tivemos que modificar nosso dia a dia para cumprir com o isolamento social. Diante da ameaça do contágio, da instabilidade financeira e da privação da liberdade, para muitos de nós restou uma intensa sensação de perda, que está diretamente ligada com o processo de luto.
O luto nada mais é do que uma resposta a algum vínculo que se rompe, deixa de existir, e gera um estado de desamparo. Independentemente do tipo de perda, cada indivíduo vivencia essa condição dentro de seus próprios recursos e limitações. Um dos primeiros impactos em meio à pandemia mundial é desfazer a noção fantasiosa de que somos livres e que a morte está longe de nós, o que provoca consequências emocionais densas e importantes de serem percebidas.
São mudanças bruscas que afetam em cheio a nossa saúde mental, não só pela privação de desejos e vontades, mas por ter que assumir a finitude. Estamos nos despedindo do mundo da maneira que conhecíamos. É uma crise global que vem mexendo com a forma que nos organizamos e encaramos a sociedade. Apesar de ser difícil prever o que nos espera, vamos lidar com novas conjunturas, que demandam energia e disposição para fazer as adaptações necessárias. Trata-se de um momento de transformação, com significados diferentes para cada pessoa.
Nosso mundo caiu
Ao longo da vida, experimentamos diferentes atividades e estabelecemos certas rotinas conforme descobrimos nossas preferências. Faz parte da busca natural pelo pertencimento. Assim, dentro das escolhas que constituem nosso mundinho, as ações se tornam rituais que dão sentido para a vida e existência.
A prática se torna um hábito e passa a ser um elemento da nossa identidade. Mas fomos surpreendidos novamente. Como bem disse o poeta, "o povo sumiu, a noite esfriou". E agora? As tarefas que nos apegávamos mudaram, os afazeres que eram nosso sustento cessaram, as pessoas do nosso convívio ficaram distantes, e a rotina que guiava nossos dias se esvaiu.
Assim como acontece com o processo de luto, quando há perdas muito próximas, o modelo que temos de realidade fica abalado. Isso provoca a reformulação do chamado mundo presumido, aquele criado a partir da leitura em relação às coisas, e baseado na confiança e ideia de controle do que está ao nosso redor. A forma de interpretar o mundo é alterada e temos que descobrir outras formas de lidar com o novo contexto.
Só que nem tudo é tão simples quanto os versos da cantora Maysa: "se meu mundo caiu, eu que aprenda a levantar". Adaptar-se emocionalmente demanda recursos e disposição para desapegar do que passou e desenvolver novos jeitos de encarar e perceber a existência. Inclui rever todos aqueles hábitos aos quais estávamos acostumados e que eram a base da nossa identidade.
Antes de mais nada, sinta
Como acontece em ocasiões de enlutamento, neste momento é muito importante se permitir sentir, chorar e sofrer. Sem julgamentos, perceber e assumir sentimentos como temor, ansiedade e angústia. Não existe uma fórmula única para alcançar um estado de maior conforto na conjuntura presente, mas algumas atitudes podem ajudar a tornar a experiência de perda menos traumática.
Primeiro é importante entender que a situação é extraordinária, então não é preciso dar conta de tudo como fazíamos antes. Em meio a tantas dificuldades emocionais, tentar aceitar que o cotidiano foi modificado e dar prioridade para atividades que proporcionam bem-estar e tranquilidade. Ser verdadeiro ao tratar dos sentimentos, buscar ajuda, dividir impressões e respeitar os próprios limites.
Ao compartilhar essas vivências internas, num exercício que envolve escutar e compreender as necessidades do próximo, temos a chance de dimensionar melhor a magnitude do que estamos passando. Dessa maneira, fica mais fácil de entender que o sacrifício faz parte da vida humana, e de fazer esse movimento por soluções compatíveis com as circunstâncias atuais.
Apesar da apreensão em explorar e aprender como agir nesse contexto desconhecido, a superação vem justamente na busca por aquilo que nos satisfaz. É uma oportunidade para rever crenças, valores, referências, e encontrar ocupações que são valiosas na nossa formação. Cultivar novos saberes, práticas e entendimentos, independentemente do que nos espera amanhã. Mesmo que esteja muito difícil, nutrir a esperança de que vai passar.
O papel da solidariedade
Mais de 180 países compartilham o desafio de enfrentar a nova doença. Seja pela urgência, gravidade ou abrangência, o combate ao coronavírus vem estimulando variadas ações de solidariedade e união no Brasil e no mundo. Diante da perda da normalidade coletiva, as reações em busca de respostas para as próprias limitações são as mais diversas, e incluem contribuir com o próximo. Ser solidário aumenta o senso de autoeficácia (sou capaz de fazer algo para ajudar o outro) e diminui a sensação de impotência diante daquilo que não tenho controle: a pandemia e suas consequências.
Pode ser também o início de um importante movimento de aproximação, se formos genuinamente solidários em nossas ações. Ou seja, porque nos importamos e não apenas para aliviar nossas ansiedades ou angústias pessoais. Assim será possível que esse comportamento de cuidado se efetive entre nós, e seja um dos pilares para um modelo de sociedade mais justa, inclusiva e igualitária.
A ideia é aproveitar esse momento de introspecção e refletir sobre como sermos melhores para nós mesmos, para os outros e para o planeta. Pensar sobre o que fazer para não ser mais um causador de sofrimentos e adoecimentos. Deixar de lado a ansiedade em tentar prever o que está por vir e assumir que estamos em meio uma importante renovação.
Sair de uma perspectiva individualista e tentar analisar os fatos a partir de uma visão do coletivo. Ao invés de focar nas nossas diferenças, dar atenção para as semelhanças. Imaginar como se desprender de atitudes que prejudicam a construção de um ambiente melhor e agir com a intenção de contribuir para não adoecermos física e mentalmente.
Fontes: Anna Paula Zanoni, psicóloga clínica; Érika Arantes de Oliveira Cardoso, psicóloga da FFCLRP (Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto) da USP (Universidade de São Paulo); Samantha Mucci, psicóloga do departamento de psiquiatria da EPM/Unifesp (Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo); e Wanderlei Oliveira, professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUC-Campinas (Pontíficia Universidade Católica de Campinas).
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