"Não contei à minha avó que a filha dela morreu", diz jovem que perdeu mãe
A bacharel em direito Amanda Lima de Castro, 29, define como "um misto de tristeza, raiva e desespero" o sentimento diante das notícias sobre o combate à pandemia de coronavírus na cidade onde mora, Londrina, no norte do Paraná.
Ela se refere à reabertura do comércio local, ocorrida na última segunda-feira (20) em meio à pressão de empresários locais, e ilustrada por cenas de aglomerações na região central.
A cidade de cerca de 570 mil habitantes contabilizava, até esse sábado (25), 96 casos de covid-19 e 13 mortos pela doença. O sétimo óbito registrado foi o da mãe de Amanda, a funcionária pública Regina Aparecida de Lima, 56.
Entre os casos confirmados, dois também são familiares à jovem: a avó de 83 anos e a tia, de 63, que precisaram ser internadas em leitos da mesma UTI (Unidade de Terapia Intensiva) onde a mãe da jovem havia passado 17 dias intubada.
Juntas, as quatro mulheres eram o prumo da casa na qual, mais recentemente, passou a viver também o pequeno Ragnar, de 11 meses, filho de Amanda. Nem ele, porque não compreenderia, nem a avó dela, que deixou a UTI na última sexta (26),sabem que Regina morreu.
Em meio à apreensão pelo estado de saúde da avó e a um luto pela perda da mãe que a criou sozinha, Amanda teve ao menos duas boas notícias na última semana: depois de 12 dias de UTI, a tia teve alta na terça-feira (21) e já está em casa. A avó deixou a UTI na sexta, mas, ainda com oxigênio e sonda, não tem previsão de deixar definitivamente o hospital. "As três ficaram na mesma UTI. Estou sem chão com tudo isso até agora", desabafa a jovem.
Leia, abaixo, o relato dela à reportagem de VivaBem:
Não queríamos pensar em coronavírus para não nos apavorarmos
"Minha mãe era formada sem secretariado executivo. Trabalhava na pró-reitoria de recursos humanos da UEL [Universidade Estadual de Londrina] havia 27 anos, mas, com a quarentena, desempenhava as funções mais a partir de casa, embora ainda fosse ao campus vez ou outra para atendimento.
No dia 21 de março, uma sexta, começamos as duas a ter sintomas semelhantes aos de uma gripe: coriza, dor no corpo, muita dor de cabeça... Chegamos a pensar que fosse dengue, porque há uma epidemia da doença em Londrina [a cidade contabiliza 11 mortos pelo vírus em 2020, o pior quadro em todo o país].
E como a orientação durante a pandemia é evitar idas ao hospital, caso não haja falta de ar, tomamos um antigripal para amenizar os sintomas.
As dores no corpo aliviavam enquanto durava a medicação. Depois disso, voltavam de um jeito quase insuportável. Em nós duas.
Eu morava com minha mãe desde que nasci, e era ela quem mais me ajudava com meu bebê de 11 meses. Tinha dias em que eu ficava muito ruim com esse mal-estar, noutros dias, era ela, e a gente ia se revezando nos cuidados.
Pensamos na dengue porque, acredito, não queríamos pensar em coronavírus para não nos apavorarmos. Tínhamos na mesma casa minha avó e minha tia; as duas eram grupo de risco.
Até que fomos a um pronto-atendimento da Unimed, no dia 27. Eu entrei primeiro, minha mãe esperou do lado de fora, para se precaver. Ela precisou fazer um raio-X e o procedimento acusou uma secreção no pulmão.
Foi medicada, fez o teste rápido de dengue, que deu negativo, e ouviu do plantonista que ela precisava ir para casa e tomar o antibiótico prescrito, pois estava com começo de pneumonia. O médico disse a ela que não estavam fazendo o teste para covid, pois eram poucos os sintomas. E orientou que ela fosse a um hospital só se tivesse falta de ar.
É como se dissessem: 'Se você estiver morrendo, aí, sim, procure um hospital'
As dores no corpo passaram. Mas um dia ela teve febre alta, 38ºC, e passou a perder o apetite —não queria comer, ficou bem prostrada, apática, mas em nenhum momento reclamou de falta de ar.
Cruel, isso: é como se dissessem: 'Se você estiver morrendo, aí, sim, procure um hospital'.
Na quinta, dia 2 de abril, minha tia passou a ficar debilitada, depois foi minha avó. Fiquei mais preocupada com o sinal disso, então fiz uma sopa, tomamos um banho e levei minha mãe ao hospital. Foi a última vez que a vi em casa.
Levei meu filho comigo, pois minha tia estava sem condições de cuidar dele. Fiquei na porta do hospital —e minha mãe, que me dizia que não estava com falta de ar, ou pelo menos ela não falou para mim, acabou sendo internada. Ela estava muito fraca. 'Filha, eu vou ficar, tá?', me disse. 'Ok, mãe, mas me liga, por favor'.
Nesse mesmo dia, minha mãe passou por uma tomografia que detectou várias lesões no pulmão. No dia seguinte, a puseram no oxigênio —ela me ligou avisando. Também nesse dia, minha tia, que tinha certeza que estava com dengue, fez o exame, mas ele também deu negativo. Falei: 'Tia do céu... e agora?'
Minha mãe foi preparada para receber o oxigênio na sexta à noite. Tentei falar com ela o dia todo, mas não atendeu; entrei em desespero. Ela me retornou à noite, com a voz baixa, bem baixinha, bem fraca. 'Está com a voz tão estranha, mãe...', eu disse. 'Deve ser a máscara. Vou tentar dormir, filha'.
Ela foi intubada na manhã seguinte, sábado. Acordei nesse dia com o médico me ligando para dizer que, 'olha, sua mãe teve uma piora do quadro: passou a noite muito cansada e com muita dificuldade de respirar, com saturação baixa [ou seja, baixa oxigenação no sangue], a gente teve que intubá-la...'
Achei que meu coração fosse parar. Fiquei apavorada.
Como minha mãe estava sozinha na UTI, consegui vê-la, de longe, pelo vidro. Estava totalmente isolada. Foi terrível, nunca a tinha visto daquele jeito, com tubos, nem quando ela fez cirurgia bariátrica, há seis anos.
Mesmo no desespero em que fiquei, não imaginei que nunca mais fosse ver minha mãe. Me apeguei na minha fé em Deus, fiz minha oração e, mesmo ouvindo que o estado dela era gravíssimo, pensei: 'Minha mãe vai sair disso'.
Foram 17 dias de tubo. Ela faleceu no domingo passado, dia 19. Uns dias antes, na quarta (15), o teste para covid tinha dado positivo.
Eu sempre recebi as informações das equipes de saúde que estiveram com ela até o fim, especialmente as da UTI. Sou muito grata a esses médicos e enfermeiros.
Eu e minha mãe sempre tivemos medo dessa doença. Tanto que, quando ela começou com os primeiros sintomas do que achava ser uma gripe, parou de ir atender o público na universidade, ou ia dois, ou três dias. Era comprometida ao extremo com o trabalho, até demais.
Quando percebemos que estávamos gripadas, ficamos muito assustadas. 'Não tem como saber se não estiver morrendo. A gente nunca vai saber', pensávamos. Eu orava, e ela rezava, para que não fosse a covid.
As pessoas simplesmente não estão levando essa doença a sério
Aqui em Londrina vejo as pessoas comemorando a vida, se reunindo por nada, o comércio reabriu. Isso me dá raiva, tristeza e também desespero por saber que, em 15 dias, vamos ter consequências desastrosas por conta dessas aglomerações.
Não desejo que ninguém passe pelo que passamos, e olha que tínhamos plano de saúde, mas sei que a maioria não tem.
As pessoas simplesmente não estão levando essa doença a sério.
Meu filho faz um ano daqui a alguns dias e já tínhamos descartado fazer festinha, dada a situação sanitária. Estávamos conscientes do risco —e imagine que, quando minha mãe foi à universidade, de máscara, porque já tinha sintomas leves, ouviu de colegas: 'Nossa, mas que exagero, para que tudo isso?' Ela era minha melhor amiga, me contava tudo.
Não contaram à minha avó que a filha dela morreu
Minha tia quis esperar sair o resultado do teste de covid da minha mãe para ir fazer o dela. No mesmo dia em que saiu que era positivo, levei as duas, ela e minha avó, para o hospital. As duas já estavam com pneumonia. Minha avó, ainda por cima, é hipertensa.
As três ficaram na mesma UTI. Minha tia chegou em casa na segunda (20); minha avó foi para o quarto na sexta [24], mas ainda precisa de sonda e de oxigênio, não tem previsão de ir para casa. Ao menos, não está intubada.
Mas não contaram a ela que a filha morreu, porque, na UTI, isso seria muito difícil.
Não sabemos nem por onde começar... Estamos tentando alguma orientação de psicóloga do hospital para saber como dar essa notícia e qual o melhor momento. Ela pergunta da filha, pergunta de mim e do meu filho, mas o que eu posso fazer agora é conversar com ela em vídeo, por telefone, ao lado do meu filho —minha tia voltou ao hospital para cuidar dela.
Vai ser difícil, mas, agora, só preciso que ela volte para casa.
Sempre fomos nós quatro, em casa, mulheres muito unidas
Sobre a retomada da vida econômica, eu posso dizer que não sou nenhuma extremista. Tenho várias colegas autônomas que precisam trabalhar para ter o que comer. Mas acredito que é uma questão de bom senso: agora, temos que valorizar a vida. Depois, corremos atrás do dinheiro.
Eu daria todo o dinheiro do mundo para ter minha mãe aqui comigo —e nem sou rica.
Hoje, estou isolada há mais de um mês. E eu digo a quem eu posso, daqui: se você pode, realmente, fique em casa. Cuide de sua família, aproveite-a, contemple as vidas humanas. Graças a Deus, aproveitei e curti minha mãe; ela pôde aproveitar o netinho. Tenho meu coração tranquilo, porque sempre fomos nós quatro, em casa, mulheres muito unidas.
Essa doença está aí dizendo que pode acontecer com qualquer um. Enquanto isso não afeta a pessoa, está longe, se diz que é só uma gripezinha.
Quando isso se abate sobre a sua família, tudo muda —e, veja só, nunca levamos isso como uma gripezinha.
Minha mãe não tinha comorbidades; tinha sobrepeso, mas nenhum fator de risco.
Eu reconheci o corpo dela no hospital e, de lá, ele seguiu para o serviço funerário para ser encaminhado à cremação. Nem o caixão eu vi. Quando tudo isso passar, devemos ter uma cerimônia em família para uma despedida. Ela merece, e nós precisamos.
Eu e meu bebê fizemos o teste para a covid. O resultado saiu faz uma semana, mas deu negativo —o médico acha que, se tive o vírus, ele já não está mais na fase ativo. Na quinta [23], fiz o exame de anticorpos nele, para ter certeza de que ele está livre. É tudo de que eu preciso agora."
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