Covid-19 e indígenas: os desafios no combate ao novo coronavírus
Com 305 povos e 274 línguas diferentes, a população indígena brasileira vive realidades diversas que envolvem desde grupos isolados até os que residem em áreas urbanas. A memória histórica de epidemias que chegaram a dizimar aldeias inteiras, no entanto, permanece um elemento comum que o vírus Sars-CoV-2, causador da covid-19, tem reavivado, nos últimos meses. Com maior vulnerabilidade a doenças infectocontagiosas e dependentes de um subsistema médico que apresenta problemas de articulação com as secretarias estaduais e municipais da Saúde, moradores de territórios indígenas receiam um novo genocídio.
Na terra dos yanomamis, em uma região dominada pelo garimpo, ocorreu a primeira morte por covid-19 notificada pela Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), em 10 de abril: um jovem de 15 anos que estava fazendo tratamento contra malária. "Mais de 20 mil garimpeiros estão instalados ilegalmente em território yanomami. No passado recente, esse tipo de invasão propagou grandes surtos epidêmicos", informa Tiago Moreira, antropólogo e pesquisador do Programa de Monitoramento de Áreas Protegidas do Instituto Socioambiental (ISA) e coordenador da plataforma covid-19 e os Povos Indígenas, que acompanha diariamente o avanço dos casos em áreas rurais, com base em boletins das secretarias estaduais e municipais da Saúde. Até 22 de abril, foram confirmados 42 casos de covid-19 entre indígenas que vivem em territórios assistidos pela Sesai.
"Limitações na disponibilidade de territórios tradicionais para manutenção dos modos de vida indígena, de acesso a saneamento básico, bem como infecções recorrentes, desnutrição e anemia e emergência de doenças crônicas tornam as populações indígenas um grupo ainda mais vulnerável à epidemia atual", analisa o médico especialista em epidemiologia e saúde de populações indígenas Andrey Moreira Cardoso, do Departamento de Endemias da Escola Nacional de Saúde Pública, da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz). Pesquisador de doenças respiratórias em populações indígenas, Cardoso realizou estudo sobre um surto de gripe influenza A (H1N1) que durou 16 dias, entre março e abril de 2016, em uma aldeia guarani de Paraty Mirim, no Rio de Janeiro.
Os resultados foram publicados em 2019, na revista PLOS ONE. No artigo, em conjunto com pesquisadores de instituições do Rio de Janeiro e britânicas, ele analisou o desenvolvimento da doença em 73 dos 170 indígenas da aldeia, que foram afetados. "Mais de 30 pessoas foram contaminadas em apenas um dia, levando a um aumento repentino da curva de casos. O surto afetou principalmente crianças com menos de 5 anos, que responderam por 32,9% dos casos, mesmo representando apenas 17,6% da população", informa. Entre os casos de maior gravidade, elas também foram maioria. De acordo com Cardoso, apenas dois dos 15 casos graves ocorreram em indivíduos com mais de 5 anos de idade. O artigo indica ainda que a incidência da Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars) na aldeia foi 4,5 vezes maior do que o verificado entre a população brasileira durante o surto de influenza, em 2009. "O vírus que circulou em 2016 chegou antes do que se esperava na aldeia e tinha sofrido mutações em relação à vacina contra a gripe do ano anterior, o que também colaborou para agravar o quadro entre os Guaranis", justifica.
Ao traçar um paralelo com a realidade atual, Cardoso avalia que as condições sanitárias de populações indígenas em áreas rurais de todo o país não mudaram e que todas são suscetíveis ao Sars-CoV-2. Por essa razão, analisa o pesquisador, o novo vírus tende a causar danos similares ou piores. "Ainda não sabemos se a pandemia vai se comportar como a influenza, afetando principalmente crianças, que apresentam fatores de risco relacionados com deficiências no estado nutricional e exposição à poluição, se seguirá o padrão identificado em países da Europa, atingindo de forma mais severa pessoas idosas, ou se acometerá fatalmente os dois grupos", diz o epidemiologista.
Por causa do perfil epidemiológico das populações nativas, o médico sanitarista Douglas Rodrigues, chefe da Unidade de Saúde e Meio Ambiente do Departamento de Medicina Preventiva da EPM-Unifesp (Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo), defende que elas sejam incluídas entre os grupos de risco na pandemia atual, ao lado dos imunodeprimidos, portadores de doenças crônicas e idosos. "As populações indígenas apresentam vulnerabilidades nos dois polos, ou seja, prevalência alta de doenças infectocontagiosas e também de problemas crônicos, como diabetes e hipertensão, além de índices elevados de obesidade e desnutrição", alerta Rodrigues.
Evidências dessas vulnerabilidades foram identificadas há pelo menos uma década, por meio do primeiro Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas, realizado entre 2008 e 2009, sob a coordenação da Fiocruz. Publicado em 2019 nos Cadernos de Saúde Pública, o artigo "Iniquidades étnico-raciais nas hospitalizações por causas evitáveis em menores de cinco anos no Brasil (2009-2014)" mostra que a taxa de Internações por Condições Sensíveis à Atenção Primária em crianças indígenas superou em cinco vezes a taxa observada entre crianças brancas. Quando comparados às demais categorias de cor e raça, os indígenas apresentaram condições mais desfavoráveis, com níveis elevados de hospitalização por pneumonia e diarreia, além de outras doenças infecciosas e parasitárias, em todas as regiões do país. Nas regiões Norte e Centro-Oeste, as taxas ajustadas de Internações por Condições Sensíveis à Atenção Primária em crianças indígenas foram 5 e 18 vezes as taxas correspondentes em crianças brancas, respectivamente.
Outra fragilidade diz respeito aos problemas ambientais nos territórios, que impedem algumas comunidades de permanecer isoladas das cidades em que há casos confirmados da doença. "Quarenta por cento da população indígena do país vive em aldeias de regiões que tiveram a natureza devastada. Com isso, atividades de caça, pesca e coleta de alimentos tornaram-se impraticáveis. Os índios são dependentes das cidades", diz Rodrigues, da Unifesp. De acordo com ele, embora em aldeias como as do Parque do Xingu, no Centro-Oeste do país, também sejam consumidos produtos industrializados, os índios têm mais condições de se isolar, por causa do meio ambiente preservado. "As políticas de saúde para combater o coronavírus entre os povos precisam ser distintas. Comunidades que conseguem subsistir com atividades de caça, pesca e coleta devem permanecer isoladas. Já outras que dependem das cidades para obter alimentos necessitam ser abastecidas, evitando o deslocamento de indígenas dos territórios", propõe.
O antropólogo Gersem dos Santos Luciano, do Departamento de Educação Escolar Indígena da Ufam (Universidade Federal do Amazonas), lembra que historicamente as epidemias foram responsáveis por causar reduções drásticas de populações indígenas no Brasil. "Gripes simples quase dizimaram aldeias inteiras", conta. Uma delas, por exemplo, deixou a população Kaingang, que vivia em territórios no estado de São Paulo, à beira da extinção, logo após os primeiros contatos com brancos, entre 1912 e 1913, conforme dados do ISA. Do povo Baniwa e nascido na aldeia yaquirana, no Alto Rio Negro, no Amazonas, Luciano explica que contribui para isso o fato de os povos indígenas viverem em casas comunitárias. "No caso dos Xaponos ou dos Yanomamis, por exemplo, uma mesma habitação, chamada de maloca toototobi, chega a abrigar 300 pessoas simultaneamente. Como o vírus Sars-CoV-2 tem poder de transmissão maior do que o causador da gripe comum, ele pode ser potencialmente mais perigoso nesses contextos", destaca.
Articulação em xeque
Com 20 anos completados em 2019, a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas é coordenada pela Secretaria Especial de Saúde Indígena, do Ministério da Saúde, e atende a uma população de 800 mil indivíduos, espalhados por 34 dos chamados distritos sanitários especiais indígenas. Em 2018, a pesquisadora Ana Lucia Pontes, do Departamento de Endemias da Escola Nacional de Saúde Pública, da Fiocruz, iniciou investigação para realizar um balanço da trajetória da participação indígena na formulação da atual política de saúde indígena.
Segundo ela, o processo teve início com a primeira Conferência Nacional de Proteção à Saúde do Índio, realizada em 1986, em que se discutiu como as políticas nacionais poderiam responder às necessidades de saúde, contemplar os modos de vida e as perspectivas indígenas no âmbito da reforma sanitária brasileira. Os debates aconteceram em direção oposta à lógica do projeto desenvolvimentista da ditadura militar (1964-1985), que envolvia a construção de hidrelétricas e estradas em territórios indígenas, e resultaram na chegada de epidemias fatais. Durante a construção da Perimetral Norte, que cruza os estados do Amazonas, Pará, Amapá e Roraima, entre 1974 e 1975, por exemplo, doenças infeciosas mataram 22% da população de quatro aldeias, conforme dados do ISA. Dois anos mais tarde, uma epidemia de sarampo matou metade da população de outras quatro comunidades indígenas.
"Desde a Constituição Federal de 1988, os povos indígenas passaram a ser entendidos como sujeitos de direitos e esse entendimento abriu caminho para que, anos mais tarde, se criasse uma política de saúde específica, que contempla suas particularidades de ocupação territorial, sua organização social, seus modos de vida e conhecimentos tradicionais", afirma. Segundo Pontes, antes da década de 1990, as políticas nacionais de saúde para a população indígena eram implementadas sem considerar seus modos de vida, defendendo que eles deveriam ser assimilados e integrados ao padrão nacional de atendimento.
O diálogo com conhecimentos tradicionais é um dos eixos centrais do Projeto Xingu, programa de extensão universitária da EPM-Unifesp que desenvolve ações no distrito sanitário do Parque Indígena do Xingu desde 1965. Coordenadora do projeto, a médica sanitarista Sofia Mendonça explica que desde a década de 1980 o sistema local de saúde vem sendo desenhado com a participação de lideranças indígenas. Artigo publicado em 2019 nos Cadernos de Saúde Pública mostra que a formação de agentes indígenas de saúde e auxiliares de enfermagem indígenas foi crucial para o desenvolvimento de campanhas preventivas e ações de diagnóstico precoce que resultaram em melhores estratégias para combater, por exemplo, doenças respiratórias e diarreia.
Apesar das melhorias, Mendonça observa que um dos gargalos que afetará o combate à Covid-19 diz respeito à atenção primária oferecida nas aldeias e sua articulação com as secretarias da Saúde estaduais e municipais. "Os distritos sanitários indígenas nem sempre são contabilizados nos planos de contingência de estados e municípios", reforça Pontes, da Fiocruz. Ela lembra ainda que a maioria das cidades próximas a territórios indígenas na Amazônia não dispõe de hospitais com Unidades de Terapia Intensiva (UTIs), tornando compulsório o deslocamento para Manaus, para o tratamento de casos graves. A capital do Amazonas concentrava até 17 de abril cerca de mil casos dos 1,2 mil de todo o estado, embora tenha apenas cerca de 500 leitos de UTI, conforme dados de 2018 do Conselho Federal de Medicina (CFM).
Em 13 de abril, um mês depois de confirmado o primeiro caso no estado, o sistema de saúde de Manaus entrou em colapso. "A pandemia da Covid-19 vai testar a articulação do sistema de saúde indígena em todos os níveis", prevê Mendonça, do Projeto Xingu. "Muitos povos indígenas, por exemplo, usam o tabaco em rituais e festas. Além disso, já passaram por diversos episódios de gripes e infecções. Se a doença atingir de forma severa pessoas mais velhas, que detêm o conhecimento tradicional sobre as práticas de reza e cura, pode gerar uma imensa redução da população e desorganização social", enfatiza.
Protagonismo nos territórios
Com familiares vivendo em São Gabriel da Cachoeira, cidade com a maior população indígena do Brasil, Luciano, da Ufam, explica que o município de 40 mil habitantes é referência para diferentes comunidades indígenas. Quando a pandemia começou a se agravar no Brasil, no começo de março, aldeias da região proibiram a entrada de estranhos e o tráfego fluvial e terrestre na cidade foi reduzido drasticamente. "Há uma grande mobilização protagonizada pela comunidade indígena", informa.
Essas medidas envolvem a capacitação de lideranças para orientar as populações das aldeias a permanecer nos territórios, o treinamento de índios para que reconheçam os sintomas da doença e tomem precauções de isolamento, quando houver suspeita de contaminação. Além disso, organizações indígenas e o ISA têm traduzido e adaptado material educativo e de campanhas de prevenção para os diferentes contextos culturais e linguísticos. "Não podemos pedir para as pessoas se isolarem em suas casas, por causa do contexto coletivo das aldeias, mas estamos orientando que permaneçam em seus territórios", exemplifica Luciano. Outra adaptação envolve procedimentos de higiene. Como nem todas as aldeias têm acesso à água potável, uma das principais orientações é não reaproveitar a água.
A Sesai dispõe de cerca de 1,5 mil unidades básicas de saúde, voltadas à população indígena do país. Algumas delas atendem a vários territórios. Sofia Mendonça, da Unifesp, analisa que a estrutura desses locais precisa ser repensada e os casos suspeitos atendidos em espaços separados, para reduzir o risco de contaminação. "Retirar garimpeiros, grileiros, extrativistas e madeireiros de áreas invadidas representa outra medida fundamental, já que esses invasores representam grande potencial de transmissão da doença", defende a médica. Segundo dados do Relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), 21 terras indígenas, com registros da presença de povos isolados, estão atualmente invadidas. Segundo o Cimi, são 114 os registros de povos indígenas isolados - 28 são confirmados pela Fundação Nacional do Índio (Funai).
Em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o ISA produziu um indicador de vulnerabilidade das Terras Indígenas para a Covid-19. O objetivo é avaliar a vulnerabilidade das populações indígenas em cada região do país, conforme critérios como perfil etário, acesso a leitos hospitalares, prevalência de doenças respiratórias e número de casos por município. Moreira explica que em populações não indígenas nesse tipo de análise são considerados critérios como o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da cidade, além de indicadores de desigualdade e pobreza. Porém, para os indígenas, há questões consideradas mais apropriadas, como percentuais de desmatamento e a presença de invasores. De acordo com esses critérios, foram identificadas as 10 regiões mais vulneráveis à pandemia.
As Terras Indígenas Barragem (SP), Yanomami (RR) e Jaraguá (SP) são as que se revelaram mais frágeis. No caso das regiões em São Paulo, o perfil etário mais velho da população e a situação de marginalização, que tem levado ao confinamento social, são responsáveis pela vulnerabilidade, enquanto entre os Yanomamis a alta incidência de doenças respiratórias, mesmo com ampla cobertura de vacinação, e a escassez de UTIs constituem fatores preponderantes para o diagnóstico. Já estudo recém-publicado pela Associação Brasileira de Estudos Populacionais (Abep) também analisou a vulnerabilidade de 471 terras indígenas no Brasil, considerando a distância de centros hospitalares com UTI, o percentual de idosos entre a população e condições de saneamento.
Um dos achados da investigação mostra que menos de 10% das cidades brasileiras com terras indígenas dispõe de leitos de UTI. "Em muitas comunidades indígenas, as populações já estão isoladas, fecharam suas fronteiras ou foram para o meio do mato. Os indígenas estão articulando sua experiência histórica de ter vivenciado outras epidemias catastróficas para tentar lidar com a ameaça atual", finaliza Moreira, do ISA.
Território mapeado
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) antecipou a publicação de dados sobre povos indígenas e quilombolas com o propósito de subsidiar o desenvolvimento de políticas de enfrentamento da Covid-19 entre essas populações. As informações, divulgadas em 24 de abril, integram a base territorial do próximo Censo, que foi adiado para 2021, e também contemplam informações do Censo de 2010. Naquele ano, a população indígena no Brasil era de 896.917 pessoas - 517.383 viviam em localidades indígenas. Localidade ou terra indígena é um termo genérico utilizado pelo IBGE para designar os lugares do país em que há populações nativas, sejam áreas demarcadas ou não. De acordo com os novos dados, entre 2010 e 2019 o número de localidades indígenas passou de 1.856 para 7.103. O resultado decorre de incremento da capacidade técnica do instituto em identificar essas comunidades tradicionais.
De acordo com os dados antecipados pelo IBGE:
- As atuais 7.103 localidades indígenas estão distribuídas em 827 municípios. 632 delas são terras oficialmente demarcadas
- A região Norte concentra o maior número: 4.504 no total, seguida do Nordeste (1.211) e Centro-Oeste (713)
- Também está na região Norte o maior número de terras oficialmente demarcadas: 305 no total. No Amazonas são 148, em Mato Grosso, 73 e no Pará, 54
- O estado do Amazonas reúne a maioria das localidades indígenas do país (2.602), seguido de Roraima (587) e do Pará (546).
- São Gabriel da Cachoeira (AM) é a cidade com o maior número de localidades indígenas: 429. Em seguida estão Alto Alegre (RR), com 149, e Jacareacanga (PA), com 112
Fonte: Base de Informações Geográficas e Estatísticas sobre os Indígenas e Quilombolas/IBGE/2019
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