"Gerei um filho por FIV para curar outro de doença genética e hereditária"
Desde o dia em que chegou ao mundo, Gabriel de Oliveira Cano, 7, luta pela vida. No parto, ele nasceu sem batimentos cardíacos, os médicos o ressuscitaram, e ele ficou 28 dias na UTI. Depois, os pais descobriram que ele nasceu com uma doença genética chamada anemia falciforme. Foram anos vendo Biel com dor e inúmeras internações até que a mãe dele, Ana Maria de Jesus, 33, e o pai, Luciano de Oliveira, 34, resolveram engravidar por meio de uma fertilização in vitro para gerar um bebê saudável e 100% compatível para realizar o transplante de medula óssea e salvar a vida do menino. Ana conta a história da família nesse depoimento.
"A gravidez do Gabriel não foi planejada, veio no susto, mas ficamos felizes. Com 32 semanas de gestação, senti fortes dores no estômago, minhas amigas do trabalho me levaram ao hospital e eu fiquei internada alguns dias em observação.
O médico disse que precisava tirar o bebê e abrir a minha barriga para ver o que eu tinha. Ele suspeitava que fosse uma obstrução intestinal. O Gabriel nasceu prematuro de 33 semanas, no dia 5 de agosto de 2012.
Foi um parto complicado. O Biel teve sofrimento fetal, ele engoliu um líquido da minha barriga. Ele nasceu morto, sem batimentos cardíacos. Os médicos conseguiram ressuscitá-lo, ele foi intubado e levado à UTI.
A suspeita do médico se confirmou, meu intestino dobrou e fez um nó. Eles fizeram a cirurgia para corrigir. O médico explicou que isso provavelmente aconteceu porque eu tinha feito bariátrica e abdominoplastia alguns anos antes de engravidar.
Fui para a UTI e meu marido me contou o que tinha acontecido. Foi um baque quando ele me falou que o Gabriel tinha nascido sem vida. Ele me tranquilizou dizendo que ele estava bem, mas respirando com a ajuda de aparelhos.
Só fui conhecê-lo pessoalmente cinco dias após o parto. Ele era tão pequeno e magrinho, perdeu muito peso —estava com 1,9 kg—, porque precisaram drenar o líquido que ele tinha ingerido. Com sete dias do nascimento, ele arrancou o tubo respiratório sozinho. Os médicos aproveitaram para observar como ele reagia.
Ele apresentou uma boa saturação e ficou bem. Desde o nascimento, tirava leite para não secar e deixava no banco de leite para ele tomar. Ele ficou internado quase um mês e só no 24º dia ele mamou no peito e começou a ganhar mais peso. Ai fomos para casa.
Médica disse que fomos presenteados com uma bomba
Nós recebemos um comunicado da APAE pedindo para comparecermos à instituição. Fiquei desesperada pensando que ele poderia ter alguma deficiência física, mental ou que tivesse ficado com alguma sequela.
Chegando lá, a médica explicou que o teste do pezinho detectou uma deficiência no sangue, na hemoglobina S, e que ele tinha nascido com uma doença chamada anemia falciforme.
Nesse mesmo dia, fizemos um exame de sangue e descobrimos que o Luciano tinha traço de falciforme. Eu já sabia que tinha o traço de talassemia. A médica explicou que o Biel nasceu com essa doença por causa da combinação do meu traço e do meu marido. O meu filho mais velho, o Danyel, do meu primeiro casamento, não tinha a doença.
Ela me disse: 'Parabéns vocês foram presenteados com uma bomba. O filho de vocês vai sentir muitas dores e vocês vão viver no hospital. Será uma vida sofrida e com complicações'.
Antigamente, uma criança com essa doença não durava mais do que dez anos, hoje, com tratamento, é possível prolongar esse tempo.
Nosso mundo desabou, ficamos abalados e sem rumo. Saímos da APAE, abraçamos o Biel do lado de fora e choramos inconsolavelmente.
Gabriel começou a fazer tratamento com hematologista uma vez por mês. Com dez meses, teve a primeira crise, chorava sem parar. No mesmo dia fomos em dois hospitais e em uma UPA (Unidade de Pronto Atendimento).
Em todos, os médicos disseram que era gases. No terceiro hospital, eles constaram que era a crise da anemia falciforme. Os dedinhos da mão dele pareciam salsicha, de tão inchados e vermelhos. De lá para cá, foi crise atrás de crise, nós ficávamos mais no hospital do que em casa.
Às vezes ele ficava internado a cada 15 dias. Ele tomava morfina para dor e fazia transfusão de sangue porque a hemoglobina baixava muito.
Nessa época, já tinha acabado a minha licença-maternidade e eu tinha pedido para ser demitida para poder cuidar dele. Os médicos não falavam sobre cura, apenas diziam que a gente tinha de conviver com a doença para o resto da vida.
Teve um dia que eu assisti a uma reportagem de uma mulher que tinha uma filha com a mesma doença que o Biel. Ela tinha engravidado por meio da fertilização in vitro, com a escolha de embriões, para gerar um filho 100% compatível para curar a filha através do transplante de medula óssea.
Eu gritava: 'Tem cura para o meu filho'. Meu marido entrou em contato com essa mãe e ela nos deu um horizonte, contou sua experiência e nos indicou os médicos.
Fizemos feijoada, bingo e vaquinha para arrecadar dinheiro
Não encontramos no banco de medula um doador compatível com o Gabriel no mundo. Por isso, decidimos gerar outro bebê, mas não tínhamos um centavo para fazer o procedimento, que custava R$ 40 mil. Fizemos feijoada, bingo, rifa, vaquinha pela internet, postagens no Instagram e conseguimos arrecadar R$ 30 mil. Uma emissora de TV soube da nossa história e nos ajudou com mais uma quantia para a FIV e para terminar a casa que estávamos construindo.
Fiz a FIV com os meus óvulos e o esperma do meu marido. Tive 14 embriões bons, mas só um era saudável e compatível.
Consegui engravidar em 2017, mas com sete semanas de gestação perdi o bebê.
Só passava pela minha cabeça: 'Acabou a cura do meu filho, acabou tudo'. Fiquei arrasada e sem esperança.
Passados três dias, o Gabriel teve a pior crise da doença. Tinha falado para o Luciano que não ia mais tentar, tinha sido um tratamento muito invasivo e dolorido. Mas ao ver meu filho sofrendo daquele jeito seria injusto não ajudá-lo. Nós recomeçamos.
Não tínhamos mais dinheiro e mais uma vez contamos com a solidariedade de amigos, familiares e desconhecidos para nos ajudar através das rifas, bingos e vaquinhas. Todo mundo abraçou a causa mais uma vez e arrecadamos R$ 20 mil. Um dos médicos não cobrou a parte dele e conseguimos fazer o procedimento com esse valor. Tive 19 embriões, dois foram compatíveis. Coloquei os dois, mas só um vingou. Engravidei no mesmo ano, no final de 2017.
Com cinco semanas, tive muito sangramento e achei que fosse sofrer um aborto de novo, mas meu marido se dizia confiante: 'Esse bebê é nosso, ninguém vai tirar da gente'. A gestação prosseguiu, mas precisei ficar em repouso os nove meses.
Deus foi tão bom e maravilhoso que nessa época o Gabriel não teve nenhuma crise.
O Vitor nasceu no dia 18 de março de 2018, já no parto foi coletado o sangue do cordão umbilical para o transplante de medula óssea. Congelaram essa bolsa de sangue e esperaram ele completar seis meses para realizar o transplante.
Nesse período, o Biel precisou fazer nove sessões de quimioterapia para destruir a própria medula. Ele sofreu bastante com os efeitos colaterais, ficou com feridas na boca e no corpo, sentia dor na barriga, vomitava e emagreceu.
Apesar de todo sofrimento, ele nunca fez birra, sempre colaborou com o tratamento e era educado com a equipe. Eu sou fã número 1 do meu filho, ele é forte, guerreiro e maduro. Eu o admiro por tudo que ele passou.
Biel montou a Liga da Justiça com amiguinhos do hospital
O Luciano fez um acordo com o Biel, ele prometeu que faria tudo para salvá-lo. Ele disse que o Biel teria de ser igual a personagem Dory, do filme Nemo. Ele explicou que o transplante era a luta dele e ele precisava vencê-la.
O Gabriel incorporou a ideia e criou a Liga da Justiça com outros amiguinhos pacientes no hospital. O Biel era o Batman, o Caio era o Homem-Formiga, o Breno era o Homem-Aranha, e a Rebeca era a Mulher-Maravilha.
Todos se fantasiavam e brincavam no corredor. Os médicos e enfermeiros também se tornaram super-heróis.
Nós recebemos a ajuda financeira de muitas pessoas para conseguir gerar o Vitor. Meu marido queria retribuir de alguma maneira. Foi quando ele decidiu fazer um curso de palhaço para visitar pacientes em hospitais porque ele viu o quanto as visitas ajudavam nosso filho quando ele estava internado.
Ele encontrou através desse trabalho voluntário uma forma de demonstrar amor e gratidão. O Biel foi o primeiro paciente do 'Luciano Dr. Palhaço'.
Vitor é um anjo salvador que trouxe a cura para o irmão
O transplante da medula do Vitor para o Gabriel foi feito no dia 18 de setembro de 2018. A pega da medula foi rápida, com 13 dias. Conseguimos realizar o procedimento pelo convênio. O Vitor é um anjo salvador que veio para abençoar nossa vida, trazer a cura do irmão e nos encher de alegria.
Ele é o Super-Homem na liga do Gabriel. O Biel fez os exames e foi curado pela graça de Deus, não tem mais a anemia falciforme. Ele está com sete anos e o Vitor com 1 ano.
Desde setembro ele está se recuperando bem, está tomando as vacinas novamente e só pode sair de máscara para não contrair nenhum tipo de vírus e bactéria.
Estamos felizes, depois de muita luta conseguimos essa vitória e a oportunidade do nosso filho ter uma vida normal.
De não precisar mais viver em hospital, de poder voltar à escola, de crescer, trabalhar e ser um homem digno.
Espero que, através da história de superação dele, ele ajude outras pessoas com a mesma doença. Tudo é possível ao que crê em Deus e persiste. É cansativo, mas no final vale a pena".
Anemia falciforme
A pedido de VivaBem, Vanderson Rocha, professor de hematologia, hemoterapia e terapia celular da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo), especialista em transplante de medula óssea do Hospital 9 de Julho (SP) e coordenador médico da unidade de transplante de medula óssea do Hospital Sírio-Libanês (SP) explica a doença e como funciona o transplante de medula óssea.
O que é anemia falciforme?
A anemia falciforme é uma doença genética e hereditária, predominante em negros. Ela caracteriza-se por uma alteração nos glóbulos vermelhos, que perdem a forma arredondada e elástica, adquirem o aspecto de uma foice (daí o nome falciforme) e endurecem, o que dificulta a passagem do sangue pelos vasos de pequeno calibre e, consequentemente, a oxigenação dos tecidos.
Nos casos em que ambos os pais são portadores do traço falciforme, existe a chance de 25% dos filhos terem anemia falciforme. O traço falciforme não é uma doença. Significa que a pessoa herdou de um dos pais o gene para hemoglobina A (normal) e do outro o gene para hemoglobina S (característica da anemia falciforme), ou seja, ela é hemoglobina AS.
As pessoas com traço falciforme são saudáveis e nunca desenvolvem a doença. No entanto, podem transmitir o gene com mutação para as gerações seguintes. Caso um indivíduo com traço falciforme tenha um filho com uma pessoa que também tenha o traço, a criança poderá ter anemia falciforme —se nessa concepção especificamente, ambos os pais transmitirem o gene para hemoglobina S.
Outra condição rara, mas que também pode acontecer, é a chamada SBeta zero, que é a combinação de um traço falciforme com o traço da talassemia —caso dos pais do Gabriel. Por isso, ele nasceu com a anemia falciforme que tem características clínicas muito semelhantes a anemia falciforme SS.
Quais os sintomas da anemia falciforme?
Dor forte provocada pelo bloqueio do fluxo sanguíneo e pela falta de oxigenação nos tecidos, dores articulares, fadiga intensa, palidez, icterícia, atraso no crescimento, feridas nas pernas, tendência a infecções, cálculos biliares, problemas neurológicos, cardiovasculares, pulmonares e renais e priapismo (ereção involuntária e dolorosa do pênis).
Como é realizado o diagnóstico?
O diagnóstico é feito por um exame de sangue que se chama eletroforese de hemoglobina. Trata-se de um exame laboratorial específico para o diagnóstico da doença, que detecta presença da hemoglobina S. Quando o paciente tem anemia falciforme, ele terá hemoglobina SS ou a SBeta Zero.
A hemoglobina S pode ser detectada pelo teste do pezinho quando a criança nasce. Em casos de dúvidas no diagnóstico ou se o médico quer saber com detalhe as mutações, pode-se fazer um exame de sangue a nível do DNA.
Quais os tratamentos para a doença?
Os portadores de anemia falciforme precisam de acompanhamento médico constante. Quanto mais cedo, melhor será o prognóstico. O tratamento visa dar suporte para tratar as dores e as infecções com antibióticos.
Além disso, é recomendado estar com as vacinações em dia e ter uma boa hidratação. Apesar de não ter um tratamento específico, em algumas situações pode haver indicação de ações para diminuir as crises dolorosas (hidroxiureia), isquemias cerebrais de repetição (terapia de transfusão regular), terapia da quelação de ferro para aqueles que recebem transfusões com frequência e acumulam ferro no organismo e, mais raramente, a troca de hemácias (eritracitaferese).
Existem vários riscos: como dores frequentes e incapacitantes, problemas pulmonares, do baço, infecções e acidente vascular cerebral (derrame). A expectativa média de vida dos pacientes é de 40 a 50 anos.
A anemia falciforme tem cura?
A doença pode ter cura somente através do transplante alogênico de medula óssea. O grande problema é que a maior parte dos pacientes não é candidata ao procedimento pelos critérios de elegibilidade ou por não ter doador compatível. Atualmente, estudos estão sendo feitos usando a terapia gênica. Neste caso, um transplante de medula óssea autólogo é realizado com as células-tronco modificadas.
Como funciona o transplante de medula óssea?
Medula óssea é um tecido líquido-gelatinoso que ocupa o interior dos ossos. Na medula óssea são produzidos os componentes do sangue: as hemácias (glóbulos vermelhos), os leucócitos (glóbulos brancos) e as plaquetas.
O transplante de medula óssea é proposto para algumas doenças que afetam as células do sangue, como as leucemias, os linfomas e as anemias genéticas (anemia falciforme e talassemia). Consiste na substituição de uma medula óssea doente ou deficitária por células normais de medula óssea, com o objetivo de reconstituição de uma medula óssea saudável que vem de um doador.
O transplante também pode ser feito a partir de células precursoras da medula óssea, obtidas do sangue circulante de um doador ou do sangue do cordão umbilical.
O processo tem início com testes específicos de compatibilidade para que a medula não seja rejeitada pelo receptor. A partir disto, o doador é submetido a um procedimento feito em centro cirúrgico, sob anestesia, e tem duração de aproximadamente duas horas.
São realizadas múltiplas punções, com agulhas, nos ossos posteriores da bacia e é aspirada a medula. Esta retirada não causa qualquer comprometimento à saúde. O doador também pode doar células-tronco do sangue periférico ou pode-se colher células do sangue do cordão umbilical de irmãos compatíveis ao nascimento —caso que ocorreu entre o Vitor e o Gabriel.
Para receber o transplante, o paciente é submetido a uma quimioterapia que ataca as células doentes e destrói a própria medula. Então, ele recebe a medula sadia como se fosse uma transfusão de sangue. Uma vez na corrente sanguínea, as células da nova medula circulam e vão se alojar na medula óssea, onde se desenvolvem.
A probabilidade de se encontrar um doador completamente compatível em registros de doadores voluntários —35 milhões no mundo todo— para pacientes com anemia falciforme é inferior a 15%. Por esta razão, poucos transplantes foram realizados.
Os médicos incentivam os pais a terem um filho por fertilização in vitro para curar outro?
Como a doença falciforme é genética, é indicado um aconselhamento genético aos pais. Não se deve estimular os pais a terem outros filhos para serem doadores, pois há um grande risco de se ter outros filhos acometidos.
No entanto, quando eles decidem fazer isso, uma fertilização in vitro deve ser realizada com a escolha de um embrião que não tenha a doença e que seja doador.
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