Médica do HC é destaque na Science por experiência com anticoagulante
Em sua última edição, a revista semanal norte-americana Science, considerada uma das mais importantes publicações científicas do mundo, deu destaque a um artigo que aborda a evolução do tratamento da covid-19 com heparina —um anticoagulante indicado para reversão da trombose. Estudos conduzidos por médicos de diversos países do mundo vêm comprovando a eficácia do medicamento na redução dos tempos de intubação e internação em casos graves.
Especialistas entrevistados no artigo contam que chegaram ao medicamento graças a um estranho fenômeno percebido nesses pacientes. Mesmo apresentando uma baixa taxa de oxigênio no sangue, eles afirmavam não estar sentindo nenhum desconforto para respirar.
Sutil coagulação
A falta de correspondência entre o relato deles e o que se verificava nos monitores acontecia, segundo explicam agora os médicos, porque embora o pulmão permanecesse funcionando regularmente, observava-se já no início da infecção uma sutil coagulação nos vasos mais finos da rede sanguínea que se encontra na extremidade dos alvéolos —o que impedia a apropriada oxigenação.
Em condições normais, a taxa de saturação de oxigênio no sangue é 95%. Em casos graves da doença causada pelo novo coronavírus, essa taxa pode chegar a 70%, 60% ou até mesmo 50%, se medida com um equipamento que se prende a um dedo —o que, eventualmente, se confirma em exames de sangue.
Fuga de proteínas
A primeira a observar isso no Brasil foi a pneumologista paulista Elnara Marcia Negri, do Hospital Sirio Libanês e da USP (Universidade de São Paulo). À Science, Elnara explicou que em casos graves de covid-19 o maior problema não está no pulmão propriamente dito, mas na coagulação dessa rede sanguínea fina. "A evasão em cascata de proteínas do sangue leva à coagulação, o que impede a oxigenação adequada", diz.
Elnara conta que percebeu isso quando atendeu sua primeira paciente com covid-19. Era uma idosa que, junto com a dificuldade para respirar, passou a apresentar problemas circulatórios em um dedo do pé: "Ficou roxo, ao mesmo tempo em que houve uma queda abrupta na oxigenação", lembra a médica.
Por causa da trombose, a equipe de Elnara medicou a paciente com a heparina, que é um anticoagulante. Em pouco tempo, a oxigenação havia voltado ao normal, a paciente respirava bem e o dedo não estava mais roxo. A médica passou a considerar o anticoagulante como importante recurso para promover o impulso respiratório de pacientes com baixo nível de oxigenação, inclusive os que não apresentavam dificuldade para respirar.
Quase 90% de recuperação
No dia 20 de abril, Elnara postou um estudo preliminar detalhando a experiência no Sirio Libanês em 27 pacientes com covid-19. Relatou que as pessoas com baixa oxigenação no sangue receberam heparina, e que a dose era reforçada na medida em que se detectavam níveis elevados de D-dimer, um marcador de sangue que mede coagulação excessiva.
Entre os 27, um não recebeu acompanhamento porque foi transferido para outro hospital; dois mantiveram-se em estado grave, e 24 se recuperaram da infecção, incluindo quatro que tinham sido submetidos à ventilação mecânica. Trata-se da mais alta taxa de recuperação já vista desde o começo da pandemia, segundo a Science.
Elnara alerta que a heparina é um medicamento somente para uso hospitalar. Tomar a droga por conta própria pode levar à morte.
Chancela mundial
De acordo com Elbio Antônio D'Amico, hematologista do Hospital das Clínicas, o aumento da coagulação do sangue se torna mais intenso de acordo com a gravidade da doença. "Esse aumento é quantificado, e os resultados são compatíveis com os de um quadro denominado coagulação intravascular disseminada e coagulopatia induzida pela sepse ou pelo quadro viral", diz.
D'Amico cita um trabalho chinês publicado em março no Jornal of Thrombosis and Haemostasis, que mostrou que a heparina reduziu em 24% a mortalidade, no vigésimo oitavo dia de acompanhamento. "Desde então, várias entidades, como a Sociedade Espanhola de Trombose e Hemostasia, a Sociedade Italiana de Estudos de Hemostasia e Trombose, as sociedades chinesas e o serviço de saúde pública inglês têm indicado o uso profilático da heparina em todos os pacientes graves de covid-19, com aumento da dose de acordo com o peso do paciente, e observando outros fatores de risco para trombose e para complicações hemorrágicas."
Sabendo que nós, ocidentais, temos o risco aumentado para trombose, as doses de heparina ministradas foram superiores e, de acordo com o médico, obtiveram-se resultados bastante satisfatórios. A dúvida que aparece, de acordo com D'Amico, é se a melhora do paciente decorre da ação anticoagulante da heparina ou da anti-inflamatória.
Muitas considerações
Entrevistado para o artigo, o emergencista Reuben Strayer, do Mainmonides Medical Center, de Nova York, acha razoável concluir que a baixa oxigenação do sangue ocorre por causa da coagulação na diminuta rede de vasos dos pulmões. Diz que ele próprio está administrando heparina em seus pacientes, mas acredita que "simplesmente não é sabido" se de fato a coagulação é a única responsável pelos problemas respiratórios. "Há muitas coisas a considerar", diz ele à Science.
Nicholas Caputo, do New York City Health + Hospitals/Lincoln, acha que ainda há muito a se experimentar e descobrir. Caputo conta que um paciente dele com baixa oxigenação no sangue chegou a apresentar uma inesperada membrana cor de cera em volta dos dois pulmões. "Eu não sei o que de fato acontece patofisiologicamente nessa doença", disse à revista.
É guerra
Ao UOL, Elnara contou que está ministrando anticoagulante em todos os pacientes graves que atende. Até o momento, foram 60. "Sete ainda estão na UTI (Unidade de Terapia Intensiva), o restante foi para a enfermaria ou recebeu alta." Ela fala basicamente dos hospitais Sirio Libanês e 9 de Julho. "Estamos divulgando ao máximo nossa experiência e observações na rede pública."
Segundo ela, o protocolo ainda não é aplicado em todos os hospitais, "porque nem todos os colegas acreditam no tratamento". "Eles querem tudo baseado em evidências com estudos randomizados. Acontece que nós estamos no meio da guerra, e por isso nesse caso, a nosso ver, a observação clínica associada aos dados de autópsia deve ser levada em consideração."
Até que se prove a eficácia de um tratamento, ela explica, devem-se proceder testes com 300 pessoas — dois grupos de 150, cada. "Metade recebe a heparina, metade, não. Breve teremos esses resultados", diz.
* Paulo Sampaioé colunista do UOL e especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, médicos, atletas e madames.
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