"O medo não passa pela minha cabeça", diz médica que fez parto em UTI do HC
"Você vai se lembrar disso pelo resto da sua vida." Foi isso que Renata Lopes, obstetra e médica assistente do Hospital das Clínicas de São Paulo, disse para a colega após as duas terem realizado um parto em pleno leito de UTI do complexo hospitalar.
A paciente de 28 anos estava grávida de 31 semanas quando chegou ao hospital em estado grave com diagnóstico de covid-19. A cesárea era a única forma de salvar as duas vidas. "Mas ela estava tão grave que não aguentaria ser transportada para a sala de cirurgia", lembra a médica. "Então decidimos fazer o parto ali mesmo."
Bastante emocionada durante a conversa com VivaBem, Renata afirma que rezou antes do procedimento. "Sei que havia uma força maior naquela sala naquele dia guiando a todos. Não tenho dúvidas disso", diz. Confira abaixo o relato da médica:
"Desde que a pandemia começou, o Hospital das Clínicas se preparou para receber os casos mais graves, e parte desse preparo incluiu deixar uma equipe de obstetras exclusivamente para cuidar das pacientes grávidas e contaminadas com o novo coronavírus.
Eu me voluntariei para ficar e atender essas pacientes. No dia 12 de abril, domingo de Páscoa, meu plantão começava às 19h. Nesse dia, soubemos que uma paciente havia chegado com quadro respiratório grave e estava indo para a UTI para ser estabilizada.
Ela estava grávida de 31 semanas e, pelo quadro descrito, sabíamos que precisaria de uma cesárea. Até então, sabíamos que era uma situação de urgência, mas nada que fugisse do protocolo que temos para crises.
Até que nos chegou a notícia de que o estado dela estava pior do que imaginávamos. Não daria tempo de transportá-la para a sala de parto —ela não ia conseguir chegar até lá. Nesse momento, peguei a caixa de cesárea [com os instrumentos para o procedimento] e subi rapidamente até o andar da UTI.
Chegando lá, uma colega estava monitorando o coração do bebê. Era uma menina. A frequência oscilava muito, um indicativo claro de sofrimento fetal. Percebemos, ali, que teríamos que ser rápidos para tentar salvar as vidas das duas.
Quem conhece um leito de UTI sabe que ali não é um lugar adequado para esse tipo de procedimento. Não é bom para operar ninguém. Mas era a única chance, a única escolha possível naquele momento.
[se emociona] Quando decidimos, foi uma correria. Os enfermeiros se mobilizaram para ajudar, a neonatologia montou rapidamente um bercinho fora do leito, prepararam a sala e trouxeram os instrumentos. Em cerca de 20 minutos estava tudo pronto.
Lembro de estar focada e confiante, mas acelerada. Antes, falei com minha chefe ao telefone e ela conversou comigo, me acalmando, isso foi baixando meus batimentos cardíacos. Antes de começar, conversei com Deus. 'Por favor, que a cirurgia seja abençoada para salvar essa neném'. A outra obstetra que me acompanhou também fez uma oração.
Lembro que, quando começamos, de repente veio um silêncio enorme, todos acompanhando pelo vidro o que acontecia. Pensando agora, é como se tivesse sido uma cena de filme: todo mundo prendendo a respiração esperando o que ia acontecer em seguida.
Também me lembro de ver, pelo vidro, uma senhora, uma paciente, deitada em outro leito. Ela olhou para nós e começou a rezar. Foi muito marcante, uma cena muito forte, mesmo. Sei que havia uma força maior naquela sala naquele dia guiando a todos. Não tenho dúvidas disso.
[se emociona] Assim que tiramos a bebê, ela chorou. Apesar de ser prematura, de estar em sofrimento antes de nascer, de estar anestesiada [pois a mãe estava já sob anestesia geral], ela chorou. Isso foi muito importante para nós, finalmente conseguimos respirar aliviadas.
Foi um parto muito abençoado. De todas as complicações que poderíamos ter, nada deu errado. Não teve hemorragia, nada. Fizemos no tempo certo. Olhei para a minha colega e falei: 'Você vai se lembrar desse momento para o resto da sua vida'.
Em mais de 15 anos de medicina, já me envolvi em outras situações-limite. Trabalhando como obstetra, você lida com o imponderável, se depara com situações delicadas, e é difícil lidar com duas vidas ao mesmo tempo. Mas nada, nada se compara a esse dia. Eu choro até hoje quando conto, pois foi realmente muito impactante.
Saí da UTI e fui me desparamentar. Lembro de ter conversado com um amigo, depois tomei um banho. E chorei. Chorei, chorei muito. Quando voltei para casa, não conseguia dormir, estava ligada de adrenalina. Demorei algumas horas para cair no sono.
Nós que estamos na linha de frente dessa pandemia estamos fazendo sacrifícios. Não tem sido fácil não ver as pessoas que amo, meus sobrinhos, minha mãe, que mora sozinha. Não posso nem almoçar com ela. E ainda andar pela UTI... É um espaço muito triste. Os pacientes estão ali, graves, muitos pronados [posição de barriga para baixo, que ajuda na recuperação], sozinhos. Sei que é forte, mas às vezes me sinto numa guerra.
E aí há momentos como esse, em que vemos todo mundo se mobilizando, pessoas inspiradoras mesmo em um momento de crise. Ver essa mobilização naquele dia me emocionou demais. Dá esperança, aquece o coração da gente. E foi um nascimento simbólico, em um domingo de Páscoa.
Minha mãe me perguntou depois se eu não tinha medo de me contaminar. Ela, como mãe, estava preocupada comigo, claro. Mas eu disse: 'Mãe, o medo não passa pela minha cabeça nesses momentos'. Nosso foco é outro.
Expliquei para ela que, naquele momento, minha vocação para a medicina veio à tona. Senti que estava cumprindo meu propósito nesta vida."
Mesmo prematura, a bebê se recupera bem e está fora de risco. A mãe segue internada na UTI do HC, intubada e em estado grave.
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