Isolamento provoca desgaste familiar: como lidar com convivência em excesso
Resumo da notícia
- O excesso de tempo juntos por causa do isolamento social pode facilitar o desgaste das relações familiares
- Durante o convívio intensificado, é natural que venha à tona o lado mais frágil e indefeso, suscetível a mágoas
- O confinamento é uma condição bastante delicada e demanda tolerância e flexibilidade para evitar desentendimentos
Tampa da privada levantada, luz acesa sem ninguém na sala, louça acumulada na pia, volume alto do som no quarto, tigela do pet sem água e roupa suja largada no meio do caminho. São situações que por vezes incomodam um ou outro morador de uma casa e costumam gerar faíscas na relação doméstica. Nada que não se resolvia com pedido de desculpa, algum tempo de cara feia ou até uma gracinha sobre o assunto.
Mas isso foi antes da pandemia. Passados mais de quarenta dias de isolamento social e convívio intensificado, a conjuntura vem se tornando cada vez mais cansativa e desgastante em muitos lares. Seja pelo excesso de tempo juntos (muitas vezes inédito) ou pelas dificuldades e incertezas decorrentes do surto de coronavírus, o que antes era motivo para bronca ou reclamação rotineira, hoje pode ser a razão para ligar o modo tolerância zero.
Fica a impressão de que tudo está fora do lugar e qualquer bobeira causa irritação. As mudanças provocadas com o atual contexto, que envolvem desde ameaças de saúde até instabilidade financeira, exigem demais do nosso emocional. Assim, ficamos sobrecarregados e vulneráveis a reações exacerbadas, que variam entre nervosismo, impaciência e intolerância.
O confinamento é uma condição bastante delicada, e quando compartilhado com pessoas emocionalmente instáveis, pode chegar a casos extremos de agressões e violência. Estamos vivendo um momento bastante difícil e repleto de perdas, no qual é preciso respeitar os limites de si mesmo e do outro, ser flexível e não hesitar em pedir ajuda.
O culpado é o amor
Os desdobramentos desse intensivão da convivência familiar variam conforme o estabelecimento das relações antes de ocorrer a quarentena. Na explicação da psicanalista Isabel Cristina Gomes, professora titular do Departamento de Psicologia Clínica do IPUSP (Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo), é natural que haja ansiedade por causa do desaparecimento de muitas das certezas que constituíam o nosso modo de vida. "Manter o equilíbrio em situações de muito estresse emocional depende dos recursos psíquicos que cada um possui e da criação de um ambiente harmônico e cuidadoso dentro de casa", afirma.
Para a docente, um bom começo para reduzir as desavenças é aceitar as diferenças do outro. Além disso, por ser um contexto que "desperta angústias fortes e primitivas dentro de nós", devido à noção mais evidente da nossa finitude e fragilidade diante da pandemia, "pode ser um estímulo para que as pessoas baixem suas defesas e deixem de se atacar", avalia Isabel.
As origens para esses atritos e desentendimentos não estão ligadas a sentimentos de desprezo pelo outro, ao contrário, têm a ver com a dinâmica do afeto. Nossos vínculos são efetivados nesse esquema, que poderia ser comparado a "uma união meio conturbada entre o amor e o medo de perder", segundo o psicoterapeuta Ivan Capelatto, professor convidado do curso de Medicina da Família e da Comunidade da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas. "Na presença constante, o temor da perda fica exacerbado, e costuma haver mais agressões verbais e discordâncias."
O psicoterapeuta detalha que são mecanismos do próprio inconsciente ao amar alguém. "A afetividade é aquilo que rege as nossas relações de contato, mas o preço que pagamos é lidar com o medo."
Não sei quantas almas tenho
Quando não há folga no convívio entre os moradores duma mesma casa, outro fator que interfere na harmonia das interações é conhecer demais o outro. Nessa maratona de estar 24h com as mesmas pessoas, é bem provável que cada um mostre o seu lado mais frágil e indefeso, suscetível a mágoas, que precisa de apoio e compreensão. Mas será que vai haver condições para esse acolhimento? De que maneiras os medos serão interpretados?
"É como se tivéssemos diferentes tipos de personalidade. A convivência facilita que a gente mostre o nosso lado mais enfraquecido e vulnerável. Torna-se um processo desgastante porque muitas vezes o outro desconhece ou não sabe lidar com a nossa versão carente, estressada, amedrontada e sobrecarregada", explica Aline Henriques Reis, professora adjunta do curso de psicologia da UFMS (Universidade Federal do Mato Grosso do Sul).
O que também aumenta a carga de irritabilidade em meio ao isolamento domiciliar é o acúmulo de tarefas e a falta de privacidade, que nem sempre são percebidas pelos demais. "Quando comunico minhas preocupações e pensamentos, o outro tem a chance de entender o que está se passando comigo e as razões para estar daquela maneira." Faz parte de uma atitude generosa consigo assumir não ser possível dar conta de tudo, e de buscar apoio dos que estão ao redor por conta do cansaço, impaciência ou outras consequências das privações.
"Em vez de reconhecer esse estado de esgotamento, acabamos sendo indiretos, fazemos birras e reclamações. Ou ainda ficamos magoados e ressentidos pois o outro não foi capaz de notar aquilo que precisávamos. O ideal é ser franco e direto no pedido de colaboração", aconselha a docente.
Tolerância, flexibilidade e criatividade
Não são poucas as restrições a que a maioria de nós está sujeita no momento: da liberdade, de renda e de consumo, da sociabilidade, de desejos e vontades. Estamos nos despedindo do mundo da maneira que conhecíamos, e fazer as adaptações necessárias para lidar com essas novas conjunturas demanda energia e disposição. Por isso é fundamental que haja calma e respeito ao modo de funcionamento e reação do outro e de si.
"Geralmente queremos que o próximo seja uma projeção de nós mesmos ou que responda da maneira que idealizamos. Numa vivência intensa e com ameaça tão forte a nossa integridade física e psíquica, precisamos ser fortes para quebrar paradigmas e instituir o novo. Inclusive no modo de nos vermos e nos reconhecermos em nós e nos outros. Isso não é fácil", considera Gomes.
Uma importante saída apontada pela psicanalista para esse contexto é cada integrante da família abrir mão de ter a sua verdade e contribuir na criação de um ambiente plural de escuta, onde cada um possa dizer, sentir e colaborar para o melhor de todos. É uma abertura para descobrir ou despertar trocas afetivas, o cuidado e a solidariedade. Faz parte de um exercício reflexivo de se permitir ouvir o outro e reconhecer que os vínculos de maior proximidade podem nos oferecer o suporte emocional necessário para lidarmos com as incertezas atuais.
Nesse sentido, é bastante valioso tentar entender o que estamos passando e aceitar as limitações frente à atual situação. "O equilíbrio e a disposição vão nascer conforme a quantidade de esforço para assumir a nossa impotência frente a isso tudo", especifica Capelatto. O psicoterapeuta indica ser positivo buscar a sublimação, ao transformar ideias e prejuízos internos em arte. Reservar alguns momentos e convidar familiares para dividir essa experiência ao pintar, fazer música, inventar brincadeiras ou contar a história da própria família. "É a chance de transformar a dor em poesia, dança e teatro."
Para isso ser possível, é fundamental estabelecer acordos na casa, numa divisão justa de tarefas e que ninguém fique sobrecarregado. Reis lembra que para evitar desgastes, é indispensável delimitar atividades e fazer escolhas. "Obrigações e preocupações aumentam o nível de ansiedade das pessoas, o que reduz a disponibilidade emocional para os relacionamentos."
Reconhecer e falar sobre essas angústias pode contribuir bastante nessa dinâmica de gerar espaços para as necessidades de cada um. Ser compreensivo, e além de pedir, facilitar que exista momentos de lazer, de distração e de intimidade para todos. Nada mais é do que investir no autocuidado e na qualidade das relações. Internalizar que estamos fazendo o melhor que podemos com as ferramentas disponíveis no presente.
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