Um dia no maior cemitério da América Latina: morte fria e sem dizer adeus
Na última terça-feira (26), contei um pouco sobre a rotina e saúde mental dos sepultadores que atuam em São Paulo e Manaus, no Amazonas. Para ver de perto essa realidade, passei algumas horas no maior cemitério da América Latina, o Vila Formosa, na zona leste da capital paulista.
Além de ouvir os relatos desses trabalhadores, que muitas vezes são esquecidos por causa da dor dos outros, pude ver e sentir de perto o desespero das famílias que enterravam seus parentes.
Ao chegar no local, me deparei com muitos cachorros, pombos e um único velório na sala reservada para a despedida. Por causa da pandemia, velar alguém só é permitido por no máximo uma hora. Mesmo assim, a dor das famílias me comoveu. Muitos não podiam se abraçar e ficavam um ao lado do outro cantando e louvando numa espécie de culto.
Como estava com o fotógrafo, começamos a pesquisar os melhores lugares para tirar as fotos durante a pauta. Ao redor, diversas sepulturas abertas em meio a uma terra bem escura que fica entre o tom marrom e vermelho.
Quando entrevistava um dos sepultadores, um carro do serviço funerário chegou e perguntou onde era o local do sepultamento. O motorista chegava com um papel nas mãos com o código D3, indicando que a pessoa havia morrido de covid-19 ou estava sob suspeita. Em um intervalo de duas horas, sete carros apresentaram esse documento.
Atrás do serviço funerário, havia sempre um veículo de um familiar que estava ali para acompanhar o enterro. Por causa da restrição no número de pessoas, os sepultamentos ocorrem de forma rápida e com, no máximo, três pessoas da família.
Em um dos enterros, um carro se aproximou, os familiares saíram do veículos —todos de máscaras— e começaram a se despedir da pessoa que estava no caixão. Uma moça chora, grita, se joga no chão e precisa ser amparada pelas pessoas ao redor.
Naquela hora, não consigo pensar muito na pauta. Meus olhos se enchem de lágrimas e fico sem reação. Por um momento agradeço por não ter perdido nenhum familiar para a covid-19, já que aquele era mais um sepultamento de uma pessoa que havia morrido por causa da doença. E penso ainda mais: como deve ser se despedir de algum ente querido sem ao menos poder vê-lo e dizer adeus da forma "tradicional"?
E esse fluxo não para. A cada chegada de um carro, mais familiares descem, se despedem, choram, se abraçam e tentam achar um conforto.
Morte fria e sem bens
A noite vai caindo e o vento gelado fica cada vez pior. Depois de uma hora que eu estava lá, aparece um carro com o caixão que estava sendo velado lá embaixo quando chegamos. Nesse caso, por não ser morte por coronavírus, muitos familiares estão no local e, mesmo que distantes um dos outros, tentam se consolar. Alguns choram, outros ficam pensativos. Depois de alguns minutos todos vão embora.
A temperatura cai ainda mais e como já havia terminado todas as entrevistas decido ir embora. Quando estava me arrumando, um fato curioso mexeu com todos. Um carro de luxo se aproxima e estaciona perto das covas. Era uma BMW prata que não tinha como não chamar atenção. Um dos sepultadores fala: "Aqui não tem classe social, cor, dinheiro. Todos vão para o mesmo local".
Depois de alguns segundos, um casal de senhores sai do veículo e observa o sepultamento de alguém que, provavelmente, era próximo a eles.
Pego minhas coisas, agradeço os funcionários pelas entrevistas e saio andando. Quase na saída do cemitério, cruzo com duas mulheres que estão de máscara e com os olhos cheios de lágrimas. Uma delas segura um ramo de flores na mão e a outra segura a mão da outra moça.
Fico pensando o quanto é duro perder alguém em qualquer situação, ainda mais nessa pandemia, em que todos estão mais abalados emocionalmente. Meu Uber chega e saio dali me perguntando como poderia escrever a matéria e o quanto precisamos ser fortes para seguir em frente. E o quanto aquelas famílias precisarão de mais força ainda para seguir sobrevivendo...
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