Ela arranca e come cabelos há 20 anos: começou por bullying e aí veio abuso
A vendedora Bárbara Alves, 36, era apenas uma criança a primeira vez que arrancou os cabelos na tentativa de diminuir o volume para não sofrer bullying. Com um histórico de violência e dor na infância e adolescência, o hábito se tornou um transtorno, chamado de tricotilomania. Além de arrancar, aos 15 anos ela passou a comer os cabelos. "No início, sinto prazer, depois vira algo compulsivo e não consigo parar". Conheça a história dela:
"Tinha cinco anos a primeira vez que arranquei meu cabelo. Naquela época, a moda era usar chanel com franja. Meu cabelo ficava super armado, sofria bullying na escola e me achava feia. Tive a ideia de arrancar na tentativa de diminuir o volume e ficar bonita. Apesar das falhas, minha mãe nunca percebeu ou se percebeu ignorou e nunca me levou ao médico.
Nós tínhamos uma relação difícil. Apanhava muito dela e do meu padrasto. Qualquer situação era motivo para apanhar desde derrubar um sabonete no chão a quebrar alguma coisa.
Uma vez, uma tia materna me viu arrancando os fios, ela disse que não podia fazer aquilo e contou para outra tia. Me senti exposta, fiquei constrangida e não quis falar sobre o assunto com ninguém. Ela era psicóloga e tentou fazer hipnose comigo pedindo para me imaginar com o cabelo bonito, mas não teve efeito.
Aos sete anos, fui abusada sexualmente por um irmão do meu pai, que era pedófilo e alcoólatra. Ele me pegou um dia bêbado, me colocou no colo dele, me aliciou e me beijou. Contei para os familiares do meu pai, mas só minha bisavó acreditou.
Me sentia reprimida, escondia minhas emoções e arrancava o cabelo. Hoje vejo que era uma válvula de escape, uma forma de fugir dos problemas.
À medida em que fui crescendo, o vício de arrancar o cabelo se tornou mais frequente, principalmente em situações de ansiedade e estresse. Tenho o hábito de separar e arrancar por textura, tipo de cabelo, de dor, de raiz, de bulbo. A dor é diferente em todos os pontos da cabeça. Fui descobrindo isso com a prática e sempre faço sozinha e escondida, no quarto, na sala.
Tive sensação de prazer ao comer o cabelo
Aos 15 anos, assisti a uma entrevista de um ator que comia cabelo. Na hora eu pensei: 'por que será que ele come, que gosto será que tem?' Comi meu cabelo pela primeira vez e achei prazeroso. Antes era só a obsessão de puxar com a mão e a unha, de experimentar o toque, mas depois mudei meu comportamento e passei a arrancar o bulbo com os dentes e a engolir.
Experimentava a textura na boca, tinha bulbo que era mais duro, outros mais moles, alguns que saíam com sangue. Ao arrancar e comer, sempre associo à textura, a dor e a consistência.
No início, sinto prazer, depois vira algo compulsivo e não consiga parar. Quando vou perceber, já estou com uma dor insuportável e um rombo na cabeça. Olho no espelho e penso no estrago que fiz. Disfarço as falhas penteando e prendendo o cabelo. Eu fico com raiva e desesperada de me ver dessa forma e arranco ainda mais.
Uma situação que me senti mal foi quando a minha ex-sogra foi diagnosticada com câncer. Acompanhei o tratamento de perto e me sentia culpada de ver os pacientes, carecas, sofrendo com a perda dos cabelos por causa da quimioterapia. E eu, saudável, cheia de cabelo, fazia isso comigo.
Já coloquei luva, boné, fiz trança, mas não adianta prender minha mão quando minha cabeça é quem manda em mim. Até os 22 anos tinha períodos em que conseguia me controlar. A gravidez foi um desses momentos, tive uma gestação feliz e passava a maior parte do tempo com a mão na barriga.
Fiz empréstimo e me endividei para comprar prótese
A partir dos 23, passei a arrancar e comer cabelo todos os dias. A pior fase foi aos 27, durante uma crise no meu primeiro casamento, brigava com meu ex-marido diariamente. O transtorno já estava insustentável, o rombo já estava quase visível e decidi raspar a cabeça, só deixei a franja e a parte de trás.
Comprei uma prótese de R$ 2.500, não tinha dinheiro para pagar e dei vários cheques. De 2012 para cá, já comprei três próteses; as outras duas custaram R$ 3.000 e R$ 3.500. Fiz empréstimo e me endividei.
Na primeira prótese, que parecia uma peruca, arranquei o cabelo, mas não achei graça porque não sentia dor. Foi quando eu percebi que a minha ligação era com o dor. É difícil admitir isso, mas gosto de sentir dor, não me permito ficar sem dor.
Como agora não tenho mais ninguém para me machucar, eu mesma me machuco. Nas fases mais críticas, já cheguei a ficar arrancando e comendo cabelo por três horas, geralmente fazia isso deitada, no banheiro ou assistindo um filme.
Tomei vários remédios e passei em diversos psiquiatras e psicólogos, mas nenhum deles sabia como tratar meu problema. Eu mesma me diagnostiquei com tricotilomania, após descobrir o nome do transtorno pesquisando na internet 'hábito de arrancar o cabelo'.
A situação é tão incomum para a maioria das pessoas que eu tenho a percepção de que seria mais fácil falar que eu bebo e uso drogas —não faço nenhuma dessas coisas— do que falar que eu arranco e como o cabelo. As pessoas vão me olhar como se eu fosse louca.
Eu já deixei de fazer várias coisas com receio de descobrirem que arranco o cabelo, como esportes aeróbicos, dança, ir para academia, à praia. Morro de medo de a prótese sair do lugar ou cair. Do jeito que eu a penteio, ela tem de ficar. Toda hora eu olho no espelho para ver se não está aparecendo uma presilha ou uma parte da tela ou do elástico.
Me tornei uma pessoa reservada e evito ir a eventos com multidões. Adorava ir a shows, mas às vezes penso: 'e se eu desmaio, caio de uma escada, a prótese pode sair do lugar e estarei desacordada'.
Já me perguntaram se eu tenho aplique. Respondo que tenho uma prótese para cobrir várias falhas por causa da queda de cabelo. Não aprofundo o assunto e logo desvio a conversa para não alimentar uma mentira.
Já pensei em suicídio, mas nunca tentei nada
Já pensei em me matar algumas vezes por causa dos meus problemas, sendo a tricotilomania o principal deles. Não via uma luz no fim do túnel. Depois me conscientizava do absurdo dos meus pensamentos, nunca tentei nada. O suicídio é o pior dos pecados. A minha fé e o amor pelo meu filho me impediram de fazer isso, não podia dar esse exemplo para ele. Ele não pode achar que desistir da vida é uma opção.
É fundamental ter um canal aberto de diálogo e confiança com alguém. Demorei muito para conversar sobre o assunto, quando fiz, me senti aliviada, tirei um caminhão dos ombros.
Contei para o meu atual marido que sofria com o transtorno havia quase 30 anos. Ele me ouviu e se interessou em buscar mais informações sobre a doença e tentar me ajudar.
Em umas dessas pesquisas, nós descobrimos que o Hospital das Clínicas de São Paulo oferecia um tratamento em grupo, gratuito, para portadores de tricotilomania. Deixei meu nome na lista de espera e, após dois anos e meio, fui chamada para a triagem. Fiz vários testes, respondi a questionários e fui selecionada para o tratamento que tem duração de seis meses. Participo das reuniões uma vez por semana.
Consegui ficar uma semana sem arrancar e comer o cabelo
No primeiro encontro, já consegui um bom resultado. Fiquei uma semana sem arrancar e comer o cabelo, só tive um dia de recaída. O desafio é não arrancar o primeiro fio, assim como não pode dar a primeira tragada, nem o primeiro gole. A sensação de não arrancar o cabelo foi muito boa. Acredito que foi a mesma sensação de um dependente químico quando comemora: 'mais um dia limpo'.
Atualmente, meu tratamento consiste na terapia em grupo e medicação. Uma das profissionais comentou que vou precisar fazer um acompanhamento gástrico e uma ressonância abdominal para saber o tamanho do bolo de cabelo que eu tenho.
Esses fios não são digeridos nem expelidos, estão acumulados no meu estômago. Ela disse que uma pessoa que engole cabelo por 20 anos —que é o meu caso— tem aproximadamente 30 cm de cabelo. Provavelmente vou precisar fazer cirurgia para retirar esse bolo.
A luz no fim do túnel apareceu. Hoje, tenho a perspectiva de o meu cabelo voltar a crescer, de eu não precisar mais usar a prótese, de lidar melhor com o transtorno e de ter uma vida normal.
Procurar ajuda e falar com alguém de confiança não é fácil, mas é fundamental para melhorarmos".
O que é tricotilomania e tricofagia
A tricotilomania (TTM) é um transtorno mental caracterizado pelo hábito compulsivo de arrancar pelos do corpo. A causa é multifatorial, estando relacionada a fatores genéticos e ambientais, ainda não muito bem definidos, explica Rafael Natel Freire, psiquiatra clínico e forense, especializado em transtornos do impulso, professor e assistente do PRO-AMITI (Programa Ambulatorial Integrado dos Transtornos do Impulso) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo).
Segundo o médico, o quadro costuma começar com uma certa curiosidade inicial, que estimula a pessoa a arrancar para sentir a textura, e acaba se tornando uma obsessão que a leva a querer arrancar por qualquer motivo —assimetria, diferença de textura ou de cor.
"O mais curioso é que ocorre, particularmente, em momentos de relaxamento, ócio, assistindo televisão, filmes, durante o deslocamento no trânsito dentro de um veículo, sendo uma forma atípica de ansiedade. Quando a pessoa está ocupada, geralmente não ocorre ou ocorre com menor frequência. O comportamento se dá como um ritual, mas de forma praticamente automática", afirma Freire.
A prevalência para arrancar cabelo e ou pelos em pacientes com tricotilomania são: couro cabeludo (72%), sobrancelhas (56%), cílios (51%), região púbica (50%), pernas (21%), braços (12%) e axilas (12%). Para que os pelos voltem a crescer é necessário estratégias multidisciplinares, isto é, acompanhamento com psicólogo, psiquiatra, dermatologista e clínicos.
A ingestão dos cabelos
Depois de arrancarem, geralmente, os pacientes se ocupam de experiências orais, como correr o cabelo entre os lábios, morder, arrancar a raiz, o que pode causar erosão dental, explica Enilde de Togni Muniz, psicóloga clínica, especialista em terapia cognitiva comportamental e também colaboradora do PRO-AMITI com pacientes de tricotilomania e automutilação.
"Outra condição que merece atenção é quando a pessoa come o cabelo ou parte dele, comportamento chamado de tricofagia. A ingestão completa de cabelo pode levar a consequências mais sérias, como o desenvolvimento do tricobezoar gástrico intestinal [bola de pelos ou cabelos]. Essa massa tende a ser grande e ocupar o lúmen gástrico e, em alguns casos, estender-se até a válvula ileocecal, condição conhecida como Síndrome de Rapunzel. Sua remoção deve ser feita com cirurgia", afirma a psicóloga.
Fraqueza, anorexia, perda de peso, náusea, vômitos, dor abdominal, constipação e diarreia são sintomas associados ao tricobezoar, podendo ter complicações como anemia, obstrução intestinal, ulceração, perfuração gástrica ou intestinal, infecções de pele e síndrome do túnel do carpo, associada ao comportamento de levar repetidamente a mão ao cabelo causando a lesão de esforço repetitivo (LER).
A sensação de comer o cabelo varia de pessoa para pessoa, mas é comum o relato de obtenção de certa satisfação, alívio ou mesmo prazer, com uma predileção especial pelo bulbo capilar. À medida que o quadro evolui, o mais comum é que isso ocorra de forma praticamente inconsciente, pelo menos na maioria das vezes. Há um componente obsessivo que gera um comportamento irresistível, de forma relativamente análoga ao TOC (Transtorno Obsessivo-Compulsivo), explica o psiquiatra.
O diagnóstico é clínico, através da anamnese psiquiátrica, na qual o paciente é entrevistado e avaliado de acordo com suas funções psíquicas. Deve-se descartar problemas dermatológicos, ou seja, irritação no couro cabeludo, coceira, queda de cabelo, machucado ou outros.
O tratamento é baseado na terapia medicamentosa associada à psicoterapia em grupo e individual. "Pacientes relatam fortes sentimentos de vergonha e embaraço, e muitos tentam disfarçar a perda de cabelo usando perucas, fazendo penteados especiais, usando bonés, chapéus ou lenços. É comum essas pessoas evitarem praticar esportes, como natação, dançar, se exercitar, situações nas quais a perda de cabelo pode ser exposta", diz Enilde.
"Quando falamos sobre alterações de comportamento, não é adequado falar em cura, uma vez que não se pode garantir que o comportamento disfuncional não irá se manifestar nunca mais. Porém, é possível atingir um nível de controle satisfatório e duradouro —o que vai depender muito da disposição do paciente em realizar o tratamento de forma adequada, em todas as suas modalidades", finaliza o psiquiatra.
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