'Me chamavam de burro e repeti 7 vezes': ele só descobriu dislexia aos 35
Ao gravar um depoimento sobre seu filho, Maria Lúcia Maramgoní não conteve as lágrimas. "Me lembro de ter feito algo tão ruim para ele. Era fim de ano e fui ver o resultado das provas. Quando vi no painel que foi reprovado, fiquei tão furiosa que comecei a chorar, peguei o carro e vim embora, deixei ele para trás. Depois pensei: 'meu Deus, porque fiz isso?' Ele já estava triste, sem graça por não ter passado. Nunca vou me perdoar", lamentou.
A angústia da mãe pode ser explicada pelo fato do artista plástico Waldemar Maramgoní, 48 anos, ter repetido nada menos do que sete vezes a quinta série na escola. "Eu escutei todo tipo de piadinha, me chamavam de burro, até que eu desisti de estudar", lembra Maramgoní. Ele já tinha 35 anos quando sua mulher pediu para ler um texto e notou que ele reproduziu diferente do que estava escrito. "Após uma longa pesquisa, descobri ser disléxico".
A dislexia é um transtorno de aprendizagem neurobiológico, que pode até mesmo levar a criança a falhar no processo de alfabetização. Ela se caracteriza pela dificuldade de decodificar o estímulo escrito ou o símbolo gráfico das letras, comprometendo a capacidade de aprender a ler e escrever com correção e fluência. A principal característica dos disléxicos é a não associação correta dos fonemas às letras.
A psicopedagoga e fonoaudióloga Maria Ângela Nico, presidente da ABD (Associação Brasileira de Dislexia), explica que dependendo do grau, também são notadas dificuldades para decorar a tabuada, reconhecer símbolos e conceitos matemáticos (discalculia), dificuldades de memorização, organização temporal, espacial e coordenação motora. Segundo dados da ABD, a dislexia é o distúrbio de maior incidência nas salas de aula e atinge entre 5% e 17% da população mundial.
Preconceito e a genialidade
A neuropsicóloga Maria Inez De Luca, membro do CEDA (Centro Especializado em Distúrbios de Aprendizagem) da ABD, ressalta que o diagnóstico da dislexia deve ser feito por uma equipe multidisciplinar, sendo necessários exames médicos de avaliação auditiva e de processamento visual. Ela informa que para ser considerado um disléxico é necessário ter uma inteligência na média, mas geralmente QI apresentado pelos portadores desse transtorno costuma ser alto.
A prova disso está em disléxicos que ficaram famosos por sua genialidade como o físico alemão Albert Einstein, a escritora Agatha Christie, o pintor Van Gogh e Walt Disney, que chegou a escutar de uma agência de publicidade que ele não teria futuro, tamanha era a dificuldade que tinha na leitura. Exemplos mais recentes incluem o ex-beatle John Lennon, o cineasta Steven Spielberg, os atores Tom Cruise e Whoopi Goldberg.
O fato de tantos disléxicos se destacarem no mundo das artes tem uma explicação científica. Segundo Nico, normalmente a pessoa tem o lado esquerdo do cérebro (que é o da linguagem) dominante, mas quem possui esse distúrbio teria a predominância do lado direito, que é o relacionado a criatividade.
Graus de gravidade
A dislexia é dividida em três graus:
- Leve: com pequena dificuldade para ler e escrever, nem sempre percebidas por terceiros;
- Moderado: troca frequente de letras lidas e escritas;
- Severo: que traz a quase incapacidade para ler e escrever.
Mas a presidente da ABD informa que as características variam entre os portadores. "Sabe-se que alguns genes nas pessoas com dislexia apresentam uma alteração, mas não é um gene exclusivo e sim vários. Por isso não existe uma uniformidade, não tem um disléxico igual ao outro. Uns podem apresentar falta de memória, outros só troca de letras e alguns as duas coisas", diz.
Maramgoní, por exemplo, provavelmente tem um grau entre moderado e severo, por isso tantas dificuldades na escola. Mesmo assim ele encontrou um caminho: apesar de nunca ter feito um tratamento, hoje não precisa usar tanto as habilidades de escrita e leitura. Autoditada, desenha desde os nove anos. Ainda adolescente, começou a dar aula de pintura com tinta a óleo, em 1987 abriu seu atelier, onde veio a ter seus próprios alunos. "Eu costumo falar que a arte me salvou", emociona-se.
Já a jornalista que escreve apresenta uma dislexia mais leve. Descobri que era disléxica aos 21 anos, de forma parecida. Um editor pediu para eu escrever um recado e percebeu que troquei as letras de uma palavra. Lembro que foi duro comigo, disse para procurar um especialista ou então nunca arrumaria um emprego. Na ocasião, procurei um Instituto de Fonoaudiologia. Em uma entrevista breve, falaram que eu tinha dislexia, mas não apontaram o grau. Não pude fazer o tratamento por falta de condições financeiras.
Na apuração dessa matéria, quando vi as dificuldades de Maramgoní e as explicações da psicopedagoga, confesso que fiquei surpresa. Na infância, logo descobri que trocava letras, principalmente "D" por "T" na escrita e "L" por "R" na leitura, mas isso não era visto como nada sério para os professores. A minha dificuldade maior estava na matemática, nenhuma operação entrava na minha cabeça.
De todo modo, meu esforço era em dobro, se errasse uma palavra ficava escrevendo inúmeras vezes até acertar, perdia noites de sono. Nunca repeti o ano, ganhava concursos de redação, fiquei em décimo sexto lugar no vestibular da faculdade que cursei e cheguei a ganhar um prêmio no jornalismo. Hoje o corretor automático me faz até esquecer das minhas dificuldades. Talvez, nesse no meu caso, a determinação tenha sido mais forte do que a dislexia.
Como é o tratamento?
Mesmo com esses exemplos de pessoas que não se trataram e seguiram suas vidas, é importante que ressaltar que hoje é mais fácil diagnosticar a dislexia e buscar por uma forma de tratamento.
Na infância, os disléxicos costumam ser encaminhados para a fonoaudióloga. O tratamento é longo, porque muitos portadores têm problema de memória. "É necessário o treinamento para melhorar a atenção, linguagem, memória através de exercícios e estratégias. Procuramos também relatar as habilidades dessas pessoas para que elas valorizem e mostrem seu potencial no aprendizado", explica Nico.
Quando a descoberta é na fase adulta, geralmente já existem problemas com a autoestima e a terapia pode ser boa aliada. "Infelizmente, ainda existe preconceito. Muitos relatam que são chamados de burros e preguiçosos, até mesmo por professores", ressalta a especialista.
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