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Médica influencer do HC: "Ninguém precisa visitar UTI para saber gravidade"

Yara Achôa

Colaboração para VivaBem

16/06/2020 11h00

"O mundo mudou e as prioridades de cada um também." Foi assim que a médica Luciana Haddad, do HC-FMUSP (Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo), iniciou um post em uma rede social na semana passada.

Aos 41 anos, cirurgiã do departamento de transplante de fígado, mãe de duas crianças, ela, que há sete anos também se dedica às competicões de corrida e triathlon de forma amadora, porém em altíssimo nível, está na frente de batalha do novo coronavírus desde que tudo começou. Ela não abandonou o esporte que tanto a equilibra e muito menos a vida familiar, mas teve de se adaptar à nova e puxada rotina de trabalho na maior crise sanitária mundial da nossa época.

Luciana é o que podemos chamar de influencer, ela tem 30 mil seguidores no Instagram, em seu perfil ela fala sobre medicina, família, esporte e, nos últimos meses, sua atuação na linha de frente contra a covid-19.

"Durante os momentos mais críticos, foi duro ver pessoas desrespeitando o isolamento. Tive uma sensação muito ruim ao saber de gente próxima, amigos que gosto e respeito, fazendo festinha ou correndo sem os devidos cuidados e ignorando o trabalho duro de quem estava na linha de frente. Resolvi focar no que podia fazer e controlar. A real é que nós, médicos, estamos nos esforçando, nos dedicando tanto para frear essa pandemia e muitas pessoas não levando a sério. Nesses quase três meses de pandemia, também me decepcionei com o governo federal, do posicionamento frente a essa batalha da saúde."

A sensação é de que o país está sem rumo. Tudo isso é muito ruim para quem está na ponta, convivendo dia a dia com a doença. Mas, mesmo sem a total colaboração de quem devia estar à frente, seguimos. Somos uma gotinha no oceano e vamos fazendo o que tem que ser feito.

Antes da decretação da pandemia, a médica dava expediente entre o ambulatório e a enfermaria de transplante de fígado, além de se dedicar às pesquisas e atuar como orientadora de pós-graduação no HC. Em casa sempre cumpria a jornada de mãe —de uma menina de 10 anos e um menino de 8—, do tipo que senta com os filhos para fazer lição de casa. E ainda treinava para o triathlon.

Mas já no início do ano, o Instituto Central, onde Luciana trabalha, recebeu a determinação de se tornar um hospital dedicado à covid-19. "Criou-se um cronograma e, aos poucos, as especialidades foram sendo transferidas para outros lugares. Nesse processo, o hospital pediu que médicos se voluntariassem para a linha de frente do novo coronavírus. Pudemos escolher entre ficar ou sair. Sempre gostei de desafios e me prontifiquei. Não tive dúvidas. Algumas pessoas consideraram 'loucura' essa minha opção."

[Dia?rio do Covida?rio] . quase 90 dias de covida?rio... . Sempre que ha? troca de pessoas, residentes, preceptores que saem do covida?rio, da? uma sensac?a?o estranha. Eu fico. Muitos ficam, para minha sorte. E? um alento velhos conhecidos nesse mesmo barco. Me?s que vem trocam alguns assistentes que esta?o comigo desde o comec?o. A @dra.liliducatti vai sair, e sera? doloroso. Prevejo. . Em alguns momentos tenho receio desse sentimento de desgaste, de desejo de que tudo volte logo ao que ti?nhamos antes no hospital. Porque sei que na?o sera? ra?pido, muito menos fa?cil. E sei tambe?m que na?o voltaremos ao que e?ramos. Como hospital, como equipe e eu, como pessoa. . Agora fac?o um exerci?cio dia?rio para manter a mesma excitac?a?o das primeiras semanas. Ha? menos novidades, menos doac?o?es, menos misso?es impossi?veis. Mas ainda ha? o principal: doentes com covid que recebemos diariamente que necessitam do mesmo cuidado de sempre. Na?o e? justo baixar a guarda e entregar menos. Na verdade, ainda ha? espac?o para melhorar! E quero fazer parte disso. . Eu poderia sair. Deixar o covida?rio e ir para um Instituto limpo. Ja? retomei muitas atividades profissionais na?o covid, grac?as ao mundo virtual. Mas pretendo ficar fisicamente aqui ate? o final. O nosso time de enfermagem e fisioterapia do transplante na?o tem opc?a?o de troca. E com eles ficarei ate? nossa grande festa, na alta do nosso u?ltimo doente covid. ? . #lutalks #lutalkscovid #covidario #hccomvida #contraocovid #coronatimes

Uma publicação compartilhada por Luciana Haddad (@lucianabphaddad) em

Hospital inteiro para covid-19

A sala da médica continuou a mesma, mas em volta tudo mudou, adaptando-se às necessidades da covid-19. Sentir algum tipo de medo foi inevitável. "Era minha missão formar as equipes para as novas alas e montar as escalas. Não foi tarefa fácil. Todos tiveram treinamento, claro. Mas ao mesmo tempo que isso dava segurança, também apavorava um pouco. Não era nossa área, sentíamos receio de fazer tarefas que não eram nossas no dia a dia. Era tudo novo, tudo diferente. Durante as duas semanas de transição não consegui dormir direito. Era muita adrenalina."

De cara, a equipe do HC sentiu o que viria pela frente. "Acompanhamos o que estava acontecendo na Itália e em outros países da Europa e fomos nos preparando. Montar um hospital inteiro dedicado à covid-19, com muitos leitos de UTI, não era só para enfrentar uma gripezinha."

Para proteger a si e à família, a médica sempre seguiu à risca o protocolo criado para evitar a contaminação: vestimentas para serem usadas apenas no trabalho, toda a paramentação no momento de contato com os pacientes, roupas de "transporte" entre o hospital e a casa (e vice-versa), banho ao chegar na residência, entre outros detalhes. E não descuidou de medidas que ajudam a fortalecer a imunidade, como boa alimentação e prática regular de atividade física. "No início, fiquei meio perdida, treinei menos, comi errado. Mas fui voltando à rotina. Agora pedalo pelo menos uma hora por dia em casa e faço exercícios funcionais", conta Luciana.

Ela também bem que tentou manter a rotina de acompanhar as tarefas escolares dos filhos —sem aulas presenciais por conta da pandemia. "É aquela coisa de 'culpa de mãe'. Ligava durante o dia para ver se estavam com dificuldade e chegava em casa e queria ver tudo o que tinham feito. Mas a necessidade cria poderes e eles aprenderam a ficar mais independentes e responsáveis, o que foi positivo para todos. Deve ter tido lição mal feita, mas tudo bem. Agora peço que escolham uma coisa que fizeram no dia e me mostrem", conta.

Produzir ciência em busca de respostas

Com o passar do tempo, a médica diz que foi se adaptando ao novo trabalho no hospital. "As sensações nas primeiras duas ou três semanas foram extremadas, difíceis. Aqui, os dias nunca são iguais. E mesmo com um hospital inteiro com o mesmo diagnóstico, os doentes também não são nada iguais. Agora já conhecemos um pouco melhor a doença, sabemos o que esperar a respeito da evolução do paciente. A grande incógnita é saber quanto tempo vai durar tudo isso. Serão mais dois ou três meses? Não sabemos. Estamos mais ágeis sobre como agir no dia a dia e, por conta disso, abrimos espaço também para novos estudos e pesquisas. Meu lado pesquisadora permanece super vivo. Afinal, somos um hospital escola, estamos com um número gigantesco de casos, e faz parte da nossa missão produzir ciência e trazer respostas, tão urgentes nesse momento."

Pelo fato de terem se preparado com antecedência, Luciana diz que não houve sobrecarga das equipes. "A gente já estava esperando alguns afastamentos, mas sempre tínhamos escala de backup. O profissional que porventura se afastava, voltava recuperado e reassumia seu lugar no time. Não teve nenhum momento de defasagem grande. E entendemos rapidamente a importância do descanso, de se desligar do trabalho. Ninguém aguenta um plantão de 12 horas de covid todos os dias. Estou no hospital de segunda a sexta, mas meu expediente é de oito, no máximo nove horas. No final de semana tento desligar um pouco ao lado da família, vendo um filme. No começo não conseguia relaxar, agora estou melhor."

O HC também não sofreu com superlotação e falta de leitos. Isso porque só recebe casos encaminhados. "Trabalhamos sempre no limite, mas não tem gente morrendo na porta. Na medida em que abrem leitos, chegam novos pacientes", explica Luciana.

Altas e baixas

Para a médica, entre os momentos mais tensos dos últimos meses, estão as internações de colegas da área de saúde com quadros graves de covid-19. "Tivemos uma funcionária que ficou vários dias intubada, gerando grande apreensão", conta.

Outro momento de cortar o coração foi a morte de um paciente bem jovem. "Ele estava em nossa enfermaria e, ao ser transferido para UTI, falou para equipe: 'eu vou morrer'. A gente sempre tenta ser otimista, fala que não isso vai acontecer, mas infelizmente ele faleceu. Nessa hora fica um sentimento estranho, de que poderíamos ter deixado que ele falasse mais com a família, proporcionado uma despedida melhor..."

Em meio à tristeza de algumas partidas, há a alegria das dezenas de altas dos pacientes. "Não é fácil se manter motivado e tentar motivar um time enorme de pessoas quando as lutas são diárias e nem sempre vitoriosas. Nossa colega do HC felizmente se recuperou e, não à toa, a escolhemos para receber uma homenagem como a milésima paciente a receber alta. Depois de nove dias na UTI, ela foi para nossa enfermaria, se recuperou e nos deu a alegria de presenciar o encontro emocionado com sua mãe. Não imaginava que fosse me emocionar da forma como me emocionei", conta emocionada.

A médica lembra também de um senhor de 80 anos que ficou 40 dias na UTI, desconectado do mundo. "Quando ele voltou a si, ficou um pouco confuso, mas foi se recuperando e estava totalmente lúcido e feliz na volta para casa. Todas as vidas importam."

Luciana conta que essas comemorações no retorno ao lar —geralmente com palmas das equipes— a fizeram pensar que todas as altas, de todas as especialidades, deveriam ser assim. "Uma paciente da área de transplante brincou que não recebeu esse tipo de homenagem ao receber alta por lá. Realmente, a gente tem de comemorar, como uma espécie de certificado de 'vida nova', com todo mundo que deixa o hospital após um grave problema."

A volta à rotina "normal"

Sobre o esporte e em especial as competições, que sempre fizeram seus olhos brilharem, Luciana diz que ainda não sabe como será o retorno. "Estou curiosa para saber: se estarei ainda mais motivada em busca do condicionamento que já tive um dia ou se buscarei outros caminhos. Sinto que a pandemia me trouxe de volta algumas coisas que sempre foram importantes para mim, mas havia deixado de lado. Até porque fazer 13 Ironman em cinco anos, com performance, exige tempo. Amei tudo que vivi e talvez volte ainda mais dedicada. Ou na?o. Nesse momento, a competição em si não é prioridade. Gosto de treinar mesmo sem provas. E? a busca do sentido da atividade que traz a verdadeira satisfação", reflete.

Com tudo o que tem vivido, Luciana diz que também redescobriu coisas da medicina que tinha deixado para trás. "Aprendo todos os dias, com os residentes, as enfermeiras. Esse contato, com pessoas especiais que abraçaram a causa, é muito bacana."

Para o bem da sociedade, ela deseja que o sistema de saúde público saia melhor do que entrou nessa batalha e que a ciência e as pesquisas sejam mais valorizadas e fortalecidas. E enxerga o momento como uma grande oportunidade para a mudança. "Ninguém precisa visitar um leito de UTI para saber da gravidade da situação. Basta acreditar na informação de qualidade produzida pela ciência."