Se cloroquina não cura covid, por que há "curados" por ela? Ciência explica
Na última terça-feira (7), o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) afirmou que estava com a covid-19. Instantes depois, postou um vídeo tomando cloroquina e dizendo que ela o ajudou a se sentir melhor. O remédio, como se sabe, não tem eficácia comprovada contra o vírus, mas o presidente pode não estar totalmente errado sobre sua sensação de melhora dos sintomas —e isso não tem a ver com política, mas com o seu cérebro.
Deixando de lado os defensores e os detratores do remédio, a história mostra que a crença humana sempre esteve acima do conhecimento científico nas sociedades até poucos anos atrás.
A parte boa disso é que ela nos ajudou a evoluir enquanto espécie e nos protegeu em épocas que não se sabia muita coisa sobre remédios e ciência.
A má notícia é que, falando em cloroquina (ou hidroxicloroquina), ela pode melhorar seu bem-estar pelo "efeito placebo", mas não vai reduzir sua chance de ir parar no hospital ou te ajudar a curar-se do vírus (e lembre que ainda há são muitos os efeitos colaterais possíveis). Aliás, nenhum "placebo" vai te curar de doença ou agente externo que necessite de sua resposta imunológica.
O efeito placebo e o cérebro
Natália Pasternak, microbiologista e presidente do Instituto Questão de Ciência, explica que toda medicação traz consigo um efeito placebo que, na verdade, está ligado ao condicionamento humano.
"No caso da cloroquina, ela se encaixa no efeito placebo da resolução espontânea da doença. A covid-19 tem um quadro em que 90% das pessoas vão se curar pela resposta delas próprias, e aí a pessoa pode atribuir a ela, ao chazinho, aos três pulinhos", afirma.
Ela faz uma comparação com a homeopatia. "A gente tem uma brincadeira, na medicina, em que dizemos que uma gripe passa em uma semana. Mas se tomar remédio homeopático passa em sete dias."
Mas o efeito placebo não vai além de alívio dos sintomas por meio de um estímulo cerebral causado por crença de que ele vai ajudar a solucionar algo. "Para dor, ele até funciona. Para os sintomas também. Mas para doenças infecciosas, não funciona. E a única coisa que pode atuar em doenças infecciosas são medicamentos específicos aprovados e vacinas", explica Pasternak.
Ela cita como exemplo doenças que requerem medicamentos ou resposta imunológica e que não sofrem efeito algum pela crença do paciente. "Por exemplo, um paciente de câncer pode tomar, se sentir melhor, mas o tumor fica lá crescendo. A pessoa se sente melhor, de verdade, mas não vai curar nada. O efeito placebo é muito conhecido para dor. Realmente, sabe-se que há receptores no cérebro que são ativados, vários trabalhos mostram isso. A redução da dor é real, não é uma coisa que a pessoa está fantasiando", diz.
No caso da cloroquina, ela afirma, ainda, que ela pode, sim, causar uma melhora dos sintomas em caso de crença de melhora, como relatou Bolsonaro. Mas no caso da covid-19, além da droga ter efeitos colaterais perigosos, ela pode conferir uma sensação de imunidade inexistente.
"O risco é que a pessoa pode ter a falsa impressão de segurança, que pode sair sem usar máscara, que não terá problema. É muito importante falar que, por mais que tenha efeito placebo, ela não tem efeito algum antiviral; ou seja, não fará nada no vírus. Sem contar que ele pode se sentir bem, mas a doença pode evoluir e agravar, e dois dias depois ele estar no hospital", afirma.
Divulgação ajudou
Eliane Campesatto, doutora em farmacologia e professora e pesquisadora na Ufal (Universidade Federal de Alagoas), explica que não há ainda qualquer droga registrada que cure ou previna a covid-19. Com isso, qualquer atribuição de cura a um remédio é mera crença sem fundamento científico. "Todos os fármacos que estão sendo utilizados, ou mesmo testados, são reaproveitadas de outras doenças, sem comprovação de eficácia para covid", explica.
Ela diz que a cloroquina ou outro medicamento usado para covid-19 não são, do ponto de vista teórico, classificados como placebo. "Eles são considerados off label. Isso quer dizer que é um medicamento que o médico pode prescrever, só que não tem indicação para aquela doença. Nenhum dos medicamentos que estão sendo usados para covid-19 têm na bula que podem usados para covid-19. Eles são utilizados para outras coisas", explica.
Para ela, a popularização da ideia de melhora ou mesmo cura por remédios sem eficácia comprovada deve também ser atribuída à divulgação equivocada de estudos ainda em suas fases iniciais. No caso da cloroquina, ela cita que o primeiro estudo francês que teria apontado bons resultados da droga foi carregado de falhas, mas foi suficiente para causar estrago.
"Todos esses fármacos usados para covid-19 no Brasil têm por trás alguém que começou isso de uma maneira inconsequente, irresponsável para tentar fornecer segurança à população, tipo um milagre, uma cura. A polêmica da cloroquina e a da hidroxicloroquina surgiu desse estudo torto, amplamente divulgado pelo [Donald] Trump e apoiado pelo Bolsonaro. Depois veio a ivermectina, que começou por um anúncio em artigo com título bem sugestivo, dizendo 'droga aprovada pelo FDA inibe o Sars-CoV-2.' Mas eles foram mal-intencionados porque ela é aprovada para parasitoses, não para Sars-CoV-2. Isso levou muita gente a achar que ela tinha esse efeito antiviral", explica.
Células são só células
Ricardo Parolin Schnekenberg, médico e pesquisador doutorando na Universidade de Oxford, no Reino Unido, também aponta falta de conhecimento das pessoas de como é o processo das pesquisas para descobrir a eficácia de drogas.
"O fato de algo demonstrar algum efeito no laboratório não deve ser levado em consideração pela população. No laboratório, coisas funcionam todos os dias, pois usamos células imortalizadas (geneticamente anormais) e gigantescas concentrações de medicamentos diretamente no meio de cultura das células. Células não têm convulsão, não têm hepatite, não têm diarreia, não têm infarto. Células são apenas células. Apenas verificamos se elas sobrevivem ou morrem", explica.
Diante da falta de informações, diz Parolin, é comum o senso popular levar a crer em coisas que a pessoa consegue sentir e saber —e não que são fatos com comprovações científicas. "É natural que o humano ache que aquele medicamento que tomou esteja relacionado ao efeito observado —o contrário também é verdadeiro. E quanto mais rápida a ação, mais se acredita nisso, em regra", explica, citando um exemplo clássico.
"Quando pessoas têm gastroenterite, elas costumam culpar a última refeição que fizeram, sendo que quase sempre essa não é a culpada. Isso é deficiência nossa como sociedade em educar as pessoas sobre ceticismo natural e ciência", pontua.
Sociedade da crença
Luís Cláudio Lemos Correia, doutor em medicina e saúde e diretor do Centro de Centro de Medicina Baseada em Evidências da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, estuda o comportamento humano e atribui ao dogma ciência x crença o comportamento de acreditar nesse tipo de soluções.
"A questão é que nós temos poucos séculos com alguma coisa de conhecimento científico —e ele não é a mesma coisa que a crença. Só que no mundo atual, esse paradigma da crença perdeu utilidade, mas que ao longo de 200 mil anos serviu como uma forma de nos fazer evoluir e, inclusive, selecionar as pessoas com maior probabilidade de sobreviver", explica.
Para ele, a crença da "cura" da cloroquina se trata de um fenômeno humano histórico, que apenas teve uma ampliação pelo componente político. "É muito mais que um fenômeno médico, ou da sociedade brasileira, ou relacionado a essa pandemia. A mente humana é muito baseada em crença, mas agora temos o paradigma científico que preza pelo ceticismo; ou seja, eu começo querendo investigar antes de acreditar. Isso não é um paradigma biológico, não somos assim enquanto seres humanos. É por isso que a gente tende, em momentos de decisão, se basear muito mais na crença do que nas evidências", diz.
Para ele, trata-se de uma fragilidade humana com explicação sociológica. "A gente tem de ver essa nossa irracionalidade como algo característico de nossa espécie. É uma fragilidade humana: a gente confunde crença com evidência", explica.
Diante de tantas explicações, Correia afirma que o comportamento não deveria resultar em brigas ou mesmo em "condenações" sociais. "Não é preciso demonizar médicos que prescrevem ou pacientes que querem usar o remédio. Isso não representa uma fragilidade cognitiva desses indivíduos, que fazem parte de uma sociedade que não é baseada em evidências. Então, não podemos querer que a gente mude justamente em um momento como esse, de uma pandemia. A gente já era irracional antes dela, por que a gente não vai ser agora, ainda mais em um momento que tem muita emoção assim?", questiona.
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