Quem tem doença de Huntington pode produzir menos neurônios desde que nasce
A doença de Huntington é uma enfermidade neurológica rara, debilitante e insidiosa que costuma se manifestar entre os 30 e os 40 anos de idade e matar antes dos 60. Causada por alterações no gene Htt, que codifica a proteína huntingtina, afeta de cinco a 10 pessoas a cada 100 mil na Europa, onde é mais frequente, e leva à destruição dos neurônios que produzem o ácido gama-aminobutírico (gaba).
Análises por imagem do cérebro de pessoas com Huntington indicam que a morte dessas células - os neurônios gabaérgicos - se intensifica no início da idade adulta e progride por quase uma década até surgirem os primeiros sintomas: perda de controle dos movimentos, deterioração do raciocínio e alterações do comportamento, como depressão.
A doença foi caracterizada em detalhes em 1872 pelo médico norte-americano George Huntington (1850-1916). Agora, um século e meio mais tarde, pesquisadores do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP) contribuem para compreender por que ela é tão devastadora: desde o início da vida as pessoas com Huntington podem ter estoques menores de neurônios gabaérgicos, justamente os que são destruídos em ritmo acelerado.
A suspeita de que possam existir menos desses neurônios no cérebro de quem tem Huntington resulta de experimentos com células de roedores e seres humanos feitos pela equipe de Alexander Henning Ulrich, do IQ-USP. Há quase 15 anos, o bioquímico radicado no Brasil e seus colaboradores investigam os fenômenos químicos e biológicos que transformam as células imaturas e versáteis dos embriões nas células especializadas do indivíduo adulto.
Os testes são feitos com células embrionárias de roedores, que se comportam de modo semelhante às humanas, ou células adultas humanas tratadas quimicamente para funcionarem como se fossem de embriões. Os pesquisadores as cultivam em pequenos frascos contendo nutrientes para mantê-las vivas e acrescentam ou eliminam compostos que podem afetar o destino celular. Assim, tentam conhecer quando e como os compostos atuam para o organismo se desenvolver com saúde.
Usando essa estratégia, Ulrich e a bióloga Talita Glaser encontraram indícios de que células embrionárias com as alterações genéticas típicas de Huntington nem sempre passam pelos estágios do amadurecimento que geram os neurônios gabaérgicos. Apresentados em 29 de abril na revista Molecular Psychiatry, os resultados reforçam uma ideia recente na neurologia: a proteína fabricada a partir de versões alteradas do gene da huntingtina prejudica o desenvolvimento do cérebro desde o início, e não apenas na idade adulta, como se pensava. "Essa constatação tem uma consequência", afirma Glaser, que faz estágio de pós-doutorado no laboratório de Ulrich. "Caso se encontre algum tratamento capaz de retardar a progressão da doença, ele possivelmente só produzirá o efeito desejado se for administrado muito precocemente." As terapias atuais apenas amenizam sintomas.
"A importância desse trabalho é indicar que a formação desses neurônios está alterada já no embrião e propor o mecanismo pelo qual isso ocorre", comenta o neurologista Raphael Machado de Castilhos, do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), ligado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ele e seus colaboradores tratam pessoas com Huntington e estimaram que a doença pode ser menos frequente no Rio Grande do Sul do que na Europa - não há dados sobre o restante dos brasileiros. "Não me surpreende que tal produção de neurônios possa ser diferente nos indivíduos com a doença", diz.
Os neurônios começam a se formar nos seres humanos por volta da quarta semana de gestação, quando o embrião tem alguns milímetros. Para simular os fenômenos que ocorrem nessa fase, Glaser isolou células-tronco de embriões de camundongo, capazes de originar diferentes tecidos do corpo, e as estimulou a se multiplicarem. À medida que se dividem em laboratório, elas originam uma espécie de embrião em miniatura e estacionam no estágio de precursoras neurais, quando ainda mantêm a capacidade de se dividir, mas só podem gerar neurônios e outras células do sistema nervoso (astrócitos, oligodendrócitos e micróglias). Em seguida, a pesquisadora induziu os precursores neurais a se transformarem em neurônios e registrou o que acontecia.
Os precursores neurais só viravam neurônios quando ocorriam determinados episódios de aumento na concentração de íons de cálcio em seu interior. Foram necessárias, porém, oscilações com um perfil muito específico para transformar os precursores neurais em neurônios gabaérgicos: sequências de quatro a cinco picos de elevação que se repetiam cerca de 30 vezes em uma hora. Em cada uma delas, o nível do íon triplicava e se mantinha alto por 15 segundos. Esse padrão de oscilação ativou de modo prolongado o gene ASCL1, que, por sua vez, despertou outros genes que definem o destino da célula. "Esse padrão direcionou as células-tronco a se transformarem em neurônios gabaérgicos", conta Ulrich.
Faltava descobrir o que controlava as oscilações do cálcio. Esse íon está em concentrações milhares de vezes mais elevadas fora da célula do que dentro e seu aumento no meio intracelular depende da ação de proteínas que criam canais na membrana ou abrem os reservatórios internos da célula. Entre as centenas de moléculas que podem desempenhar essas funções, a equipe da USP verificou que a ação de duas - a VGCC-L, do primeiro grupo, e a P2Y2, do segundo - era importante para a formação dos neurônios gabaérgicos.
Glaser e Ulrich decidiram, então, averiguar como seria a produção desses neurônios durante o desenvolvimento embrionário. Usando células de pacientes tratadas para se comportarem como as de embriões, a bióloga as estimulou a se transformarem em neurônios. Não funcionou. Não houve picos de liberação de cálcio nem surgiram neurônios gabaérgicos. "A forma alterada da huntingtina atrapalha de algum modo o funcionamento do receptor P2Y2", conta a pesquisadora.
"Sabemos agora que é possível usar esse mecanismo para selecionar fármacos com o potencial de aliviar ou atenuar a evolução da doença de Huntington", afirma o neurologista português Rodrigo Cunha, da Universidade de Coimbra, especialista em doenças neurodegenerativas. "Não é a cura nem a compreensão total da enfermidade, mas é um passo que pode contribuir para esse desígnio."
*Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP. Leia o original aqui.
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