Taxa de admissão de pretos e pardos em UTIs é menor do que a de brancos
No Brasil, o risco de pessoas pretas e pardas contaminadas com o novo coronavírus morrerem em decorrência de complicações associadas à covid-19 tende a ser maior do que o de pessoas brancas, assim como também é maior o risco de morte pela doença entre infectados internados em hospitais dos estados do Norte e Nordeste - independentemente da cor de sua pele - em relação àqueles hospitalizados nas demais regiões do Brasil.
Os resultados constam de análises de registros médicos de 11.321 pessoas internadas com Covid-19 no país entre os dias 27 de fevereiro e 4 de maio. Assinado por pesquisadores de diversas instituições de ensino e pesquisa do Brasil, dos Estados Unidos e do Reino Unido, o estudo vem na esteira de vários trabalhos recentes, realizados com o propósito de entender melhor como a atual pandemia impacta uma sociedade tão desigual como a brasileira e como essa desigualdade pode favorecer o agravamento da doença em determinadas populações e regiões.
No trabalho, publicado dia 2 de julho na revista Lancet Global Health, os pesquisadores analisam dados do Sistema de Informação da Vigilância Epidemiológica da Gripe (Sivep-Gripe), que possibilitam acompanhar o histórico e o desfecho de casos - como recuperação ou morte - de cada paciente internado com Covid-19. "Esses dados também nos permitem acessar características específicas dos pacientes, como idade, sexo, cor da pele e comorbidades", explica o físico italiano Valerio Marra, pesquisador do Departamento de Física da Ufes (Universidade Federal do Espírito Santo) e um dos coordenadores do trabalho.
Os pesquisadores cruzaram essas informações e, com base em modelos computacionais, verificaram que a cor da pele representava uma das principais variáveis associadas à alta probabilidade de morte por Covid-19. Um exemplo: 35% das 4.431 pessoas pretas ou pardas hospitalizadas com a doença morreram no período analisado, ao passo que dos 6.633 indivíduos brancos internados 25,5% perderam a vida.
Os autores suspeitam que essa diferença esteja relacionada à elevada desigualdade entre brancos, pretos e pardos no acesso oportuno e efetivo a serviços de saúde no país, sobretudo a leitos de UTI (Unidade de Terapia Intensiva). "No Brasil, a taxa de admissão de pretos e pardos nas UTIs é significativamente menor do que a de brancos", destaca Marra.
Ele e sua equipe constataram que do total de pessoas brancas internadas no período analisado 37,2% foram admitidas em UTIs; entre pretos e pardos, esse percentual foi de 32,7% e 32,9%, respectivamente. O fenômeno vai além dos casos de infecções causadas pelo Sars-CoV-2. Ao se debruçar sobre dados do Sivep-Gripe referentes a 2019, os pesquisadores observaram que eram brancos 60,9% dos 32.338 indivíduos internados em UTIs de hospitais públicos e privados por complicações diversas.
Entre pretos e pardos esse percentual foi de 4,5% e 33,2%, respectivamente. Suspeita-se que isso seja um reflexo do fato de pessoas brancas terem mais acesso a serviços privados de saúde, que, por sua vez, oferecem mais leitos de UTI, ao passo que pretos e pardos quase sempre precisam recorrer à rede pública, cuja estrutura, de modo geral, não tem conseguido dar conta do rápido aumento do número de casos de Covid-19. Os pesquisadores desconfiam que a maior taxa de admissão de brancos em UTIs nos anos anteriores também tenha se dado em razão da incapacidade de a estrutura pública de saúde atender à alta demanda das populações pretas e pardas, que, de modo geral, não têm planos de saúde.
Duas epidemias
Marra diz que esses fatores contribuíram para que a Covid-19 tenha se estabelecido de forma distinta entre pretos, pardos e brancos no Brasil, dando origem a duas epidemias - a mais letal entre as populações pretas e pardas. "A maioria dos pretos e pardos não dispõe de condições para ficar em casa e trabalhar remotamente, muitos estão desempregados e precisam sair às ruas para buscar seu sustento, expondo-se ao vírus mais do que a população branca", comenta o físico. Essa realidade já havia sido observada em levantamento promovido recentemente pelo Instituto Pólis na cidade de São Paulo.
Com base em dados das secretarias Municipal e Estadual de Saúde e de índices socioeconômicos produzidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), como o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), verificou-se que as regiões mais precárias e socioeconomicamente vulneráveis - com baixa renda média e altas taxas de densidade demográfica e domiciliar - são aquelas em que o trabalho informal é mais recorrente entre os moradores. É o caso do distrito de Grajaú, na zona sul de São Paulo, onde 70% dos moradores atuam como trabalhadores informais. O bairro é também um dos que mais registraram mortes em consequência da infecção pelo novo coronavírus.
Ainda na capital paulista, inquérito sorológico realizado entre os dias 15 e 24 de junho constatou que a dinâmica de propagação da pandemia reflete as desigualdades sociais que caracterizam a maior metrópole brasileira. Enquanto a taxa de prevalência de anticorpos contra o vírus Sars-CoV-2 nas pessoas residentes nos distritos mais ricos da cidade foi de 6,5%, nos distritos de menor renda, situados principalmente em regiões periféricas, o índice foi 2,5 maior e atingiu 16% da população.
Assim como o estudo publicado na Lancet Global Health, o levantamento do Instituto Pólis constatou que os efeitos da atual pandemia recaem de forma mais acentuada nas populações pretas, justamente aquelas que já sofrem com diversos problemas associados à ausência do Estado. Dados dos boletins epidemiológicos da prefeitura de São Paulo, divulgados diariamente em abril, apontavam que o risco de morte dessa parcela da população era 62% maior em relação ao de pessoas brancas.
"A análise realizada pelo Instituto Pólis corrobora o boletim municipal, mostrando que a maioria das mortes por Covid-19 foi registrada em territórios com maior concentração de pessoas negras", observa Danielle Klintowitz, coordenadora do Instituto Pólis. "Hoje, no Brasil, as pessoas mais vulneráveis do ponto de vista socioeconômico são as mais expostas à contaminação pelo novo coronavírus", destaca Marra.
Diferenças regionais
O risco de morte por Covid-19 também parece ser maior entre os infectados internados em hospitais dos estados do Norte e do Nordeste do país - independentemente da cor de sua pele - em relação àqueles hospitalizados nas regiões Centro-Oeste, Sul e Sudeste. No estudo, Marra e seus colaboradores observaram que 42,6% dos 2.043 internados nas regiões Norte e Nordeste morreram pela doença, enquanto das 9.278 pessoas hospitalizadas nos estados das demais regiões 26,4% morreram por complicações causadas pelo Sars-Cov-20.
É possível que essa diferença esteja associada ao fato de os indivíduos internados na região Norte e Nordeste terem apresentado mais comorbidades, como asma, diabetes e doenças cardiovasculares, em comparação com aqueles hospitalizados nas outras regiões. "Nossos achados sugerem que as comorbidades não estão associadas à cor da pele dos grupos estudados, mas ao nível de desenvolvimento socioeconômico da região em que vivem", esclarece Marra.
Os achados vão na mesma direção do que outras investigações científicas têm indicado. Em uma delas, publicada em abril no ResearchGate, as economistas Luiza Nassif Pires, do Bard College, nos Estados Unidos, e Laura Carvalho, da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP), e a médica Laura de Lima Xavier, da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, constataram que 42% dos brasileiros que cursaram apenas o ensino fundamental têm uma ou mais doenças crônicas associadas aos casos mais graves da Covid-19. Na média da população essa taxa é de 33%.
A situação em Manaus
Outro estudo, publicado na revista Cadernos de Saúde Pública, também lança luz sobre como a distribuição das mortes por Covid-19 reflete a heterogeneidade geográfica e social do país. Sob coordenação do epidemiologista Jesem Orellana, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) no Amazonas, pesquisadores de diferentes instituições nacionais analisaram o impacto da doença entre as populações mais pobres de Manaus, uma das cidades brasileiras mais afetadas pela pandemia. Na pesquisa, foram estimados os impactos da crise sanitária de forma indireta, isto é, por meio da análise do indicador de mortalidade por causas naturais, que avalia o excesso de óbitos ou o número de mortes não esperadas na população em determinado período. Esse indicador, segundo Orellana, costuma se manter estável ao longo dos anos, apresentando aumentos repentinos apenas em situações excepcionais, como desastres naturais, guerras ou epidemias.
A partir de dados de mortalidade geral da Central de Informações do Registro Civil Nacional e do Sistema de Informações sobre Mortalidade, os pesquisadores analisaram a dinâmica de mortalidade na capital do Amazonas entre a 12ª e a 17ª semana epidemiológica da pandemia de Covid-19, o que corresponde ao período de 15 de março a 25 de abril de 2020.
Vários aspectos desses dados foram avaliados, como idade, sexo e local em que as mortes ocorreram, com ênfase nos casos daquelas pessoas que perderam a vida sem causa determinada e fora dos hospitais, ou seja, em suas próprias casas ou na rua. "Esse é um bom indicativo da desigualdade no acesso aos serviços de saúde", explica Orellana. "A grande maioria das pessoas que morre fora dos hospitais normalmente se encontra em situação de vulnerabilidade econômica e social e, por isso, tem mais dificuldade para acessar o sistema público de saúde."
A equipe comparou os dados de 2020 com os do mesmo período do ano anterior. Verificou que o número de mortes na 17ª semana - entre 19 e 25 de abril - foi oito vezes maior em 2020 em comparação com o mesmo período de 2019, muito possivelmente por causa da epidemia do novo coronavírus. Neste ano, 43 pessoas morreram fora dos hospitais na 12ª semana epidemiológica, início da pandemia em Manaus.
Na mesma semana de 2019 foram 39 mortes. Já na 17ª semana epidemiológica de 2020, que corresponde ao período mais crítico de mortalidade por Covid-19 na cidade, 268 pessoas perderam a vida fora do sistema de saúde. No mesmo período, em 2019, foram 33 mortes.
"A comparação entre o total de mortes de 2020 e 2019 revela um excesso de mortalidade a partir da 14ª semana epidemiológica deste ano", observa Orellana. "O aumento de mortes a partir dessa semana se deu quase 15 dias depois da confirmação dos 30 primeiros casos de Covid-19 em Manaus." Nesse período, ele informa, o número médio de sepultamentos diários triplicou. Mortes em casa ou na rua também aumentaram, bem como os casos de Covid-19 em municípios vizinhos. "Esse conjunto de acontecimentos resulta, muito provavelmente, de uma grande aceleração da epidemia em Manaus, sobretudo entre os mais pobres."
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