Carentena: quando sentir-se muito carente pode significar um problema
Dominguinhos só queria um xodó. Peninha se sentia muito sozinho. Zezé Di Camargo esquecia que a vida é feita pra viver. Alcione ficava de cabeça virada. E Elis de tão fascinada, chegou a erguer um castelo em seus sonhos. Não tem jeito.
Toque, afeto, carinho e aprovação são práticas que envolvem a troca com o outro e estão presentes desde os nossos primeiros dias de vida. Inclusive, toda essa dedicação é vista como algo natural e aceitável para o desenvolvimento da criança, já que ela é um ser dependente e tem necessidades que precisam ser suprimidas.
Só que na vida adulta a conversa é outra. Demandar atenção, aconchego e reconhecimento muitas vezes é tido como defeito e problema a ser solucionado. A famosa carência, que no isolamento social ganhou o nome de "carentena", faz com que aumente a biscoitagem nas redes sociais, as conversas em apps de paquera e postagens nostálgicas com a hashtag "#tbt".
São meios de diminuir a solidão e lidar com aquela sensação incômoda de que está faltando alguma coisa. Enquanto para alguns o tempo sozinho é oportunidade para se dedicar a atividades e interesses para os quais não havia tempo, para outros a distância de amigos, parceiros e familiares é sinônimo de sofrimento e mal-estar. Apesar de não sermos autossuficientes, o que nos leva querer alguém tanto assim?
Somos seres desejantes destinados a incompletude
A máxima muito usada por psicanalistas tenta explicar o desejo que nos mantêm ativos e em movimento. Conquistar metas e realizar vontades seria um meio de encontrar satisfação e lidar com a sensação de desamparo que nos acompanha desde o início da nossa formação. Essa falta nos motiva a ir atrás de outras possibilidades, nos leva a questionamentos e até mudanças diante de situações insatisfatórias.
Porém, é algo constitutivo do nosso modo de ser. Existe um carecer originário que faz parte de todos nós, e que pode ser acentuado ou amenizado de acordo com as várias experiências ao longo da vida. É importante lembrar que temos uma ancestralidade grupal, e por isso precisamos uns dos outros para sobreviver tanto materialmente como afetivamente.
Assim, a necessidade de contato, de ternura e de afeto é tão importante quanto a necessidade de abrigo e de alimentação. Mas vale notar que essas buscas muitas vezes não trazem os resultados esperados. É possível se sentir só mesmo quando rodeado de gente ou incompleto ao se relacionar amorosamente. São processos que nos ajudam a reconhecer que não é possível a completude ou a satisfação plena de todos ideais e expectativas, e principalmente, que isso não é falha ou fracasso, é simplesmente o modo como a vida se dá.
Cadê o juiz pra marcar a falta que você me faz?
De fato, algumas pessoas não conseguem assimilar tão bem esse buraco ou insatisfação constantes. Seja por situações de ausência, privações, separações súbitas ou perdas precoces, é possível que a pessoa tenha uma carência bastante intensa, de modo a desenvolver dependência emocional.
É um estado onde a pessoa não reconhece seus próprios recursos e acredita que tudo está no outro. Acaba distante de si e parte à procura de uma completude idealizada, de perfeição e plenitude. Mas isso normalmente se transforma em fonte de eterna frustração, na qual a presença e o afeto do outro são uma necessidade vital, sem os quais não é possível viver ou sobreviver.
São aquelas situações onde há um forte sentimento de abandono, submissão e hipervalorização do outro, ciúmes excessivo, autocrítica exagerada, baixa autoestima, falta de perspectiva ou projeto para si, medo extremo de perder, de confiar nas próprias ideias e posicionamentos, bem como profunda vontade de agradar o outro ou mesmo de chamar atenção sobre si.
Em vez das relações se basearem em cuidado, cumplicidade, reciprocidade e compartilhamento de intenções, há cobrança e exigência de exclusividade, controle e monitoramento das atitudes, que podem chegar a extremos de abusos e violências. Precisamos uns dos outros numa interdependência saudável, em parcerias afetivas onde vemos e somos vistos, acolhemos e somos acolhidos, de modo simétrico e caloroso.
Aqueles que cobram afeto, presença e disponibilidade, mesmo quando recebem, costumam agir por barganha, chantagem e culpabilização. E só se distanciam do amor e da amizade. Internalizar que um relacionamento amoroso, por exemplo, é uma possibilidade e não uma necessidade, é um importante começo para se afastar dessa dependência. Afinal, os dias seguem da mesma maneira com ou sem alguém para partilhar. Ser só também é uma forma de pertencimento no qual estamos todos correlacionados.
Não faz mal: estou carente, mas estou legal
Para aqueles que se identificaram com elementos descritos no texto, fiquem tranquilos. Não há nada de errado assumir que somos seres faltantes e aceitar essa condição. Ao contrário, é essencial reconhecer nossas carências e tratá-las com generosidade. É bom entender que somos imperfeitos e que não precisamos patologizar todos nossos sentimentos ou comportamentos.
Nada disso nos impede de compartilhar momentos, projetos e atividades fundadas na troca. Mas o ideal é agir sem desespero e a dependência da presença do outro. Estar só ou com alguém são possibilidades existenciais, não passíveis de controle ou previsibilidade, e que estão em jogo enquanto vivemos. Quem poderia prever tamanho distanciamento nos últimos meses?
Aos poucos, é tentar se abrir para o novo e pras mudanças, encontrar experiências que tragam alegria e satisfação pessoal, numa iniciativa a fim de diversificar a vivência. Buscar ser menos exigente e mais amoroso consigo, investir num pequeno projeto (como aprender algo novo), reconhecer suas potências e não focar exclusivamente nas carências, e se responsabilizar pela sua própria vida, sem empenhá-la tanto ao outro.
Estar só é um grande aprendizado. É a chance de se recolher e identificar as qualidades e talentos não percebidos, e assim criar meios de tolerar melhor as frustrações e precisar menos da aprovação do próximo. Ampliar a visão de si mesmo, que não se resume em ser carente. Pode ser também grudento e inseguro (contém ironia). Aliás, rir e usar o humor são saídas criativas de enfrentar nossas mazelas.
Consiste em perceber as razões de tornar o outro uma necessidade ou escudo contra a solidão, e as concessões feitas para ter companhia ou se sentir integrado, como abrir mão de critérios e valores pessoais. Caso haja um sofrimento intenso que pode ser identificado como "carência", é aconselhável procurar ajuda psicoterápica. Há sentimentos profundos que precisam ser compreendidos de modo mais cuidadoso. Não construímos nada sozinhos: nem o bom, nem o ruim.
Fontes: Cristine Monteiro Mattar, psicóloga, supervisora clínica, pesquisadora e professora do Departamento de Psicologia da UFF (Universidade Federal Fluminense); Laura Cristina de Toledo Quadros, psicóloga, Gestalt-terapeuta, professora adjunta da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e colaboradora do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social; e Ronald Fischer, psicólogo e pesquisador do Idor (Instituto D'Or de Pesquisa e Ensino).
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