Preconceito dificulta a escolha de médicas pela especialidade cirúrgica
No Brasil de 1879, as mulheres não podiam estudar Medicina, sequer pensar em tornarem-se cirurgiãs. Somente em 1887 formou-se a primeira mulher na Faculdade de Medicina da Bahia. Algumas profissões sempre foram consideradas atividades exclusivas de homens, entre elas a medicina. É certo que o preconceito contra as mulheres nessa profissão, considerada apropriada exclusivamente aos homens, atravessa séculos e continua em pleno 2020.
E por que isso acontece? É o que as pesquisadoras Maria Regina Orofino Kreuger, Daiane Paulo e Mariana da Silva Assis, da Universidade do Vale do Itajaí, trazem à discussão em artigo publicado na Revista de Medicina. As autoras analisaram as prováveis causas que levam as mulheres médicas a não optarem por especialidades cirúrgicas.
As pesquisadoras ouviram 75 médicas não cirurgiãs de Itajaí, Santa Catarina, atuantes em Clínica Médica, Pediatria, Medicina de Família, Medicina Preventiva, Endocrinologia e Metabologia, Genética Médica, Hematologia, Homeopatia, Infectologia. Para 72% delas, uma mulher cirurgiã pode ser definida como essencialmente alguém "forte", capaz de superar obstáculos de toda ordem, citando machismo e preconceito por parte dos colegas ou pacientes em relação às cirurgiãs.
Apesar desse fato, aliado a fatores como a desigualdade salarial e falta de flexibilidade dos horários de trabalho, segundo as autoras, "explicar o porquê de poucas mulheres desejarem ser cirurgiãs é um tema complexo que não tem resposta única". A porcentagem de mulheres médicas cresce rapidamente: de 2000 a 2016, dentre 220.993 novos médicos, 50,7% eram mulheres e 49,3%, homens.
Mulheres cirurgiãs trabalhavam no anonimato ou escudadas por parentes masculinos, ainda no século 18, quando o exercício da medicina ainda não dependia de licenças concedidas por cursos oficiais, que não aceitavam mulheres. Aí entra em cena James Barry, o principal Oficial Médico e Cirurgião da Armada Britânica, onde serviu durante 40 anos. James Barry era o nome fantasia de Miranda Barry, a verdadeira identidade da famosa profissional de medicina da época, obrigada a anular-se para exercer sua profissão. A história mostra que a medicina ressalta a crença discriminatória da falta de aptidões das mulheres para a profissão.
O artigo cita estudos de casos de erros médicos ocorridos em maior número entre os profissionais do sexo masculino, de acordo com processos julgados pelo Tribunal Regional de Medicina de Santa Catarina. Destaca-se que o horário dos plantões/sobreaviso e demanda serviço-família são os fatores que mais afetam as mulheres na escolha da especialidade.
De acordo com as autoras, "homem médico se dedicando com exaustão à sua especialidade é visto como um indivíduo que quer o melhor para si e seus pacientes. Já uma mulher médica é vista como alguém que está abandonando a casa, deixando os filhos para segundo plano". Nesse contexto, as mulheres médicas são direcionadas para atividades que combinam profissão com tarefas secularmente atribuídas à condição feminina, nunca relacionadas à cirurgia, já que, pelo consenso social, carreira e família são inconciliáveis. E, em momento algum, essas questões são atribuídas aos médicos pais e maridos/companheiros.
Quem escolhe ser profissional da cirurgia em medicina precisa ser "forte, ter autocontrole, mente questionadora, liderança e uma certa agressividade" e, de acordo com visão machista e preconceituosa, seja da classe médica, da sociedade e da cultura essas não são características de uma mulher.
Pelos resultados da pesquisa, as autoras destacam que é preciso rever e mudar os limitantes horários de plantões e a consequente urgência de flexibilização dos mesmos, reivindicar igualdade salarial e encontrar maneiras de conciliação para a demanda serviço-família. Esses elementos, aliados ao claro preconceito, são verdadeiras barreiras na escolha de especialidades cirúrgicas pelas médicas, "além de evidenciar a crescente feminização na medicina e a discrepância no crescimento do número das mulheres nesta área".
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