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Saúde

Sintomas, prevenção e tratamentos para uma vida melhor


"Ele veio para somar na minha vida", relata mãe de criança com doença rara

Bruna Alves

Colaboração para VivaBem

02/08/2020 04h00

Provavelmente, nas festinhas de aniversário da infância, você ficava ansioso na hora de cantar os parabéns para comer os docinhos que viriam em seguida. Entretanto, nem todas as crianças podem viver os sabores da infância. Esse é o caso de quem tem fenilcetonúria, uma doença rara e que não tem cura.

O tratamento principal da fenilcetonúria baseia-se numa dieta super-restritiva, porém, fundamental. As pessoas que têm essa doença não podem comer alimentos ricos em proteínas, como por exemplo, os de origem animal como carnes, embutidos, ovos, leite e derivados.

Mas se seguir uma dieta restritiva pela vida inteira seria motivo de tristeza, você precisa conhecer a história do pequeno Heitor, 6, morador de Cacoal, cidade localizada a 500 km de Porto Velho (Rondônia).

Um susto e a conscientização

Diagnosticado ainda recém-nascido, por meio do teste do pezinho, Heitor sempre seguiu a dieta sem reclamar. A mãe, Lucélia Storary, conta que tem conseguido fazer o tratamento sem "escapar".

Assim que descobriu a doença, levou um susto. No entanto, não demorou para correr atrás do tratamento e já a partir do segundo mês de vida, Heitor começou a tomar uma fórmula especial associada ao leite materno.

Heitor tem plena consciência do que pode e não pode comer - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

"Achava que ele tinha cólica, porque era muito chorão e acordava muito à noite. A primeira vez que ele dormiu de verdade, a noite inteira, foi quando começou a fórmula", recorda.

Depois disso, a mãe passou por um processo de aprendizagem para entender realmente o que era a doença e qual seria o seu papel na vida do filho.

"Em primeiro lugar, me conscientizei. A parte mais difícil era aprender a lidar com aquela doença sem passar para o Heitor que ele tinha alguma coisa de errado", frisa a mãe.

Tirando a dieta, ele é uma criança completamente comum.

Instruções e vida normal

Desde bebê, os pais começaram a "treinar" mentalmente tudo que ele não podia comer e, mais tarde, começaram a passar as instruções para o filho. "Quando ele começou a apontar para a comida, falava: 'não pode, faz dodói na cabeça do neném'", relembra Lucélia.

Heitor - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

"Nunca deixei de comer nada na frente dele, e sempre fiz questão que todo mundo levasse uma vida normal dentro de casa, para ele se acostumar com o que podia e com o que não podia comer".

Com o passar dos anos, a mãe foi explicando melhor o que aconteceria caso ele não seguisse a dieta. E Heitor, de forma muito natural, aceitou todas as restrições, sem hesitar, para a surpresa e alívio dos pais.

Heitor participa de tudo como qualquer outra criança. "Nunca deixei de levá-lo em nenhum evento, restaurantes ou festa. E para todo lugar que ele vai, faço a marmita dele", diz a mãe. Hoje, aos seis anos, caso alguém lhe ofereça algum alimento que não conhece, Heitor recusa.

Acompanhamento médico

Atualmente, o menino faz exames uma vez por mês, e vai ao hospital para a consulta apenas uma vez ao ano. Isso porque os exames não têm mostrado qualquer alteração.

"Aprendo muito com ele, justamente por essa consciência que ele tem. Ele é muito responsável com a saúde. Nem preciso mais negar as coisas, porque ele sabe o que pode e o que não pode, então nem pede. E, às vezes, até me surpreendo", relata a mãe, orgulhosa. Lucélia afirma que valeu a pena cada cuidado.

Se alguém me falasse para voltar no tempo e se eu queria ter um filho saudável, ia falar com toda a certeza que o queria do jeitinho que ele é. Ele veio com essa doença só para somar na minha vida. Veio perfeito para mim.

Educado pela boca

Felipe Tutini Orteiro - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Felipe é muito grato a todo o apoio da mãe durante a infância
Imagem: Arquivo pessoal

Quem viveu situações semelhantes na infância foi o técnico de instalações Felipe Tutini Orteiro, mas, assim como o pequeno Heitor, também teve o apoio de sua mãe, e isso foi fundamental para o seu bom desenvolvimento.

Natural do interior de São Paulo, a família descobriu a fenilcetonúria quando Felipe tinha apenas semanas de vida. "Desde bebê a minha mãe já foi me educando pela boca. Quando criança, às vezes queria experimentar um brigadeiro, uma bolacha, mas minha mãe falava: 'não pode'", conta.

Ela foi me explicando o porquê eu não podia comer. Do que sou hoje, mental e fisicamente, 99% é por causa da minha mãe.

Felipe lembra que até o período de sua adolescência sua mãe trabalhou em escolas e sempre ficou de olho na sua alimentação. A educação alimentar que sempre teve, aliada ao atendimento multidisciplinar de vários profissionais, fizeram com que ele se tornasse um adolescente saudável. "Nunca senti falta de nada. Fazia churrasco com os meus amigos direto e não estava nem aí. A única diferença é que eu não comia as mesmas coisas que os outros", diz.

Não me sentia menos feliz ou inferior porque um primo meu estava comendo um churrasco e eu estava comendo um pão com alface.

Felipe Tutini Orteiro - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Uma pizza? Só muito de vez em quando
Imagem: Arquivo pessoal

Hoje, aos 34 anos, como os exames estão em dia e apresentam bons resultados, de vez em quando ele abre uma exceção e come um pedaço de pizza de muçarela, mas sempre com autorização da médica. Todavia, ele afirma que se sucumbisse a essas delícias "proibidas" na infância, com certeza não estaria como está hoje: casado, trabalhando e vivendo uma vida normal.

"Quando vou a um hospital e vejo uma criança numa cadeira de rodas ou com um déficit cerebral, falo para a minha esposa: 'está vendo aquela criança ali? Se a minha mãe não tivesse ido atrás quando apresentei a doença que tenho, estaria daquele jeito'. A presença dela foi fundamental", relata emocionado.

O que é a fenilcetonúria

A fenilcetonúria ou PKU (da sigla em inglês phenylketonuria) é uma doença rara, genética, crônica e que não tem cura. No Brasil, segundo os especialistas, a incidência é de um caso para 12 mil crianças nascidas vivas.

A doença é causada pela ausência ou diminuição de uma enzima no fígado, que teria o papel de converter a fenilalanina (aminoácido presente nas proteínas) em outro aminoácido chamado tirosina.

Ainda no útero, o organismo da mãe metaboliza a fenilalanina do bebê. Portanto, a criança com fenilcetonúria está normal ao nascer. No entanto, a doença é diagnosticada alguns dias após o nascimento por meio do exame de triagem neonatal (teste do pezinho), que avalia a quantidade de fenilalanina presente no sangue.

Esse diagnóstico precoce é fundamental para evitar sintomas. "O paciente que tem fenilcetonúria nasceu com uma dificuldade em produzir essa enzima. Então, se ele não tem essa enzima ou tem em quantidade insuficiente, na verdade ele vai ter um prejuízo na metabolização do aminoácido fenilalanina, e ela vai se acumular no organismo", explica Marlene de Fátima Turcato, neurologista infantil, responsável pela implantação do ambulatório de fenilcetonúria do HCFMRP (Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP (Universidade de São Paulo).

Quando há esse acúmulo do aminoácido no organismo, o cérebro, principalmente o sistema nervoso, é gravemente atingido. Dependendo do caso, a pessoa pode ter alteração cognitiva ou até mesmo uma grave deficiência intelectual. Isso vai depender do grau da fenilcetonúria.

Por isso, o tratamento precisa começar o mais rápido possível, logo nos primeiros dias de vida, porque a partir do momento que a criança começa a se alimentar, seja com leite materno ou fórmula comum, o sistema nervoso já começa a sofrer os danos causados pelo excesso de fenilalanina.

A fenilalanina é uma substância normal e necessária para o organismo, porém, quando em excesso, como ocorre com a fenilcetonúria, ela passa a exercer um efeito tóxico para o sistema nervoso.

O tratamento

O tratamento da fenilcetonúria é baseado em uma dieta restritiva com redução na ingestão de alimentos ricos em fenilalanina, como os proteicos, e complementada de tirosina. O objetivo da dieta é manter as concentrações de fenilalanina no sangue dentro dos limites que não prejudiquem o cérebro, o crescimento e o desenvolvimento normal da criança.

Para manter a ingestão de proteínas em dia, os pacientes tomam uma fórmula em pó específica a base de aminoácidos e sem fenilalanina, durante toda a vida. Ela é parecida com o leite e indispensável ao tratamento, sobretudo por conter vitaminas, minerais e outros nutrientes que substituem os alimentos que eles não podem comer.

Em paralelo à dieta, há um medicamento que está sendo comercializado mundialmente, e que pode ser utilizado como um coadjuvante no tratamento. Entretanto, ele ainda tem um alto custo e, no Brasil, só está sendo fornecido para gestantes com fenilcetonúria.

Além do plano alimentar elaborado por um nutricionista de forma individualizada, os pacientes também precisam ser acompanhados, no mínimo, por um neurologista e um psicólogo.

A dieta

As proteínas não fazem parte do cardápio de quem tem fenilcetonúria - iStock - iStock
Imagem: iStock

Os alimentos que contêm grande quantidade de fenilalanina, como as proteínas são proibidos. Isso significa todos os tipos de carnes (vermelhas e brancas), embutidos, ovos, leite e derivados, leguminosas (feijão, soja, ervilha, grão de bico, lentilha), oleaginosas (nozes, castanhas, amendoim, amêndoas), cereais como trigo, aveia, cevada, centeio, milho e produtos feitos com esses alimentos como pães, bolos, bolachas e biscoitos.

Já alimentos que contêm quantidade moderada de fenilalanina, como arroz, frutas secas, vegetais como couve, almeirão, espinafre, saladas em geral, além de batata inglesa, batata-doce, vagem, entre outros, podem ser consumidos com moderação.

Açúcar, mel, balas e doces de frutas, gomas, pirulitos, geleias de frutas, sagu, tapioca, polvilho, bebidas como limonada, chá, café, sucos de frutas e refrigerantes sem aspartame, margarina, óleos vegetais, frutas, verduras e vegetais como chuchu, abobrinha, cenoura, mandioca, moranga, entre outros, estão liberados.

Os médicos afirmam que, embora seja uma dieta restritiva, a vida dos pacientes deve seguir normalmente. "Nosso objetivo é fazer com que a família aceite e que transmita isso com naturalidade para a criança", salienta Turcato. "As restrições não podem ser encaradas com sofrimento", acrescenta. De acordo com a especialista, seguir a dieta é a única forma de a criança crescer saudável.

Importância do diagnóstico precoce

Se por algum motivo o resultado do teste do pezinho demorar para sair, ou a criança não fizer o exame, e mamar normalmente leite materno ou uma fórmula de leite, o excesso de fenilalanina vai atingir o cérebro e a partir do terceiro mês, a criança vai começar a sentir o efeito no organismo.

"Se a criança não for tratada precocemente, ela caminha paliativamente para um quadro de atraso no desenvolvimento neuropsicomotor. Então é aquela criança que não senta na idade certa, demora para andar, falar. Ela acaba constituindo um quadro de deficiência mental e isso será irreversível", explica Turcato, neurologista infantil.

E mesmo com o diagnóstico precoce, há famílias que não seguem o tratamento como deveriam, por isso, segundo os especialistas, muitos pacientes têm sequelas. Entretanto, dependendo da localidade, há casos em que o paciente pode não conseguir detectar e tratar a doença.

"Sabe-se que em alguns locais de difícil acesso no Brasil pode acontecer de não ter cobertura de 100%, porque tem aquelas populações que não conseguem chegar na maternidade para ter os bebês. Então pode acontecer de haver indivíduos com fenilcetonúria que não foi detectada na triagem neonatal, porque não fez o teste", ressalta Flávia Piazzon, médica geneticista do Hospital Sírio-Libanês (SP).

Além da deficiência intelectual, quando não tratada, a fenilcetonúria pode apresentar sintomas como depressão, falta de concentração, alteração nas funções executivas, hiperatividade, além de odor na urina, convulsões e atraso no crescimento.

Fontes: Marlene de Fátima Turcato, médica neurologista, responsável pelo ambulatório de fenilcetonúria do HCFMRP (Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP (Universidade de São Paulo), Keila Hayashi Nakamura, endocrinologista pediátrica da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), Flavia Piazzon, médica geneticista do Hospital Sírio-Libanês e Nancy Yukie Yamamoto Tanaka, nutricionista responsável pelo ambulatório de fenilcetonúria do HCRP.