Sem radioterapia no Amapá, pacientes com câncer lutam para sobreviver
Quando o jovem funcionário público Luiz da Cruz, 26, descobriu o câncer em julho de 2019, o linfoma na região torácica estava com sete centímetros. Direcionado para a quimioterapia, enfrentou falhas no tratamento por falta de remédios no Hospital Estadual de Clínicas Alberto Lima (HCAL), em Macapá. Isso gerou o crescimento do tumor em mais cinco centímetros, conta a família.
Neste ano, em busca da sobrevivência, o jovem deixou família e emprego no Amapá para tentar fazer a quimioterapia, mas, dessa vez, também necessitava com urgência da radioterapia, tratamento inexistente no estado.
A família se mobilizou financeiramente e ele seguiu para Rondônia em 7 de abril de 2020. Era tarde demais. Luiz morreu em 28 de junho, deixando mulher e dois filhos, de 3 e 6 anos.
"Tenho certeza de que se o tratamento completo existisse aqui, meu marido estaria com vida agora. A gente tenta sobreviver com a fé de Deus porque não tem tratamento", desabafa a viúva Josiane Carvalho, 27.
O caso de Luiz retrata parte da realidade dos pacientes oncológicos do Amapá. Além de inexistir radioterapia, os doentes que precisam de quimioterapia no estado também não conseguem fluxo no cronograma das sessões porque faltam remédios.
Durante pandemia do novo coronavírus, a situação piorou, segundo médicos, familiares de pacientes e o próprio governo do Amapá, ouvidos por VivaBem. O estado é o segundo com a maior incidência da covid-19 por 100 mil habitantes no país e viveu o caos na saúde, com pacientes esperando vagas ao lado de corpos e morrendo por falta de sedativos.
Somada à falta de radioterapia, 10 medicamentos quimioterápicos, dos 82 usados nas sessões, estão indisponíveis na rede pública, segundo o governo do Amapá. A previsão é que cheguem no fim de agosto, o que pode ser tarde demais, segundo especialistas.
"O câncer tem pressa. Ele não espera uma consulta ou início do tratamento em 30, 60 ou 90 dias. Quanto mais precoce iniciar, melhor o resultado e chance de cura", alerta Antônio Sérgio Carvalho, oncologista que atua na rede pública do Amapá e convive diariamente com o drama dos pacientes.
Tratamento bem longe de casa
De acordo com a SBRT (Sociedade Brasileira de Radioterapia), o deslocamento médio do paciente com câncer do Amapá para buscar tratamento completo é de 1.500 quilômetros. A distância está muito acima da média brasileira: 72 quilômetros.
É o caso de Josias Gonçalves Costa, 45. Após sentir os primeiros sintomas em fevereiro deste ano, teve a confirmação de câncer na tireoide em abril, em meio à pandemia.
Ele precisou viajar 1.700 quilômetros de Macapá a Porto Velho, em Rondônia, em busca de tratamento. Como as companhias aéreas reduziram a quantidade de voos no período mais crítico da pandemia, a família de Josias teve dificuldade para encontrar um dia e horário para a viagem. Duas consultas foram adiadas por causa da escassez de voos partindo do Amapá.
Não dava para se aventurar de carro. O Amapá é o único lugar do país sem uma ligação via terrestre com outro estado, ficando isolado por estradas ou pontes. Para sair de lá, somente de avião ou por meio fluvial até Belém, no Pará. A viagem marítima que atravessa as bacias do rio Amazonas (AP) e do arquipélago de Marajó (PA) dura 24 horas.
"Conseguimos marcar uma consulta para meu marido em Porto Velho, mas, nesta época, os voos estavam suspensos. Ela foi adiada duas vezes. Adiou em abril e em maio", confirma a esposa Anézia Costa, 45. Josias conseguiu viajar em junho, dois meses depois do previsto, quando os voos começaram a normalizar. Como está desempregado, a esposa, que é professora, fez um empréstimo no banco para custear as despesas de viagem e estadia em Porto Velho. A previsão é iniciar o tratamento em agosto.
"Se a pessoa tiver câncer, ela deve sair do Amapá. Se ficar, é como se estivesse assinando seu atestado de óbito", afirma Anézia.
Uma vida para trás
A mesma dificuldade teve o pequeno Davi Rocha, 5. Com a acentuação das dores no globo ocular, no início de 2020, precisou deixar o Amapá para ter o diagnóstico porque nem a consulta oncológica conseguiu na rede pública estadual.
Ele está em São Paulo desde 11 de junho. Nove dias depois, o resultado dos exames apontou para retinoblastoma —câncer na retina do olho esquerdo. O garoto também perdeu a consulta por causa da escassez de voos, o que adiou em dois meses o início do tratamento.
"A pandemia atrapalhou, porque se tivesse logo o diagnóstico na primeira consulta, em abril, meu filho talvez já estaria até retornando para casa, porém ainda continuamos aqui em São Paulo por conta disso", acredita a mãe, a professora Raimunda Neolina Rocha, 35.
Raimunda está desempregada e o pai de Davi é ajudante de pedreiro. Sem condições de saírem do Amapá, buscaram a Justiça e o apoio da ONG Carlos Daniel para comprar as passagens. A mãe, que também tem um filho autista, lamenta ter largado tudo em Macapá em razão da falta de tratamento no estado.
"As passagens conseguimos após colocarmos o estado na Justiça e mobilizar a mídia e as redes sociais. A ajuda de custo ainda não recebemos. Se tivesse tratamento lá [no Amapá], meu filho já teria evoluído porque chora bastante para voltar para casa. A dor dele seria muito amenizada se estivesse em Macapá", conta.
Famílias recorrem a rifas, ONG e amigos
É direito do paciente com câncer em tratamento em outro estado receber as passagens aéreas e ajuda de custo enquanto permanece longe de casa. Esse recurso é pago aos cadastrados e atendidos pelos SUS (Sistema Único de Saúde), conforme determina uma portaria de 1999, do Ministério da Saúde, que criou o Programa de Tratamento Fora do Domicílio (PTFD).
No Amapá, a secretaria de Saúde é a responsável pelo trâmite, avaliação e pagamento dos pedidos. Cada paciente recebe R$ 24 por diária longe de casa.
De acordo com as famílias, o PTFD no Amapá encerrou os atendimentos presenciais em março em razão da pandemia, o que teria causado morosidade no andamento das solicitações. As demandas são recebidas agora somente por email.
Davi e a mãe dele pediram o auxílio antes de viajar, em meados de abril, mas ainda não receberam recursos do PTFD. Eles moram na Casa de Apoio Ronald McDonald ABC, em Santo André (SP), e precisam se deslocar para procedimentos médicos no Itaci (Instituto de Tratamento de Câncer Infantil), em São Paulo. A família conta, por enquanto, com a ajuda de parentes e amigos.
"Estamos em uma casa de apoio e recebemos ajuda no que está no alcance dela. Os gastos extras somos nós da família quem estamos arcando com tudo. Saímos com a incerteza se vamos receber ou não", frisa a mãe.
O mesmo ocorreu com a autônoma Roseny dos Santos Campos, 51. Ela descobriu um câncer colorretal em fevereiro deste ano. O caso dela recebeu encaminhamento de quimioterapia e radioterapia, forçando-a também a deixar o Amapá.
Sem condições de viajar para Porto Velho, ela procurou a ONG IJOMA e conseguiu uma vaga no Hospital de Amor Amazônia. Roseny deu entrada no pedido de PTFD em 27 de abril e ainda não recebeu o dinheiro que seria para as passagens aéreas e diárias.
Ela não aguentou esperar com medo de o câncer avançar e decidiu fazer rifas beneficentes e pedir ajuda de parentes e amigos. Deu certo. A autônoma está em Rondônia sozinha desde 25 de julho e não sabe quando retornará para Macapá.
Enquanto não recebe ajuda do PTFD, a família faz como pode para ajudá-la nas despesas. Ela paga R$ 420 por mês de aluguel em uma pousada que tem outros 30 pacientes oncológicos do Amapá.
"Decidi fazer algo por mim porque vi que poderia morrer em Macapá sem o tratamento. Procurei a ONG e consegui uma consulta em Porto Velho. Vim por conta própria, sem ter condições, apenas com ajuda da família e fazendo rifas", confirma. "Em Macapá, não tive tratamento algum. Não recebi sequer uma dipirona para acalmar alguma dor".
"Minha filha está lá em Macapá, e talvez eu fique um ano por aqui. Tem muitas coisas da minha filha que não estarei acompanhando. Imagine nossos corações como estão. Eu vim buscar o tratamento para continuar ao lado dela. É doloroso pensar em sair da minha cidade para outra muito longe sozinha para se tratar", acrescenta.
Não deu tempo...
A demora para liberação dos recursos é tanta que há casos de pessoas que morreram à espera de passagens para viajar em busca do tratamento. É o caso da auxiliar de serviços gerais Danielma dos Santos, 41, diagnosticada com câncer de colo do útero.
A filha de Danielma, que prefere não se identificar, conta que quando o recurso para a compra da passagem foi liberado, a mãe dela já estava morta. A auxiliar de serviços gerais necessitava de quimioterapia e radioterapia.
Danielma morreu em 17 de julho, no Hospital de Clínicas Alberto Lima, em Macapá.
A expectativa era ser transferida o quanto antes para o Hospital de Amor Amazônia, em Porto Velho, mas a liberação dos tíquetes aéreos demorou. "Quando o PTFD ligou dizendo que já tinha as passagens já era tarde demais", lamenta a filha.
Tratar câncer longe de casa pode afetar cura
De acordo com Artur Rosa, oncologista, o tratamento de câncer é formado por um tripé que coloca a radioterapia com 40% de impacto na cura do paciente. A cirurgia é responsável por 49%, e a quimioterapia, 11%.
"Se não tem disponível uma dessas modalidades, a chance de cura desse paciente diminui", decreta o médico, que também é presidente da Sociedade Brasileira de Radioterapia.
A entidade aponta que, no Brasil, apenas Amapá e Roraima não possuem uma máquina de radioterapia para tratar sua população, forçando-os a mandar os pacientes para outros lugares. A distância da família no tratamento acaba virando um fator determinante para a cura do doente.
"Se pegar um paciente vulnerável, que não conhece ninguém em um lugar desconhecido, tem um impacto muito grande no emocional, e isso afeta no tratamento final, com certeza", avalia.
A análise é corroborada por quem atua diretamente com os pacientes do Amapá. A médica Karina Homobono trabalha na Unidade de Alta Complexidade em Oncologia (Unacon), uma divisão onde os doentes oncológicos fazem tratamento no HCAL. O hospital é único de clínicas da rede pública estadual, construído nos anos 1940.
"O que interfere não é nem o deslocamento em si, mas a demora para conseguir o tratamento [fora do estado]. Além disso, não estar ao lado da família afeta [na cura] porque é uma doença difícil e precisa de apoio emocional. Quando um paciente vai para outro estado, geralmente segue sozinho", analisa a médica.
Médicos sentem-se impotentes
Antônio Sérgio Carvalho foi o primeiro oncologista a atuar no Amapá com a especialidade em cânceres de mama e da região pélvica, em 2010. Atualmente, ele trabalha na Unacon do HCAL convivendo diariamente com o drama dos pacientes padecendo à espera de tratamento.
O oncologista se sente impotente ao receitar medicamentos ou tratamentos aos pacientes porque ele diz que o estado não dá estrutura para os procedimentos.
"No câncer de mama, quando se faz a cirurgia, obrigatoriamente é direcionado para radioterapia, sempre em outro estado porque não temos aqui. Um paciente com câncer de colo de útero, em estágio avançado, que precisa de tratamento radioterápico, fica com dor e sangrando porque não tem radioterapia", afirma o médico.
A escassez de remédios também é confirmada por Karina Homobono: "Falta praticamente tudo, até remédio para vômito. Isso em toda a rede pública, inclusive. Não tem alguns quimioterápicos e ficamos dependendo da Secretaria de Estado de Saúde para aplicar o medicamento".
"Nestes dez anos, não houve nenhum progresso. Vim de uma realidade totalmente diferente. Estava no paraíso e não sabia. Quando cheguei, vi que era o fundo do poço e nunca imaginei que ainda poderia ser mais cavado. Todos esses problemas já existiam antes da pandemia, mas, com ela, pioraram", desabafa.
Radioterapia sem previsão a curto prazo no Amapá
De acordo com a SBRT, para montar um serviço de radioterapia, é necessário que o gestor público disponibilize pelo menos R$ 12 milhões. Na visão do presidente da entidade, Artur Rosa, a efetivação desse tratamento acaba saindo da prioridade dos governos por não ser uma entrega de curto prazo.
"Se o governador do Amapá quiser implantar esse tratamento no estado, na melhor das hipóteses, será ofertada em dois anos aos pacientes. Tem questão de infraestrutura, treinamentos e regulação de uma área complexa", pontua Rosa.
Para ajudar os estados, o Ministério da Saúde criou em 2012 o Plano de Expansão da Radioterapia no SUS (PER/SUS), com o objetivo de ampliar e criar novos serviços de radioterapia em hospitais habilitados para reduzir vazios assistenciais. Dos 100 centros radioterápicos previstos, oito anos depois, apenas 30 estão entregues. O Ministério da Saúde não comentou sobre a entrega dos outros 70 centros radioterápicos.
O Amapá está incluído na iniciativa, porém, segundo o boletim mensal de atualização do plano, publicado em julho, o projeto ainda está em fase de elaboração para ser implantado no HCAL, em Macapá. Após isso, ainda tem outras quatro etapas.
O último a ser concluído pelo plano foi em 14 de julho, em Santa Cruz, no Rio Grande do Sul. O trâmite demorou quatro anos entre a fase em que o Amapá atualmente está até a entrega.
Pandemia deixou Amapá quase no limite, diz governo
Em resposta enviada a VivaBem, o governo do Amapá admite que a pandemia afetou o tratamento oncológico, mas pondera que isso ocorreu "em todo o país" em razão da suspensão de procedimentos que envolvem a rotina desse tipo de enfermidade.
Segundo o governo local, "no Amapá, a preocupação é que o serviço ofertado [na oncologia] está próximo a sua capacidade proporcional". A Secretaria de Saúde afirma que "trabalha para diminuir esse impacto das demandas reprimidas". A ideia é, segundo a pasta, assinar acordos com outros estados para "ampliar a oferta das quimioterapias e de consultas oncológicas".
A intenção também é aumentar a carga de consulta de cada oncologista da rede pública estadual do Amapá, passando de 32 para 64. Não foi informada a periodicidade e a partir de quando será adotado essa nova metodologia.
Sobre o PTFD, foram pagos os auxílios financeiros somente aos pacientes que viajaram para tratamentos em janeiro e fevereiro deste ano. Os de março estão com os pagamentos autorizados, garante a Secretaria de Saúde. Os demais meses não foram mencionados.
A demora na liberação do dinheiro, alega a Secretaria de Saúde, ocorre em razão da "análise minuciosa dos pedidos". "Além disso, muito laudos médicos apresentados não conseguem justificar a necessidade de permanência do paciente em tratamento fora do estado", complementa.
Quanto à quimioterapia, em 2019 houve uma licitação para compra de 82 remédios, mas só 40 foram finalizadas. Outros 42 remédios não tiveram ofertas por empresas, revela o governo do Amapá. Esses itens estão em nova licitação, sendo que dez já estão em falta na rede pública e devem chegar até o fim de agosto após uma compra emergencial.
Na radioterapia, o governo do Amapá prevê o início das obras para 2021. O projeto atualmente está em fase final de elaboração. A perspectiva é que o centro oncológico tenha mais de 80 leitos.
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