"Tive gêmeas siamesas: me perguntaram se estava pronta para uma morrer"
Ao fazer um ultrassom no quinto mês de gestação, a dona de casa Denise Borges Oliveira, 24, descobriu que suas filhas nasceriam grudadas na barriga e no tórax, dividindo fígado e diafragma no abdome. Sem nunca ter visto uma imagem de gêmeos siameses, ela decidiu esperar o nascimento das meninas para ver como elas eram. Nesse depoimento, ela conta como foi a cirurgia de separação da Maria Clara e da Maria Eduarda, que hoje estão com quatro anos.
"Meu primeiro filho, o Danilo, tinha um ano quando senti dores nos seios e achei que estivesse produzindo leite novamente. Fiz um exame de sangue e, para minha surpresa, descobri que estava grávida de quatro meses de gêmeas. Naquela época, estava separada do meu marido, o Caíque. Quando cheguei em casa, liguei para ele e contei a novidade. Continuamos separados durante a gestação, mas ele a família dele me deram toda a assistência.
No mês seguinte fiz o ultrassom morfológico e o médico me deu duas notícias, uma boa e uma ruim. A primeira foi a de que eram meninas. Fiquei muito feliz porque era meu sonho desde a primeira gravidez. A segunda foi de que elas eram gêmeas siamesas. Não fazia ideia do que era e perguntei: 'o que é isso?'. Ele disse que as meninas eram coladas pelo abdome e tórax, e compartilhavam um único fígado e o diafragma no abdome. Ele me deu o exemplo de uma pessoa que nasce com seis dedos e, que depois do nascimento, faz a cirurgia para retirar esse dedo a mais.
Ele não quis dar muitos detalhes porque estava sozinha. Só me avisou que não poderia ter parto normal, porque poderia colocar em risco a minha vida e a das crianças e, que quando elas nascessem, seria feita a cirurgia de separação.
Fiquei assustada, mas entreguei nas mãos de Deus
Fiquei um pouco assustada, mas procurei me manter a calma. Cheguei em casa e liguei para o Caíque para contar o que o médico havia me dito. A minha sogra perguntou se já tinha visto alguma imagem de gêmeos siameses, e disse que não. Ela me chamou para ir na casa dela ver. Chegando lá, o computador não ligava.
Entendi que era um sinal para não ver e decidi que só iria saber quando a Maria Clara e a Maria Eduarda nascessem. Entreguei nas mãos de Deus e confiei que as coisas aconteceriam da forma que ele quisesse.
Infelizmente, não consegui fazer meu pré-natal certinho. Me jogavam de um hospital para outro. Em cada consulta, era atendida por um médico diferente. Eles não sabiam lidar com o meu caso.
No dia 22 de abril de 2015, estava com 39 semanas, e indo para mais uma consulta quando minha bolsa estourou no ponto de ônibus. Um rapaz e meu pai me levaram às pressas para o hospital. Quando cheguei lá, já estava em trabalho de parto, com seis dedos de dilatação. Fizeram uma cesárea de emergência.
Pensei que no próprio parto elas seriam separadas, mas não foi o que aconteceu. O médico as enrolou em um pano e as levou para a UTI neonatal, sem que pudesse vê-las.
Tive uma mistura de medo, ansiedade e alegria ao vê-las pela 1ª vez
Só fui conhecer minhas filhas no dia seguinte. Foi um choque a primeira vez que as vi. Tive uma mistura de medo, ansiedade e alegria. Minha preocupação era como iria cuidar, segurar no colo, amamentar. A médica disse que não teria condições de amamentar por estar abaixo do peso e porque elas iriam sugar bastante.
Antes de engravidar, pesava 42 kg. Durante a gravidez fui para 48 kg. Estava muito magra.
Eu e o Caíque reatamos no nascimento da Maria Clara e da Maria Eduarda. Elas ficaram dois meses internadas e nós dois nos revezávamos nas visitas. Por norma do hospital, só as enfermeiras podiam dar banho, trocar fralda, roupa e dar leite.
Perguntava quando elas seriam separadas, eles diziam que estavam montando uma equipe. Questionei se o hospital já tinha atendido algum caso parecido com o meu e se já tinham feito a cirurgia de separação de gêmeos siameses. Eles falaram que não.
Eu e minha família decidimos não autorizar o procedimento por falta de confiança na equipe e por não ter nenhum médico especialista no assunto.
A partir daí, uma médica entrou em contato com o cirurgião pediátrico Zacharias Calil, de Goiânia. Ele iria assumir nosso caso, mas para isso teríamos de viajar de Salvador para lá.
Nós não tínhamos condições financeiras para arcar com os gastos. Eu e meu marido estávamos desempregados. Minha sogra pediu ajuda de uma emissora de TV para divulgar nossa história e arrecadar recursos para a viagem. Nós recebemos doações de pessoas do Brasil inteiro, R$ 1.700 em dinheiro, além de fraldas, roupas, leite, itens de higiene pessoal e uma ajuda de custo do Estado.
Me perguntaram se estava preparada para uma morrer e a outra sobreviver
No dia 20 de julho, quando as gêmeas estavam com dois meses, nós quatro viajamos para Goiânia —meu filho mais velho ficou com meu pai e uma tia em Salvador. Ficamos hospedados em uma casa de apoio. Na primeira consulta com o doutor Calil, ele examinou as meninas e nos transmitiu segurança. Ele disse que a cirurgia era complexa, mas que elas eram fortes, e que ia dar tudo certo.
Nesse processo, algumas pessoas me perguntaram se eu estava preparada para uma morrer e a outra sobreviver —elas tinham visto um caso em que um dos gêmeos siameses havia falecido. Respondia que Deus estava me preparando para a vitória e que minhas filhas iam ficar bem.
No período de espera para fazer a cirurgia, que foi de dois meses, adaptamos algumas coisas para poder cuidar delas.
Não tinha muito posição para pegá-las, ou era deitada na perna ou no colo com a cabeça encostada no braço. As duas juntas eram pesadas. Para dar banho, o Caíque segurava a cabeça das duas, uma com cada mão, e eu passava o sabonete.
Na hora de mamar, dávamos a mamadeira uma de cada vez. Para vestir, colocava os braços e as pernas normal, mas prendia uma roupa na outra para fechar. Elas dormiam no berço. Quando, geralmente, a Duda acordava, ela batia a mãozinha no rosto da Clara, e acordava a irmã. Colocava luvinhas para elas não se machucarem.
Descobri que estava grávida na viagem
Durante a viagem, senti enjoos e vômitos e descobri que estava grávida de novo. Fiquei desesperada com a possibilidade de serem gêmeos siameses. Contei para o meu marido e não falamos nada para ninguém. Naquele momento estávamos focados no tratamento da Maria Clara e da Maria Eduarda.
A cirurgia aconteceu no dia 9 de setembro de 2015. Foi tenso, parecia que o tempo não passava. Orava a Deus pedindo proteção para as minhas filhas. Quando o doutor Calil saiu da sala, ele veio nos dizer que a cirurgia tinha sido um sucesso. Foi um alívio. Elas foram para a UTI e pudemos vê-las no dia seguinte.
Foi uma emoção muito grande, chorei de felicidade ao ver as duas separadas. Ficamos mais dois meses em Goiânia para médico acompanhar a recuperação delas de perto.
Nós procurávamos manter as duas juntas sempre que possível, mas mesmo assim acho que elas devem ter sentido falta uma da outra, principalmente a Duda. Ela ficava mais agitada procurando a Clara. Demos uma boneca para ela não se sentir sozinha. Quando elas estavam juntas, se olhavam, se tocavam, davam risada.
Elas receberam alta em novembro e nós voltamos para Salvador. Fiz um ultrassom e descobri que teria um menino, o David Luis. Ele nasceu no dia 2 de abril de 2016.
A Maria Clara ainda precisou fazer duas cirurgias reparadoras, mas ficou bem. Elas não ficaram com nenhuma sequela, quem vê as duas pensa que são gêmeas que nasceram de forma normal. Mas faço questão de contar a história para elas. Digo que elas nasceram coladas na barriga e no tórax, mostro fotos, falo da cirurgia.
Não sei porque passei por isso com as minhas filhas, só sei que foi um propósito de Deus e que ele nos escolheu para essa experiência. Apesar de elas terem sido separadas fisicamente, sempre digo para elas continuarem unidas de coração, apoiando e cuidando uma da outra."
A pedido de VivaBem, Zacharias Calil , cirurgião pediátrico no Hospital Materno Infantil de Goiânia, coordenador da equipe médica e especialista em separação de gêmeos siameses, explica a condição e conta como foi a cirurgia da Maria Clara e da Maria Eduarda.
Por que dois bebês podem nascer grudados?
Não existe uma causa específica para dois bebês nascerem grudados. Por volta do 13º dia de gestação, os gêmeos, que eram para ser separados, são gerados unidos, porque ocorre uma má-formação no embrião, ele não se divide. Qualquer parte do corpo pode ser colada e, dependendo do local onde se deu a divisão, dá-se um nome em latim: no tórax, são chamados Thoracopagus; no abdome, Omphalopaga; e no crânio, Craniopagus.
A condição é considerada rara?
Os gêmeos siameses estão entre os seres humanos mais raros no mundo. A incidência é de 1 para 150 mil nascidos vivos. Não existe uma estatística no Brasil, pois são casos isolados. Em 20 anos fazendo esse tipo de cirurgia, já fiz a separação de 18 gêmeos, que eram grudados pelo abdome, tórax, bacia, fígado, rins, bexiga, intestinos delgado e grosso, e coluna vertebral da região lombar e sacral.
Como foi a cirurgia das Marias?
No caso da Maria Clara e Maria Eduarda, elas eram unidas pelo tórax e abdome (consideradas Tóraco-Omphalopagas). Elas dividiam o fígado e o diafragma no abdome. Apesar de terem corações separados, a membrana que revestia o coração, chamada de pericárdio, era única e englobava os dois órgãos. Elas também não tinham o esterno, osso que fica no meio do peito.
A cirurgia de separação delas durou oito horas e teve a participação de 24 profissionais, entre cirurgião vascular, cirurgião plástico, cirurgião cardíaco pediátrico, anestesiologistas, enfermeiros, entre outros. Inicialmente, realizamos um inventário de toda a cavidade abdominal, fizemos a incisão principal no fígado, buscando o corte em um local com menos sangramento possível. Após a separação do fígado, separamos o diafragma e, por último, o tórax para a abertura da membrana que reveste o coração (pericárdio), que também foi separada.
Após essa etapa, a Maria Clara e a Maria Eduarda foram, cada uma, para uma mesa de cirurgia separadas para fazer a reconstrução do tórax e abdome com a equipe de cirurgiões plásticos. O fígado que elas compartilhavam foi dividido na metade para cada uma delas. Ele normalmente se regenera, pois preservamos a anatomia dele e das vias biliares.
A barriga delas foi costurada através da rotação de retalhos de pele e músculo. Utilizamos a pele do abdome lateral. Também usamos uma tela artificial para fazer a proteção das vísceras, pois elas não tinham a musculatura da parede abdominal. Essas telas são de material artificial, nesse caso, náilon, o que provoca uma reação inflamatória no organismo e a tendência é a expulsão (rejeição), formando processos chamados de granulomas de corpo estranho. O organismo da Maria Clara rejeitou a tela e, por isso, ela precisou fazer mais duas cirurgias, posteriormente, mas sem complicações graves.
Toda cirurgia envolve riscos. No caso delas, o mais arriscado seria a hemorragia durante a separação do fígado e distúrbios de coagulação. Na separação do tórax, o que chamou a atenção foi a abertura do pericárdio com os dois corações expostos. Qualquer trauma local na região poderia levar a uma parada cardíaca ou uma rotura.
A Maria Clara e a Maria Eduarda não tiveram nenhuma sequela. Quase cinco anos após a cirurgia, elas estão se desenvolvendo física e mentalmente, dentro do esperado para a idade delas.
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