Maioria das pessoas com esquizofrenia não é perigosa: entenda o quadro
Doenças psiquiátricas são um assunto polêmico: muitas vezes não sabemos muito sobre o tema e acabamos criando estereótipos sobre quem tem esse tipo de enfermidade. Por isso, é comum usá-las como justificativa em diversas situações.
Um exemplo é o episódio de racismo ocorrido no interior de São Paulo em 31 de julho, que viralizou nas redes sociais uma semana depois e então repercutiu na imprensa nacional. Milhares de pessoas se solidarizaram com o entregador vítima das ofensas, não só com mensagens de apoio, mas também de repúdio aos insultos sofridos por ele.
Com a visibilidade, o pai do agressor se manifestou e alegou que o filho sofre de esquizofrenia paranoide. Mesmo que ele tenha de fato o quadro, a divulgação do distúrbio psíquico como justificativa para a reação racista e criminosa acaba por reforçar outro estereótipo e só contribui para mais preconceitos. Dessa vez de que pessoas com o problema mental são agressivas, violentas e perigosas, numa representação distorcida que existe há muito tempo e que estimula a psicofobia e a estigmatização da doença.
Do início: o que é a esquizofrenia paranoide?
Trata-se de um transtorno psicótico, uma doença psiquiátrica endógena, caracterizada especificamente por delírios e alucinações. É causada por um desequilíbrio químico do cérebro, que interfere na neurotransmissão da dopamina e provoca os chamados sintomas produtivos —aqueles que respondem mais rapidamente ao tratamento.
Estão ligados com ideias e comportamentos desorganizados, que partem do falso juízo e visão distorcida da realidade, na qual existem pensamentos falseados patologicamente, especialmente os persecutórios. São os delírios, quando o indivíduo acredita fortemente que está sendo perseguido, monitorado e que desejam prejudicá-lo. É comum envolver pessoas públicas nessa trama, como o presidente ou o Papa, e até crer que existe um chip no cérebro que precisa ser removido.
Nessa perda da noção do que é real e do que é imaginário, há também os casos de alucinações, onde a pessoa tem a percepção de objetos inexistentes e crenças delirantes. Acontece de escutar vozes que comumente mandam o indivíduo fazer coisas e comentam seus atos num tom ameaçador. São sinais que ficam mais intensos nos surtos e crises agudas.
Apesar de serem as reações que mais despertam atenção, na maioria das ocorrências o paciente começa a dar sinais da doença por meio dos sintomas negativos, que envolvem apatia, isolamento, alterações na vontade e na afetividade, e desesperança profunda. Pouco se fala, mas o índice de suicídio entre esquizofrênicos é maior que o da população em geral.
O perigo do estigma
Há um grande histórico de desconhecimento e fantasia em relação ao que eram os distúrbios mentais, o que ajudou a criar a ideia de que pessoas com esquizofrenia são todas perigosas, com características bem esquisitas, e que devem ficar isolados socialmente.
Ainda hoje a palavra esquizofrenia é bastante utilizada para adjetivar situações incomuns, fora dos padrões gerais da normalidade. Pode ser uma prática corriqueira para muita gente, mas reforça o estereótipo pejorativo daqueles que possuem a doença. Não raro muitos pacientes apresentam sentimentos de desvalia e desesperança após o diagnóstico, internalizando inclusive um rótulo de incapacidade.
A partir desse estigma, casos que envolvem pessoas com esquizofrenia e crimes violentos ganham uma projeção exagerada e muitas vezes sensacionalista, que faz parecer uma constante de comportamento entre os que têm a doença. A impressão é de que são perigosos, agressivos e até mais violentos que a população em geral.
No entanto, episódios de ofensas e agressividade entre esses pacientes são minoria, inclusive entre os não-tratados, e usualmente estão relacionados com o uso de álcool e outras drogas. A maioria costuma ter comportamentos retraídos, com mais chances de causar danos a si próprios do que aos demais. Daí a importância do diagnóstico, da medicação e da orientação apropriada em relação ao transtorno.
Por envolverem traços e sinais abstratos, sem indícios físicos e aparentes, é difícil haver o entendimento de que os transtornos mentais consistem em doenças que demandam tratamento contínuo. Na esquizofrenia, a medicação e cuidados adequados promovem a remissão dos sintomas, o que permite aos pacientes conviverem e serem reintegrados à vida em comunidade.
Mesmo que venham deixando de ser institucionalizadas, pessoas com doenças mentais ainda possuem várias dificuldades de participar da vida social. Isso porque os recursos de reabilitação e inclusão são escassos, e somados com um imaginário cercado de representações preconceituosas, só favorecem sentimentos de inutilidade e baixa autoestima.
A esquizofrenia no tribunal
Além disso, é importante ressaltar que nem sempre um transtorno mental justifica todo tipo de ação. Por isso, quando há dúvidas sobre a integridade ou a saúde mental dos denunciados num processo criminoso, é solicitada a avaliação de um médico, nomeado pelo juiz e que passa a ser o perito do caso. É possível que haja a participação de um assistente técnico, que acompanha a perícia e auxilia nas etapas até chegar ao laudo. Para evitar exposição do acusado, o conteúdo tem caráter sigiloso e apenas as partes envolvidas devem tomar conhecimento.
Assim tem início a perícia psiquiátrica, para averiguar se a ação delituosa foi ou não motivada por transtorno ou enfermidade mental. A análise costuma ser feita por um psiquiatra forense, que além dos conhecimentos médicos, também é especializado em questões jurídicas, e consegue transcrever a avaliação técnica em termos mais acessíveis e próximos do entendimento dos advogados.
O perito analisa o processo criminal e entrevista o acusado para traçar as implicações da existência (ou não) de um diagnóstico psiquiátrico, e assim apontar se há alguma relação com o crime cometido. Leva-se em conta o critério biopsicológico, que considera que não dá para atribuir um crime àquele que, devido sua condição mental no momento, foi incapaz de entender o caráter ilícito do fato.
Para isso, também são feitos exames psicopatológicos com objetivo de avaliar funções como memória, consciência, senso e percepção, vontade e inteligência. São analisados ainda o histórico do paciente, os sintomas e tratamentos já realizados, bem como o uso de álcool e drogas, que pode favorecer crises e surtos esquizofrênicos. A ideia é reunir o maior número de elementos para averiguar se a patologia interferiu na compreensão e na determinação da pessoa ao praticar o delito.
A arte de ser louco
Somente no final do século 19 que a psiquiatria passou a distinguir e aplicar melhores definições em relação à esquizofrenia, inicialmente denominada demência precoce. Antes disso, boa parte dos diagnósticos para quem tinha o senso de realidade distorcido era de "loucura", por não compartilhar a mesma existência vivida pelos demais.
Desde a Antiguidade é a justificativa utilizada para explicar eventos fora do comum. Acreditava-se que muitos desses episódios excepcionais eram causados pela vontade dos deuses, e estavam relacionados com possessões demoníacas e bruxarias. Durante muito tempo não era considerada como doença, mas sim parte do destino de algumas pessoas.
A classificação como enfermidade é algo recente na história da civilização ocidental. Suas concepções e interpretações vêm sendo bastante modificadas ao longo dos anos, inclusive do próprio termo loucura. Atualmente a psiquiatria trata como psicose a distorção do pensamento e da noção de realidade, daqueles que apresentam alterações de funções psicológicas, comprometimento de emoções e incapacidade de pensar coerentemente.
Por mais que esses conceitos venham avançando, o tratamento dado aos pacientes só mudou efetivamente com o que ficou conhecido como revolução farmacológica, nos idos da década de 1950, com a introdução de medicamentos antipsicóticos que melhoram os sintomas e ajudam o paciente a conviver em sociedade. Até então, os recursos eram limitados e restava como opção a internação em asilos ou hospitais psiquiátricos.
Confinados, muitos doentes não podiam sair desses locais e chegavam a passar a vida toda sem dispor de cuidados adequados. Ao contrário, há diversos relatos de maus-tratos, torturas e violência nessas instituições. Hoje as internações são mais breves, tidas como necessárias apenas para controlar crises.
Fontes: Alexandre Martins Valença, psiquiatra forense, professor associado do Departamento de Psiquiatria da UFF (Universidade Federal Fluminense); e Mario Louzã, médico assistente e coordenador do PROJESQ (Programa de Esquizofrenia) do Ipq do HC/FMUSP (Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo).
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.