Por que o novo normal em hospitais tem tudo separado e todos "sob suspeita"
O impacto da pandemia da covid-19 aos hospitais brasileiros pode ser comparado ao de uma bomba atômica. Entre final de fevereiro e março, estruturas inteiras tiveram de se adaptar a uma nova —e assustadora— realidade tratar pacientes com o novo coronavírus.
Passado o pico da doença em muitas cidades, hospitais começam agora a retomar procedimentos eletivos (que foram suspensos), mas, para isso, eles precisaram ir além de obras para separar pacientes, ter testes e realizar treinamento: foi preciso mudar a forma de ver quem chega para os atendimentos. "Agora todos [os pacientes] são suspeitos [de ter covid-19]", diz o diretor de governança clínica do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, Fernando Ganem.
Na segunda quinzena de julho, o hospital começou a retornar os atendimentos não urgentes e "se dividiu" em três setores: um para pessoas com sintomas respiratórios (que inclui casos suspeitos e de covid-19), um de transição (pessoas sem sintomas, mas que aguardam exame para saber se estão com covid-19) e um terceiro para aqueles que já foram submetidos ao teste e deram negativos.
"Nas três torres de prédios que temos, um bloco para cada um desses setores. No pronto-socorro a gente fez acessos independentes para sintomas respiratórios ou não. Agora são salas, fluxos, equipes e até elevadores independentes. E também apostamos na educação e na conscientização de todos os envolvidos no processo", conta.
O hospital chegou a ter 95% dos leitos críticos ocupados durante o pico da pandemia, 80% deles destinados a pacientes que tratavam a covid-19. "Tivemos 150 pacientes em atendimento crítico e semi-crítico ao mesmo tempo. Depois de dois meses, começou a ter uma queda. Hoje, são 90 pacientes, pelo menos 20% deles de fora de São Paulo", explica.
Testagem em massa
Setores e procedimentos já existentes nos hospitais precisaram passar por adaptações para o retorno dos procedimentos. No Sírio-Libanês, por exemplo, qualquer paciente é submetido a um teste de PT-PCR 48 horas antes. Se der positivo, não é feita a operação.
Já no caso de exames de imagem que não necessitam de internação, o procedimento também é rigoroso. "Temos quatro etapas de triagem: na chegada é um interrogatório; na véspera do exame, ele é avaliado novamente; e na chegada e antes do início do exame é feita nova avaliação. Se tiver algo identificado, ele vai para um setor especializado passar por uma investigação", pontua.
Segundo Camila Almeida, infectologista e consultora da Anahp (Associação Nacional de Hospitais Privados), diversas estratégias foram adotadas para garantir a segurança dos pacientes nas unidades. Entre elas estão reforço nas medidas de limpeza e desinfecção; fluxos diferenciados para o atendimento; triagem telefônica para verificar sintomas gripais e testagem e segregação de salas de cirurgia.
"Os visitantes também passaram a ser avaliados quanto à presença de sintomas, incluindo a aferição de temperatura, e têm a circulação restrita pelo hospital. A telemedicina também foi uma estratégia utilizada para evitar que doentes do grupo de risco circulem pelas instituições", explica.
A associação informa que tem percebido uma retomada ainda tímida na utilização dos serviços de saúde privada. Em junho, a taxa de ocupação de leitos dos hospitais filiados chegou a 65% —era de 50% em abril.
Um dos fatores que ajuda na retomada, diz a associação, é que 85% dos pacientes de cirurgias eletivas não necessitam de UTI (unidade de terapia intensiva) —assim os pacientes não precisam disputar esses leitos com pacientes infectados pela covid-19.
Sem cruzar pacientes
Parar o retorno de cirurgias e exames complexos foi uma necessidade dos hospitais que se dedicaram a tratar a explosão de casos de covid-19, que superlotou as UTIs de várias cidades.
Na Santa Casa de Maceió, desde fevereiro foram atendidos 1.579 pacientes com covid-19, com 136 mortes. Em muitos momentos o hospital operou no limite de seu atendimento de terapia intensiva. No pico, em maio, o hospital chegou a ter 146 pessoas internadas com a doença —na última quinta-feira (13) eram apenas 40 pessoas (12 delas em UTI).
Com a queda, o hospital reabriu na última semana semana para atender procedimentos eletivos suspensos desde março. Segundo Tereza Tenório, médica e gerente de riscos e de práticas assistenciais da Santa Casa, a unidade elaborou um plano de retomada de procedimentos que dividiu o hospital em alas covid e não covid.
"O objetivo é evitar cruzamentos nos ambientes entre pacientes, profissionais, acompanhantes e demais envolvidos nos distintos processos. Tivemos a elaboração de fluxos definidos para ambos, incluindo acesso exclusivo de elevadores e rotas específicas", conta.
Para o reinício, há uma triagem dos casos que vão desde o agendamento cirúrgico, com a aplicação de um check-list sobre contato prévio com casos positivos para covid-19, sinais, sintomas e quarentena.
"Houve uma seleção dos casos de maior necessidade de intervenção cirúrgica. Há também videoconferências com as equipes cirúrgicas e administrativas para alinhamento do número de pacientes/dia, intervalo entre um procedimento e outro, restrição de acompanhantes, paramentação, cuidados com equipamentos (incluindo dispersão de aerossóis durante o procedimento). E no pós-operatório há um acompanhamento de até 14 dias para identificar qualquer complicação no período", ressalta.
Maternidade fez obras
A retomada pode ser ainda mais difícil para as maternidades, que tiveram de manter parte dos serviços e atender gestantes e bebês com covid-19.
Com 173 leitos ativos, a Maternidade Escola Assis Chateaubriand, ligada à UFC (Universidade Federal do Ceará), em Fortaleza, precisou fazer várias adaptações. "Foi preciso a UTI passar por uma reforma para ser melhor adequada, para o isolamento ficar com área organizada de paramentação e desparamentação. Houve um cuidado maior, e hoje temos um ala de enfermaria que está toda separada", afirma Raquel Autran, chefe da Divisão de Gestão do Cuidado da unidade.
Ela explica que a pandemia fez o atendimento sofrer uma "mudança muito brusca." "Foram mantidos serviços ambulatoriais como pré-natal, atendimento a câncer e planejamento reprodutivo, que são 'para já', que não tinham como esperar. E era bem complicado, a consulta pré-natal, por exemplo, tinha que passar por cinco serviços diferentes. A gente teve de isolar para não misturar as pacientes com e sem covid", lembra.
Com esse cenário, foram dois meses de muita angústia dos profissionais que chegaram a ter no pico, em maio, 13 mães e bebês internados com covid-19 —na quarta-feira (12) eram apenas quatro. No mês passado, entretanto, os serviços retomaram: os ambulatórios voltaram, com exceção daqueles em que o profissional tirou férias (que foram suspensas durante o período inicial da pandemia). "O que ainda não foi retomada é a presença dos alunos da graduação, só os residentes estão aqui", diz.
Um dos efeitos colaterais positivos, digamos assim, é que agora o público não aglomera mais no início da manhã em busca de serviços. "Cada vez mais a gente tem valorizado os blocos de horário, para não aglomerar em sala de espera. Além disso ainda realizamos o acompanhamento por telefone", conta.
Para ela, o know-how adquirido ao enfrentar a pandemia e ter de realizar outros atendimentos faz com que a equipe tenha certeza de que "o pior já passou". "A gente sofreu muito —como todos os outros serviços—, precisou passar por adaptações. Mas hoje nos sentimos mais seguros para readequar, caso haja necessidade", garante.
Retorno paulatino
Em Pernambuco, onde entre 20 de abril e 6 de junho houve fila de espera de pacientes por leitos de UTI para covid-19, o secretário de Saúde André Longo explica que desde o dia 10 de junho uma série de reuniões com conselhos regionais de categorias e entidades foi feita para elaboração de planos de retorno seguros nas atividades de saúde.
"É natural que agora a retomada seja paulatina, dentro do plano de contingência e dependendo do envolvimento de cada uma das unidade no esforço para tratar a covid-19. Muitas unidades tiveram deslocamento de recursos humanos para atividades emergenciais, outros se afastaram por idade, por comorbidade", diz.
Para ele, a retomada não envolve todos os serviços. "Não há nenhum sentido, por exemplo, de fazer cirurgias estéticas, cirurgias plásticas. O risco não compensa", afirma.
Mas nem todos voltaram
Enquanto aguardam melhores condições da pandemia em suas regiões, há unidades que ainda estão com serviços suspensos. É o caso do Hospital Nossa Senhora Aparecida, em Petrópolis (RJ).
"Os procedimentos eletivos continuam suspensos porque existe um risco muito grande de contaminação. Estamos com as cirurgias todas paradas, não temos previsão de reabertura. O município também continua com cirurgias paralisadas; agora que se iniciou um estudo da flexibilização", conta Alexandre Pessurno, diretor do Hospital Nossa Senhora Aparecida. "Aqui estamos apenas com ambulatórios funcionando", completa.
Segundo ele, até para receber internações encaminhadas por outros serviços, o hospital decidiu adotar o protocolo de fazer uma tomografia em todos pacientes. "Isso é para ter certeza que o paciente não está com covid. É o melhor exame, no meu entendimento, para efeito de controle e que detecta o mais rápido possível se o pulmão tem algum comprometimento. Com isso você consegue fazer uma triagem muito boa", explica.
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