"Fiz cirurgia com meu bebê no útero para corrigir malformação na coluna"
Durante um ultrassom, a cozinheira Thaís Smocowisky, 31, descobriu que o filho nasceria com uma malformação na coluna e que ele poderia não andar. Assustada, ela ouviu da médica duas opções: fazer a cirurgia com o bebê ainda no útero ou depois do nascimento. Ela escolheu fazer o procedimento intrauterino. Conheça a história dela, como foi a intervenção e o desenvolvimento do filho com o diagnóstico de mielomeningocele.
"Até metade da minha gestação tudo transcorreu bem. Sempre ia para os ultrassons receosa. Tinha um pressentimento de que o Theo teria algum problema de saúde, às vezes pensava que ele poderia nascer com síndrome de Down. De certa forma, parecia que já estava preparada para o que estava por vir.
Com 23 semanas, fiz o ultrassom morfológico e a médica disse que a coluna do Theo não estava fechada como deveria. Ela explicou que ele nasceria com uma malformação congênita da coluna vertebral, chamada de mielomeningocele. Perguntei se a coluna não iria fechar com a evolução da gravidez, ela disse que não, que só seria corrigida com cirurgia.
Eu e meu marido, o André, ficamos assustados com a notícia. Ela disse que dependendo do grau da lesão, o Theo poderia ter a parte motora comprometida, não andar, ter hidrocefalia e bexiga neurogênica, algumas das complicações da doença.
A médica nos explicou que poderia fazer a cirurgia com o meu filho ainda no útero ou após o nascimento. Segundo ela, a primeira opção traria resultados mais efetivos para a saúde do Theo. Ao chegar em casa, dei uma rápida pesquisada na internet sobre a doença, li que a expectativa de vida desses pacientes era de 20 anos. Foi o suficiente para não querer saber mais nada.
Na mesma noite viajei de Salvador para São Paulo para passar em uma consulta, no dia seguinte, com uma obstetra criadora de um procedimento menos invasivo.
Chegando lá, a médica me deu mais informações sobre a condição e explicou que a cirurgia seria feita utilizando a técnica SAFER e que não seria necessário abrir o meu útero. Como toda cirurgia, havia riscos, e um deles era ter um parto prematuro.
Cirurgia e gastos hospitalares custavam R$ 110 mil
Apesar do risco, decidi que faria a cirurgia, era a melhor escolha para o meu filho. Passado o primeiro susto do diagnóstico, veio o segundo, o valor do procedimento e os custos hospitalares chegavam a R$ 110 mil. Não tinha esse dinheiro. Bateu um desespero, fiquei pensando em mil alternativas para arrecadar o valor, até que um colega sugeriu de eu entrar na Justiça.
Contratei um advogado e consegui judicialmente que o meu plano de saúde cobrisse todo o procedimento, mais o parto e o acompanhamento do meu filho até os dois anos de idade no Hospital Albert Einstein.
No dia 4 de fevereiro de 2016, fui para a mesa de cirurgia com 26 semanas de gestação. Meu medo não era do procedimento em si, mas do que aconteceria depois. No geral, a cirurgia foi segura, tranquila e tive uma boa recuperação, só precisei ficar de repouso absoluto. Meu marido voltou para Salvador e fiquei em São Paulo na casa dos meus pais até o parto. Três semana depois da cirurgia, tive um descolamento da placenta, intensifiquei o repouso e tive de tomar remédio.
Semanalmente, fazia ultrassom para acompanhar a evolução do Theo e para saber se a coluna tinha fechado e se ele tinha movimento nas pernas. Estava tudo dentro do esperado.
Com 32 semanas, fui para o hospital com princípio de parto prematuro. Fiquei 11 dias internada tomando medicação na veia para inibir as contrações. Consegui segurar a gestação por mais quatro semanas. Com 36 semanas, minha bolsa rompeu, fui encaminhada para a cesárea e o Theo no nasceu dia 6 de maio de 2016.
Assim que ele nasceu, já o enfaixaram com um pano e o colocaram na incubadora de bruços. Ao examiná-lo constataram que a cicatrização não estava 100% completa e que seria necessário fazer um novo procedimento.
Com 36 horas de vida ele foi submetido a uma cirurgia. Foi difícil lidar com isso, fiquei bastante preocupada porque enquanto os exames e as intervenções eram comigo, tudo bem, era como se estivesse protegendo meu filho. Mas ao ver meu bebê tão pequeno tendo que passar por essa situação, foi mais complicado.
O Theo precisou ficar internado 28 dias por causa dos curativos. Nesse processo, os médicos notaram que ele não conseguia fazer xixi sozinho, tiveram de colocar uma sonda. Durante três meses, fazia cateterismo nele de quatro em quatro horas para eliminar a urina.
Vivemos um dia de cada vez com o Theo
Desde que fomos para casa, temos vivido um dia de cada vez com o Theo e com as consequências da mielo. O primeiro ponto a trabalhar foi a parte motora dele. A gente o estimulava com exercícios lúdicos, brinquedos, colocando-o na posição certa.
Às vezes, achávamos que ele estava lento, que não estava evoluindo, mas quando ele conseguia, reconhecíamos o quanto ele precisava se esforçar para atingir alguns marcos.
Mesmo com um atraso comparado a outras crianças, celebramos e valorizamos cada etapa concluída pelo nosso filho. Ele sentou com oito meses, engatinhou com um ano e dois meses e começou a andar com o andador com dois anos, e com três anos sem.
Agora ele pode usar mochila de rodinha porque não precisa mais do andador. O Theo ainda tem algumas dificuldades, não consegue subir escada sozinho, só se for de mão dada com alguém, ele usa órtese na perna, mas só de vê-lo andando já é um avanço enorme.
Nossa próxima batalha é conseguir o desfralde. O Theo já está com quase quatro anos e ainda usa fralda. Por causa da mielomeningocele, ele não controla a urina. Ele não sente que faz xixi, tem muitas perdas durante o dia. É algo que estamos trabalhando com ele, conversamos, perguntamos se ele está com vontade de fazer xixi.
Já avisei na escola que não quero que falem para ele que ele é grande para usar fralda porque pode ser que ele use por mais tempo. Essa é uma questão que me preocupa e mais uma que vamos enfrentar juntos. Ele tem hidrocefalia compensada, mas não precisa da válvula, o que é um alívio —devido ao risco de infecção e complicações.
Sou cozinheira na Rede Sarah de Hospitais de Reabilitação, que atende, entre outras condições, pacientes com mielo. Lá eu vejo a realidade da doença, crianças e adultos com cadeira de roda, com muita dificuldade motora, que já operaram diversas vezes por causa da válvula.
São pessoas que não tiveram a chance de fazer uma intervenção como a do Theo, que foi operado quando ainda estava na minha barriga. Tenho certeza de que foi uma decisão super acertada. Agradeço a oportunidade que tivemos porque hoje o quadro do meu filho é ótimo, estável e ele tem condições de ter uma boa qualidade de vida".
Saiba mais sobre a cirurgia intrauterina e a mielomeningocele
1) O que é mielomeningocele?
A mielomeningocele é um defeito de fechamento da coluna. Os ossos que protegem a coluna não se formam, deixando a medula exposta. Como consequência da doença, os pacientes podem ter diversos graus de paralisia das pernas e pés. Quando se opera depois do nascimento, apenas 20% das crianças andam e 40% têm bexiga neurogênica --falta de coordenação entre os músculos do sistema urinário--, podendo levar a um aumento da pressão para os rins que precisa ser tratado passando a sonda para urinar. Além disso, 80% têm hidrocefalia (acúmulo de líquido na cabeça) e precisam colocar válvula para tratar, diminuindo a pressão sobre o cérebro.
2) Como funciona a cirurgia com o bebê ainda no útero?
Uma forma de corrigir a mielomeningocele é por meio da fetoscopia utilizando a técnica SAFER, procedimento realizado no Theo quando ainda estava na barriga da Thaís. Trata-se de uma cirurgia minimamente invasiva, em que através de pequenos furos no útero, sem precisar abrir a barriga da mãe, é realizada a correção do defeito na coluna do feto. Geralmente, o procedimento é feito com 25 a 27 semanas de gestação, mas pode ser realizado até 28-30 semanas em casos especiais. A gestante é submetida a anestesia geral. Tanto ela como o feto ficam anestesiados.
Usamos a imagem obtida através do aparelho comum de ultrassom (o mesmo que se usa para os exames fetais de rotina) para colocar as 3-4 cânulas dentro do útero. O líquido amniótico é retirado e insuflado gás (dióxido de carbono) dentro do útero para poder operar o feto. Completada a cirurgia no bebê, o gás é retirado e o líquido amniótico colocado de volta.
Para a mãe, há o risco de infecção, sangramento e embolia gasosa (entrada de gás na circulação). Para o feto, principalmente a prematuridade. A recuperação da gestante é semelhante a de uma paciente que é submetida a uma laparoscopia para retirar a vesícula, por exemplo. A dor é moderada no primeiro dia e ela recebe alta no segundo ou terceiro dia. Ela não precisa ir para a UTI, vai direto para o quarto.
3) Quais as vantagens dessa técnica comparada com a feita a céu aberto?
Com a técnica SAFER, as chances de o bebê andar sem auxílio atingem 65% contra apenas 20% quando não se opera antes de nascer, segundo estudo que será apresentado em setembro no Congresso Internacional Society ObGyn e que já foi submetido a publicação. A bexiga neurogênica ocorre em apenas 30% dos casos versus 60%. A hidrocefalia reduz de 80% para 45%. São ganhos incríveis e, até o momento, não existe outra técnica com estes resultados para o bebê. No Brasil, já foram contabilizadas 116 cirurgias utilizando a técnica SAFER, e no mundo mais de 20.
A paciente pode ter parto normal na gravidez em que ela foi operada e em todas as outras gestações. Na cirurgia aberta, onde se corta o útero, ela não pode entrar em trabalho de parto. A cesárea é obrigatória na gestação em que ela foi operada e em todas as outras.
O maior risco da técnica a céu aberto é a possibilidade de o útero se romper na gestação seguinte, isso ocorre em até 10% das vezes, geralmente no segundo trimestre. Em 50% das vezes, quando a paciente chega ao hospital, o bebê já morreu ou é prematuro demais para sobreviver. A dor neste tipo de rotura costuma ser leve, e como o sangramento é interno, existe risco de vida também para a própria gestante. Quando não existiam outras alternativas, isso era válido, no entanto, agora há opções mais seguras.
Fonte: Denise Araújo Lapa, mestre e doutora em obstetrícia pela FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo), médica do programa de terapia fetal do Hospital Albert Einstein, integrante do corpo clínico da Célula Mater e criadora da técnica SAFER.
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