Efeitos da covid-19: alguns pacientes apresentam complicações persistentes
Passados quase nove meses desde o início da pandemia, o conhecimento acumulado sobre o agente causador da covid-19, o novo coronavírus (Sars-CoV-2), indica que seus efeitos deletérios no organismo humano podem ser maiores e mais duradouros do que se pensava. Antes descrita como uma pneumonia um pouco mais grave que se manifestava na parcela de infectados com sintomas severos, a covid-19 hoje é considerada por médicos e pesquisadores uma enfermidade mais abrangente, capaz de desencadear um processo inflamatório generalizado, semelhante ao causado pela sepse.
"O pulmão é o marco zero da infecção", destaca a patologista Marisa Dolhnikoff, coordenadora de equipe da FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo) que está realizando autopsias em pessoas que morrem por causa da covid-19. “Sabemos que o vírus é capaz de infectar células de outros órgãos, como o coração, os rins e o sistema nervoso central.”
Diante disso, e dos casos clínicos atendidos por pesquisadores de diferentes países, passou-se a chamar a atenção para a possibilidade de que, em parte dos casos, alguns sintomas da covid-19 podem persistir por longos períodos após o fim da fase aguda da doença. O risco de desenvolver o que eles chamam de síndrome pós-covid-19 se estenderia às pessoas com manifestações graves e moderadas da doença.
A lista de sintomas remanescentes é longa e variada. Inclui fadiga, batimentos cardíacos acelerados, falta de ar, dores nas articulações, perda persistente do olfato e paladar, e dificuldade de concentração. “Tenho pacientes que se curaram há meses e ainda hoje não recuperaram o paladar; outros perderam o olfato”, comenta a pneumologista Margareth Dalcolmo, da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), no Rio de Janeiro. A própria pesquisadora, recuperada da doença há dois meses, ainda sofre de neuropatias periféricas, como dormência nas mãos.
Estudos recentes também estimam que a covid-19 pode gerar complicações mais graves e até mesmo favorecer o surgimento de outras doenças, como a diabetes, quando o organismo não metaboliza de forma eficiente as moléculas de açúcar (glicose) no sangue. Esse cenário desenhado pelos pesquisadores é preocupante e põe à prova a noção de que todas as pessoas que se livraram da Covid-19 —até agora são mais de 16 milhões no mundo, das quais 3 milhões no Brasil— podem ser consideradas de fato curadas por terem sobrevivido à infecção.
“Da mesma forma, é possível que o número de mortos seja, indiretamente, muito maior do que o estimado”, sustenta o infectologista Marcus Vinícius Lacerda, da Fundação de Medicina Tropical Dr. Heitor Vieira Dourado, em Manaus. “Muitos pacientes que se recuperaram da covid-19 e deixaram os hospitais podem morrer tempos depois por conta de complicações relacionadas à infecção. Essas mortes não serão contabilizadas nos números da pandemia, mesmo que estejam relacionadas.”
Ainda não existem estatísticas capazes de traçar um panorama claro acerca desse novo capítulo da pandemia. Também é difícil estimar o risco de um paciente desenvolver sintomas persistentes após superar a fase aguda da covid-19 ou mesmo por quanto tempo esses sintomas podem perdurar. Os pesquisadores também não sabem quais seriam os fatores relacionados ao maior ou menor risco de uma pessoa acometida pelo novo coronavírus desenvolver complicações mais graves após a infecção.
A maioria dos estudos de acompanhamento da saúde de indivíduos considerados curados da doença está em andamento ou em fase inicial de desenvolvimento. Não por acaso, as principais evidências dos efeitos de longo prazo da infecção emergem de trabalhos em países precocemente atingidos pela pandemia, entre dezembro de 2019 e fevereiro de 2020, como a Itália. Um estudo publicado em julho no Jama (Journal of the American Medical Association) verificou que 87,4% dos pacientes de um grupo de 143 pessoas que haviam sido internadas em um hospital de Roma com covid-19 ainda exibiam sintomas dois meses após terem recebido alta.
O principal problema identificado pelos pesquisadores foi a dificuldade para respirar (dispneia). Essa complicação resulta da formação de fibroses, pequenas cicatrizes, no tecido pulmonar. Elas tornam o órgão menos flexível, o que pode comprometer a sua capacidade de realizar as trocas gasosas e de oxigenar os demais tecidos do corpo. A formação de fibroses pulmonares seria mais comum nos casos mais graves de covid-19, em razão da ação direta do vírus ou ainda de um efeito indireto, consequência de uma resposta inflamatória desregulada na região afetada.
As fibroses também podem surgir em decorrência do tempo em que alguns desses indivíduos ficam em UTIs respirando com o auxílio de ventilação mecânica. “O risco de formação de fibroses no pulmão pode variar de acordo com a idade do paciente, a presença de doenças pulmonares preexistentes ou mesmo determinantes genéticos individuais”, explica Dolhnikoff. “Seja como for, o que se tem claro é que uma parcela da população afetada poderá desenvolver essas cicatrizes, com prováveis impactos em sua qualidade de vida.”
As complicações de longo prazo também podem se estender para além do pulmão. Na Alemanha, um estudo publicado em julho na revista Jama Cardiology avaliou 100 pacientes com idades entre 45 e 53 anos. Todos se recuperaram da covid-19. Cerca de 10 semanas após o diagnóstico da doença, no entanto, 78% deles haviam desenvolvido anormalidades cardíacas por conta de inflamações no coração.
Também em julho, a equipe do médico Augusto César de Oliveira, do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, em São Paulo, deu início a um estudo envolvendo os hospitais Albert Einstein e Sírio-Libanês, na capital paulista, e o Hospital Geral de Fortaleza, no Ceará. O objetivo é avaliar a incidência de disfunções neurológicas de longo prazo em indivíduos acometidos pelo Sars-CoV-2.
“Vamos analisá-los ao logo dos próximos seis meses”, esclarece o pesquisador. Ele conta que desde o início da pandemia os relatos clínicos apontavam para uma alta incidência de dores de cabeça e algum nível de confusão mental em indivíduos infectados. “Achávamos que isso estava associado à fase aguda da doença, mas é surpreendente a quantidade de manifestações neurológicas após os pacientes se curarem.”
Dalcolmo, da Fiocruz, vem observando casos semelhantes em seu consultório particular. “Tenho pacientes que se curaram, mas quase um mês depois desenvolveram meningoencefalite, inflamação que acomete o cérebro e as meninges, membranas que o envolvem.”
Alguns, inclusive, foram submetidos ao teste RT-PCR, exame padrão para o diagnóstico da covid-19 a partir de amostras da secreção respiratória. O teste não identificou amostras do vírus no organismo. Ainda assim, tempos depois, os pacientes continuavam a sofrer dos sintomas adquiridos ao longo da doença ou desenvolveram complicações mais graves.
As situações observadas por Oliveira e Dalcolmo trazem à tona uma dúvida importante: os pacientes com sintomas persistentes ou complicações mais graves ainda carregam o vírus em seu organismo meses após a fase aguda da infecção? Aparentemente, não há um padrão.
Alguns ainda têm o vírus, mesmo que em menos quantidades; outros, não. Alguns especialistas sugerem ainda que é possível que o RT-PCR não consiga detectar a presença do vírus em outras partes do corpo, como no sistema nervoso, cujos impactos causados pelo vírus podem levar ao surgimento de outras doenças.
Em julho, Lacerda e sua equipe descreveram, em Manaus, o caso de um adolescente que, ao se infectar com o novo coronavírus, desenvolveu a síndrome de Guillain-Barré. Esse distúrbio imunológico leva à destruição da mielina, substância que reveste os nervos, provoca fraqueza muscular e, em casos graves, causa paralisia total dos membros e até a morte.
Vírus versátil
Todas essas complicações, em parte, estariam relacionadas à versatilidade do vírus em invadir diferentes tipos de células. Tal como uma chave que se encaixa em uma fechadura, o Sars-CoV-2 usa sua proteína S —de spike, ou espícula— para se ligar à enzima conversora de angiotensina 2 (ACE2) na superfície das células que recobrem o pulmão.
“Ocorre que as células do coração, do sistema nervoso e de vários outros órgãos também expressam a ACE2, de modo que praticamente todos os tecidos estão vulneráveis”, esclarece o biomédico Marcelo Mori, do IB-Unicamp (Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas). “Ao invadir as células, o vírus começa a se multiplicar”, complementa o bioquímico José Carlos Alves-Filho, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP. “Após atingir certo número de cópias, ele rompe sua membrana, destruindo-as para infectar outras células e repetir o processo.”
Isso se estende aos monócitos, células do sistema imune produzidas na medula óssea. Lançadas na corrente sanguínea, elas migram para os tecidos e se diferenciam em macrófagos, células de defesa que detectam e englobam partículas e microrganismos estranhos ao corpo.
Em estudo publicado em julho na revista Cell Metabolism, Mori e outros pesquisadores da força-tarefa contra a covid-19 da Unicamp verificaram que o Sars-CoV-2 se multiplica de modo mais acelerado dentro dessas células nos casos de pacientes com alto teor de glicose no sangue. A glicose é usada pelas células para produzir energia.
“Nesse caso, porém, é como se o vírus a usasse para se replicar mais rapidamente dentro dos monócitos”, destaca o pesquisador. Em resposta à crescente carga viral, os monócitos liberam grandes quantidades de proteínas (citocinas) que agravam a resposta inflamatória e, consequentemente, o quadro da doença.
Esse fenômeno ajudaria a explicar por que a covid-19 é mais grave em indivíduos com diabetes, que apresentam níveis elevados de glicose no sangue. Nos últimos meses, porém, os pesquisadores têm observado cada vez mais casos de pessoas sem histórico dessa doença que passaram a registrar um aumento dos níveis de glicose após se infectarem com o Sars-CoV-2.
Uma das explicações aventadas por Mori é a de que o vírus infecte células do pâncreas, do fígado e do tecido adiposo que controlam os níveis de glicose. Ainda não se pode dizer que há uma relação de causalidade entre esses fenômenos, mas os especialistas não descartam a possibilidade de a covid-19, em alguns casos, levar ao surgimento de diabetes.
Estima-se que isso seja uma consequência da infecção do Sars-CoV-2 nas células que revestem a parede interna (endotélio) dos vasos sanguíneos. Em muitos pacientes, essa invasão provoca uma série de alterações no mecanismo de coagulação sanguínea, levando-os a desenvolverem um quadro de hipercoagulabilidade, com a formação de trombos que podem causar infartos e hemorragias no coração e no cérebro. “As sequelas dessas complicações são as mesmas de qualquer acidente vascular”, diz Oliveira, do Instituto Emílio Ribas.
Os sintomas causados pela infecção do novo coronavírus e as complicações subsequentes estariam associadas a outro fenômeno importante. Em muitos casos, o vírus provoca uma resposta inflamatória intensa e sistêmica, acionada pelas citocinas.
“Essa reação exacerbada do sistema de defesa à presença do vírus faz com que as células de defesa ataquem parte do tecido saudável em torno da área afetada, potencializando os danos no órgão acometido, comprometendo suas funções”, explica Alves-Filho.
É como se houvesse uma briga entre o paciente e seu sistema imunológico. Essa briga, em algumas situações, dá-se em órgãos vitais como os rins, afetando sua capacidade de filtrar o sangue. “A incidência de lesão renal aguda em pacientes hospitalizados com a covid-19 é de 36%”, destaca a bioquímica Adriana Girardi, do Hospital das Clínicas da FM-USP. Segundo ela, nos casos dos que evoluem para um quadro mais grave da doença e são internados em UTIs, esse número chega a 90%. “Dois dos meus pacientes hoje precisam fazer hemodiálise, e provavelmente essa situação é definitiva”, comenta Dalcolmo.
Não se sabe por que o sistema imunológico de alguns age de forma acentuada enquanto o de outros atua de modo mais localizado nas células infectadas. É possível que isso envolva, entre outros fatores, a constituição genética de cada pessoa ou a presença de doenças preexistentes, que expõem constantemente o sistema imunológico a moléculas inflamatórias.
Essa situação pode comprometer a capacidade de defesa do organismo contra outras doenças, como a covid-19. “Aqueles que precisam ser internados na UTI correm o risco de infecções bacterianas secundárias, que tendem a exacerbar ainda mais a resposta inflamatória do organismo”, destaca Alves-Filho. “Estamos conhecendo a doença à medida que ela se espalha. É como trocar o pneu de um carro em movimento”, resume Dolhnikoff.
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