Falta de informação dificulta acesso a tratamento psiquiátrico no SUS
De acordo com dados da Opas (Organização Pan Americana da Saúde), uma em cada dez pessoas precisará de cuidados de saúde mental em algum momento da vida. A chamada "quarta onda" da pandemia de coronavírus será um aumento dos transtornos mentais, entre eles depressão, transtornos de ansiedade e dependência química.
Na saúde pública, os atendimentos de casos de depressão e transtorno afetivo bipolar são registrados com maior frequência nos CAPS (Centros de Atenção Psicossocial). A morte por suicídio está ligada à presença de transtorno psiquiátrico tratado de forma inadequada ou não tratado de maneira alguma. Dados da OMS (Organização Mundial de Saúde) apontam que 96,8% dos casos de morte por suicídio tinham registro em prontuário de doença mental.
Transtornos do humor, como depressão e transtorno bipolar, são os mais comuns em mortes por suicídio. Em segundo lugar, mas não menos importante, estão os transtornos por uso de substâncias psicoativas, em que entram a dependência química, e em terceiro, os transtornos de personalidade.
Em crise desde os 15 anos
Esse foi o caso da cuidadora Emanuela Celine de Melo, 32. Com 15 anos ela teve a primeira crise de depressão. Após uma tentativa de suicídio, foi levada pela família em estado grave para o Hospital Municipal Fernando Mauro Pires da Rocha —conhecido como Hospital do Campo Limpo—, na cidade de São Paulo.
Durante o período de internação, Emanuela teve acompanhamento de uma equipe composta por psicólogo, psiquiatra e enfermeiros. Após ficar internada por 45 dias, recebeu alta e a guia para acompanhamento pela UBS (Unidade Básica de Saúde). Mas a continuação do tratamento foi abandonada, porque a espera por uma psicóloga demorou um mês.
Como em muitos casos, quando não tratada corretamente a doença prevalece e um novo surto pode acontecer. E foi o que aconteceu com a paciente. Em meados de 2019, ela teve uma nova tentativa de suicídio.
Dessa vez, os primeiros socorros foram realizados no Hospital Dr. Moises Deustch ou Hospital do M'Boi Mirim, também em SP. Feito o atendimento inicial, a equipe decidiu encaminhá-la para o setor psiquiátrico, onde ficou internada por 1 semana. O espaço era bem vigiado, por equipe médica, segurança, muros altos e portas de ferro. Lá estavam pacientes com vários transtornos mentais.
Mas, diferente do primeiro atendimento, Emanuela se sentiu menos assistida tanto durante a internação quanto ao procurar o CAPS para continuar o tratamento. A paciente afirmou que não estava bem quando teve alta e no CAPS foi atendida com desconfiança pelo terapeuta, que afirmou que ela estava bem e não precisava de acompanhamento. Por isso, ela resolveu continuar seu tratamento clínico e psicológico de forma particular.
Para Emanuela, o preconceito ainda machuca quem sofre de algum transtorno psíquico. "Ninguém acredita que é uma doença e que precisamos de tratamento. Só quando o médico fala e, mesmo assim, é muito difícil, dizem que é frescura. Para o paciente é complicado entender que não é uma loucura, mas é um transtorno que tem tratamento".
Atendimento na rede pública
A RAPS (Rede de Atenção Psicossocial), do Ministério da Saúde, propõe um novo modelo de atenção em saúde mental, a partir do acesso e a promoção de direitos das pessoas. Além de mais acessível, a rede ainda tem como objetivo articular ações e serviços de saúde em diferentes níveis de complexidade.
A capital paulista conta com 93 CAPS que prestam serviços nas modalidades Álcool e Drogas (AD), Infantojuvenis (IJ) e Adultos. A Secretaria Municipal da Saúde esclarece que os CAPS atuam também nos momentos de crise, nos estados agudos da dependência e de intenso sofrimento psíquico.
Dos 93 CAPS da capital, 37 funcionam como CAPS III. Nesta modalidade, especificamente, há vagas de acolhimento integral, em que os pacientes podem permanecer para tratamento nos estados mais agudos da doença, por até 15 dias.
Quando necessária internação em regime hospitalar, dependendo do estado psíquico e físico do paciente, os CAPS podem solicitar vaga através da regulação.
Para um atendimento de emergência, principalmente em casos de surtos, os hospitais municipais da capital também recebem pacientes psiquiátricos. Nas unidades em que existe a especialidade e leitos disponíveis, se indicada a internação, o paciente pode ser admitido na enfermaria psiquiátrica.
Nos casos agudos, caso a unidade não tenha psiquiatria em seu corpo clínico, é feito o acolhimento e o pedido de avaliação ou internação através do sistema de gestão de vagas para uma unidade com a especialidade.
Atualmente, a cidade de São Paulo conta com leitos psiquiátricos em oito hospitais municipais: HM Professor Dr. Alípio Correa Netto, Dr. Benedicto Montenegro, Dr. Fernando Mauro Pires da Rocha (Campo Limpo), Carmem Prudente (Cidade Tiradentes), Dr. Moises Deustch (M'Boi Mirim), Vereador José Storopolli, Dr. Arthur Ribeiro de Saboya e o Tide Setubal.
A média de permanência em enfermaria de psiquiatria de hospital é, em média, de 15 dias, podendo variar de acordo com a evolução clínica e psicossocial de cada caso. O paciente recebe alta quando apresenta condições de dar continuidade ao acompanhamento na rede básica (CAPS e UBS).
Antônio Geraldo da Silva, presidente da ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria), explica que existem três casos em que o paciente precisa de uma internação clínica: quando coloca em risco a própria vida; quando coloca em risco a vida das outras pessoas ou quando coloca em risco o seu patrimônio.
Ele afirma ainda que a participação da família é de extrema importância e que a partir do apoio familiar é possível evitar um possível suicídio. Para Silva, é fundamental ficar ao lado do paciente, não deixá-lo sozinho e não abandoná-lo em nenhum momento sequer, acompanhar para um serviço de emergência médica ou ficar ao lado dele até a chegada do SAMU.
Estrutura deficitária
Para Rodrigo Dias, psiquiatra e pesquisador da FMUSP (Faculdade de Medicina da USP), que faz parte da equipe que pesquisa a medicina digital —que prevê a triagem, o diagnóstico e o tratamento para doenças mentais nas UBS—, a tentativa de suicídio é um grito de socorro.
De acordo com o especialista, a dificuldade de acesso a um tratamento adequando pacientes e familiares que sofrem com transtornos mentais é deficitária em todo o mundo e no Brasil não seria diferente. A estrutura de assistência em transtornos mentais é complexa, por requerer uma demanda de serviços diferenciados, o que eleva seu custo.
Um dos principais fatores para abandono ou até a busca pelo tratamento é o preconceito, o estigma em torno dos transtornos mentais em todos as áreas da sociedade e do paciente, gerando um isolamento agravado pela falta de aparelhos de reabilitação e uma necessidade de maior atenção na formação de prestadores de serviço de saúde (assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, psicólogos, médicos e gestores) para que serviços de atenção primária aumentem sua capacidade de diagnóstico e tratamento de transtornos mentais.
Os especialistas concordam que o acompanhamento não deve ser realizado apenas pelo paciente, mas também por toda a família. E para isso o melhor caminho é se orientar através de associações, como por exemplo, a Abrata (Associação Brasileira de Familiares e portadores de Transtornos Afetivos), que oferece informação e apoio.
Intervenção precoce
Uma das grandes questões que temos hoje na medicina é fazer a intervenção precoce. No SUS, os pacientes acolhidos pelos CAPS são atendidos por equipes multiprofissionais, compostas por psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais, que são responsáveis pela elaboração do Projeto Terapêutico Singular (PTS) de cada usuário, ou seja, específico para suas necessidades.
O atendimento pode se dar por acompanhamento psicológico individual, em grupo, atendimento psiquiátrico, entre outros, e o período de tratamento varia de acordo com a necessidade de cada paciente. Em muitos casos, após a melhora clínica, o paciente passa a ser atendido na UBS, por profissional capacitado, de acordo com o projeto terapêutico recomendado pela equipe do CAPS.
Para mudar um pouco o conceito de tratamento de transtornos mentais, aumentando a qualidade do atendimento de acordo com a demanda, o Ministério da Saúde tem o projeto piloto chamado Conecta SUS, que tem como principal objetivo coletar os dados dos pacientes, acompanhar o tratamento e disponibilizar as informações no sistema, o que contribuirá para a elaboração das propostas de ações estratégicas dos gestores (estadual e municipais).
Com isso, se um paciente tiver alguma crise em qualquer parte do Brasil, o médico do pronto-atendimento terá acesso a todo o histórico do paciente e poderá de maneira mais assertiva oferecer o tratamento adequado.
Modalidades de CAPS, segundo o Ministério da Saúde
- CAPS I: atendimento a todas as faixas etárias, para transtornos mentais graves e persistentes, inclusive pelo uso de substâncias psicoativas, atende cidades e ou regiões com pelo menos 15 mil habitantes.
- CAPS II: atendimento a todas as faixas etárias, para transtornos mentais graves e persistentes, inclusive pelo uso de substâncias psicoativas, atende cidades e ou regiões com pelo menos 70 mil habitantes.
- CAPS i: atendimento a crianças e adolescentes, para transtornos mentais graves e persistentes, inclusive pelo uso de substâncias psicoativas, atende cidades e ou regiões com pelo menos 70 mil habitantes.
- CAPS ad Álcool e Drogas: atendimento a todas faixas etárias, especializado em transtornos pelo uso de álcool e outras drogas, atende cidades e ou regiões com pelo menos 70 mil habitantes.
- CAPS III: atendimento com até 5 vagas de acolhimento noturno e observação; todas faixas etárias; transtornos mentais graves e persistentes inclusive pelo uso de substâncias psicoativas, atende cidades e ou regiões com pelo menos 150 mil habitantes.
- CAPS ad III Álcool e Drogas: atendimento e 8 a 12 vagas de acolhimento noturno e observação; funcionamento 24h; todas faixas etárias; transtornos pelo uso de álcool e outras drogas, atende cidades e ou regiões com pelo menos 150 mil habitantes.
Se o seu município não tem CAPS, procure a Atenção Básica
- No Brasil, a atenção básica é desenvolvida com alto grau de descentralização, capilaridade e próxima da vida das pessoas. Deve ser o contato preferencial dos usuários, a principal porta de entrada e o centro de comunicação com toda a Rede de Atenção à Saúde.
- Os Núcleos de Apoio à Saúde da Família foram criados pelo Ministério da Saúde em 2008 com o objetivo de apoiar a consolidação da Atenção Básica no Brasil, ampliando as ofertas de saúde na rede de serviços, assim como a resolutividade, a abrangência e o alvo das ações.
- A Estratégia Consultório na Rua foi instituída pela Política Nacional de Atenção Básica, em 2011, e visa ampliar o acesso da população em situação de rua aos serviços de saúde, ofertando, de maneira mais oportuna, atenção integral à saúde para esse grupo populacional, o qual se encontra em condições de vulnerabilidade e com os vínculos familiares interrompidos ou fragilizado.
Para saber se a sua cidade tem CAPS e os endereços deles, entre em contato com a prefeitura. Caso você esteja pensando em cometer suicídio, procure ajuda especializada como o CVV e os CAPS. O CVV (https://www.cvv.org.br/) funciona 24 horas por dia (inclusive aos feriados) pelo telefone 188, e também atende por e-mail, chat e pessoalmente e oferece apoio emocional e prevenção do suicídio. São mais de 120 postos de atendimento em todo o Brasil.
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