Grávida de gêmeos, ela seguiu gestação após um dos bebês morrer: "Horrível"
Grávida de gêmeos, a dona de casa Ana Carollina Garcia, 23, perdeu um dos bebês com 32 semanas de gestação devido à síndrome de transfusão feto-fetal. Enrico não estava recebendo sangue o suficiente. Mesmo com a morte do filho, Ana prosseguiu com a gravidez por mais três semanas. Os gêmeos nasceram de parto normal no dia 11 de junho de 2019.
"Eu e o Henrique terminamos nosso namoro em outubro de 2018, no mesmo mês em que engravidei sem saber. Tive alguns episódios de vômitos, mas achei que fosse por nervosismo, estava com alguns problemas pessoais e profissionais. Minha menstruação era desregulada, cheguei a suspeitar que estivesse grávida, fiz um teste, mas deu negativo.
O mal-estar continuou ao longo dos meses, minha barriga inchou e eu tive prisão de ventre. Fui ao hospital achando que fosse algo grave, o médico me examinou e pediu um ultrassom. A ultrassonografista colocou o aparelho na minha barriga e disse: 'São os meninos que estão pressionando seu intestino'. Ela achou que eu já soubesse que estava grávida.
Tive uma crise de riso e choro. Senti um misto de felicidade e choque quando a médica me disse que eu estava grávida de 26 para 27 semanas.
Ao sair do hospital, eu e minha mãe fomos no centro comprar os primeiros itens do enxoval. No caminho, mandei uma mensagem para o meu ex dizendo que precisava conversar com ele. Pelo meu tom, ele desconfiou da gravidez e confirmei.
No dia seguinte à descoberta, fui ao posto de saúde iniciar meu pré-natal. O médico me receitou algumas vitaminas, me deu as guias do ultrassom e dos exames de sangue e me encaminhou para o pré-natal de alto risco. Como fiz pelo SUS, demorei um mês para conseguir marcar tudo. Nesse tempo, minha barriga deu um boom e cresceu. Como a gravidez já estava avançada, aproveitei para montar o quarto, terminar de comprar as coisas e deixar tudo pronto.
No dia 14 de maio, fiz o segundo ultrassom, estava com 31 semanas. A médica disse que os gêmeos eram univitelinos, ou seja, estavam na mesma placenta, mas que tinham bolsas diferentes, e já estavam na posição cefálica.
No caminho para casa, mandei uma foto do exame para uma tia que é médica e que mora na Bolívia. Ela viu o ultrassom e notou uma diferença no peso e no tamanho dos bebês. O Enrico estava com 600 gramas a menos e com 1 cm a menos que o Bennício. Ela me orientou a perguntar para o obstetra o porquê dessa diferença.
Enrico estava recebendo menos sangue que o Bennício
No dia 15, fui para a consulta de pré-natal de alto risco. O médico olhou os exames e notou a diferença de peso. Ele disse que havia duas possibilidades para isso. A primeira seria o Enrico ser naturalmente mais magro que o irmão. E a segunda seria os meninos terem a síndrome de transfusão feto-fetal (entenda mais abaixo).
Ele me explicou que havia uma má distribuição dos vasos sanguíneos da placenta e que, provavelmente, o Enrico estava recebendo menos sangue que o Be.
O médico disse que se a síndrome fosse confirmada, as medidas adotadas seriam tomar uma injeção de corticoide e agendar a cesárea. Ele me pediu para fazer um ultrassom com doppler na semana seguinte para ter a confirmação ou não do diagnóstico. Saí da consulta despreocupada achando que estava tudo sob controle.
Quatro dias depois, o Enrico morreu dentro da minha barriga.
No dia 19, acordei bem e fui para um churrasco na casa da minha tia. De manhã até umas 13h, os bebês se mexeram normalmente. Por volta das 15h, percebi que eles estavam muito quietos e senti que havia algo de errado. Passava a mão na barriga e conversava com eles para estimular algum movimento, mas nada. Fiquei preocupada.
Quando cheguei em casa, senti um chute do Bennício. Ele estava do meu lado direito. E o Enrico, do esquerdo. Tinha mandado mensagem para a minha tia da Bolívia contando o que tinha acontecido. Ela me deu a dica de deitar do lado direito e cutucar a barriga do lado esquerdo para ver se o Enrico se mexia, mas ele não dava nenhum sinal. Ela me aconselhou a ir ao hospital. Me bateu um desespero, parecia que meu coração sabia que tinha perdido meu filho.
Médica foi bem direta ao me contar
Cheguei ao hospital desesperada falando para a recepcionista: 'Moça, eu preciso ser atendida, acho que meu bebê morreu'. A primeira médica que me atendeu disse que fazia poucas horas que o bebê tinha parado de se mexer e que provavelmente não era nada. Ela colocou o aparelho na minha barriga e não ouviu os batimentos cardíacos do Enrico, só do Be.
Um outro médico fez o ultrassom e só ouviu o coração do Be. Uma terceira médica repetiu o exame e foi bem direta comigo: 'Seu bebê morreu, o outro está bem, nós vamos cuidar dele e de você. Vou te dar um tempo e depois vou voltar para te dar orientações'. Ela saiu e minha mãe entrou.
Desabei, um buraco se abriu na minha frente. Fiquei em choque, não conseguia acreditar naquilo.
Tomei a primeira injeção de corticoide e fiquei internada de domingo para segunda. A ideia era que ficasse hospitalizada até o final da gestação, mas pedi para eles me liberarem para ir para casa pegar as minhas coisas. Eles só autorizaram depois que passei com a psicóloga, eles tinham receio que fizesse algum mal contra mim e o Bennício.
Ainda no hospital, liguei para o meu padrasto e pedi para ele e meu irmão tirarem tudo que me lembrasse que teria gêmeos: um dos carrinhos, uma das camas. Queria chegar em casa e ter a visão de que ia ter apenas um filho. Depois que o Enrico morreu, criei um bloqueio, não conseguia mais tocar na minha barriga e nem conversar com o Be.
Voltei para o hospital para ser internada, mas os médicos disseram que poderia ficar em casa em repouso. Passei na consulta com o obstetra que estava me acompanhando. Imaginei que já teria que fazer o parto, estava com 32 semanas de gestação quando o Enrico morreu.
O médico me explicou que poderia seguir com a gravidez mesmo com o óbito dele. Ele disse que isso não prejudicaria o irmão e que faria um acompanhamento semanal. Ele fez o ultrassom com doppler e confirmou que a causa da morte foi por causa da síndrome de transfusão feto-fetal.
As três semanas seguintes pareceram uma eternidade. A sensação de ter um filho morto dentro de mim era horrível. Não aceitava a morte dele. Era muito difícil falar sobre o assunto, ficava calada quando algum conhecido fazia algum comentário sobre os gêmeos. Não sabia como dizer que tinha dois bebês na barriga, mas só um com vida.
Uma semana depois da morte do Enrico seria o chá de bebê. Cancelei, mas um amigo fotógrafo me convenceu a fazer um ensaio de recordação e para homenagear o Enrico. Peguei um balão com o nome dele simbolizando que ele voaria alto para longe de mim, iria para o céu, ficar junto com Deus.
Nesse dia eu senti como se eu estivesse o libertando e aceitei a perda dele. Depois do ensaio, voltei a me reconectar com o Bennício.
No dia 10 de junho, minha bolsa rompeu. No caminho para o hospital, já comecei a sentir as primeiras contrações. Cheguei lá por volta das 22h, fizeram o exame de toque e estava com 3 cm de dilatação. Queria muito fazer a cesárea, morria de medo da dor do parto normal. Fui informada de que uma das plantonistas estava em uma cesárea de emergência e que teria que aguardar.
Nesse tempo, caminhei, tomei um banho quente e as contrações ficaram mais fortes. Meu trabalho de parto evoluiu muito rápido, uma hora depois já estava com 8 cm. Passado um tempo, a médica que estava fazendo a cesárea terminou o parto e foi me examinar, já tinha dilatado completamente, o Bennício já estava corando. Fiz duas forças e na segunda o Be nasceu no dia 11 de junho, a 1h07 da madrugada. Foi a melhor sensação do mundo ter o Be no meu colo.
Nunca vi o Enrico, não tive coragem de olhar para ele
Depois o pegaram para limpá-lo e eu voltei a fazer força para o Enrico nascer. Ele nasceu alguns minutos depois.
Fizeram todos os procedimentos com ele e o colocaram em um bercinho ao lado da minha cama, mas não tive coragem de olhar para ele. Nunca vi o Enrico, não queria lembrar do meu filho morto, queria ter a imagem dele vivo dentro da minha barriga.
O Bennício nasceu com 2,2 kg e 45 cm. O Enrico com 1,2 kg e 40 cm.
No dia seguinte, a família do meu ex providenciou o velório e o enterro do Enrico. Minha sogra disse que ele era idêntico ao irmão. Ela me contou que colocou uma roupinha branca nele e que ele foi enterrado lindo.
Me arrependo todos os dias de não ter olhado para o Enrico, de não tê-lo pegado no colo, abraçado, dito que o amava. Deus e o Bennício me deram força para não entrar em uma depressão.
Pensava: 'Deus conhece a minha dor, ele também perdeu um filho, Jesus. Ele vai me consolar e vai reescrever minha história'.
Um mês após o parto, eu e o Henrique reatamos e ficamos noivos, temos planos de casar no ano que vem. O Bennício está com 10 meses, ele é o meu fôlego de vida. É por ele e para ele que levanto e enfrento tudo todos os dias. Toda vez que me perguntam quantos filhos eu tenho, eu respondo que dois. Minha missão é fazer o Enrico ser sempre lembrado e ser a melhor mãe do mundo para o Bennício".
A síndrome de transfusão feto-fetal
1) O que é a síndrome de transfusão feto-fetal?
É uma complicação que acontece somente nas gestações gemelares em que os dois bebês compartilham da mesma placenta. Nessas gestações, a circulação de ambos os bebês acontece na placenta, que é única.
Devido a esse compartilhamento, ocorrem naturalmente trocas de sangue, entre as duas circulações, por meio de vasos da placenta que ligam uma circulação na outra. Em cerca de 10% dessas gestações, a troca é desigual, asim um dos bebês (feto doador) acaba transferindo mais sangue para o outro (feto receptor), do que a quantidade que recebe de volta. Esse desequilíbrio é algo que não conseguimos interferir ou prevenir.
É importante destacar que a grande maioria das gestações gemelares apresenta duas placentas e, nessas situações, a síndrome de transfusão feto-fetal não acontece.
2) Como a síndrome interfere no peso dos bebês?
Durante a gravidez, o feto depende fundamentalmente da placenta para o seu crescimento, ganho de peso, desenvolvimento e amadurecimento. Em gestações gemelares, em que ambos os bebês dependem da mesma placenta, o compartilhamento da placenta pode ser desigual, de forma a favorecer um bebê em relação ao outro. Por esse motivo, diferenças de peso acontecem frequentemente, apesar de os bebês serem geneticamente idênticos.
Geralmente, a síndrome de transfusão feto-fetal acontece ao redor de 19 semanas de gestação, mas, em alguns casos, ela pode estar presente já a partir de 16 semanas. Ou seja, é uma doença que acontece numa fase bastante precoce da gravidez.
Com a transferência de sangue desigual que acontece na síndrome, o feto receptor acumula mais líquido amniótico à sua volta e, em casos avançados, fica com o "coração cansado". Já o feto doador fica com pouco líquido amniótico à sua volta e pode ter sua circulação prejudicada devido à menor quantidade de sangue.
3) Como é feito o diagnóstico?
O diagnóstico é estabelecido por exame de ultrassom realizado durante a gravidez. Devido à chance de desenvolvimento da transfusão feto-fetal, recomenda-se que gestações de gêmeos que estejam em uma única placenta sejam examinadas de duas em duas semanas, a partir de 16 semanas. Essa quantidade de exames ultrassonográficos pode parecer um exagero, mas não é, visto que, quando a síndrome acontece, ela pode evoluir para as formas graves em um curto intervalo de tempo.
4) Quais os tratamentos para a síndrome?
A síndrome de transfusão feto-fetal, quando grave e não tratada, leva ao nascimento muito prematuro dos bebês e altíssimas taxas de óbito (acima de 90%). Com objetivo de mudar essa história natural e permitir que esses bebês sobrevivam, existem basicamente duas técnicas de tratamento.
A mais antiga é chamada de "amniodrenagem" e se resume em colocar uma agulha no interior do útero para esvaziar o excesso de líquido amniótico que se acumula ao redor do feto receptor, diminuindo o tamanho do útero e as chances de ocorrer o parto prematuro. Dessa forma, consegue-se adiar o parto e evitar que os nascimentos aconteçam numa fase extrema da prematuridade.
Atualmente, preferimos o tratamento por meio da fetoscopia, que é considerada uma cirurgia intrauterina. Nessa cirurgia, um endoscópio é introduzido no interior do útero da mãe para visualizar os vasos da placenta que comunicam as circulações dos dois bebês.
Através do mesmo endoscópio, aplica-se o laser para "queimar" esses vasos e interromper a troca de sangue entre os bebês. A vantagem do método é que, além de adiar o parto e evitar a prematuridade, observamos melhores resultados neurológicos nas crianças tratadas por ele. Mas trata-se de um procedimento mais sofisticado, que requer muito mais treinamento, tecnologia e, portanto, envolve um custo maior. Ele não está disponível na maioria das maternidades.
5) Há dados de quantos bebês são atingidos pela síndrome no Brasil?
Não há estatísticas oficiais brasileiras, mas podemos afirmar que, a grosso modo, ocorre um caso de transfusão feto fetal a cada 3.000 gestações.
6) A síndrome pode levar à morte?
Sim, devido ao grave desequilíbrio circulatório que acontece quando a síndrome não é tratada, tanto no bebê doador, como no receptor, podem evoluir para óbito durante a gestação.
7) É possível levar a gestação adiante mesmo com a morte de um dos gêmeos?
Infelizmente, diante do óbito inesperado de um dos bebês de um par de gêmeos que compartilham a placenta, há risco de cerca de 15% de que o outro feto venha a óbito também. Geralmente, a perda do segundo bebê ocorre pouco tempo após o óbito do irmão.
Nos demais casos, a gravidez segue seu curso com o feto sobrevivente. Porém, estudos após o nascimento, revelam que, cerca de um em cada quatro desses gemelares que sobrevivem ao óbito do irmão, podem apresentar alguma alteração neurológica.
Fonte: Adolfo Liao, obstetra, especialista em medicina fetal, coordenador da maternidade do Hospital Vila Santa Catarina (SP) e da Sociedade Beneficente Israelita Albert Einstein (SP).
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