Luto carregado de culpa por estar vivo pode ser "síndrome do sobrevivente"
A vida da psicóloga Fabiana de Lima Freitas, 42, foi marcada por duas grandes perdas no intervalo de poucos meses. Em julho de 2019, ela viu seu marido morrer de câncer. "Apesar de todos os cuidados que dediquei a ele, e sempre com muito amor, ainda assim carreguei sentimentos de culpa, por achar que de repente podia ter feito mais, ou que podia estar mais atenta antes, para que não chegasse ao ponto que chegou", lembra.
No início de 2020, quando a dor parecia estar mais amena, o mundo começava a viver uma pandemia, que acabou por vitimar seu pai, o comerciante Ilson Boaventura de Lima, 68. O sentimento de tristeza misturado com culpa voltou a habitar seu dia a dia. "Comecei a me perguntar porque não levamos ele antes para o hospital. Esse pensamento era muito angustiante", relata.
Luto carregado de culpa
A situação de Fabiana pode estar relacionada a síndrome do sobrevivente. Segundo Bianca Machado, psicóloga clínica e organizacional, apesar de essa síndrome não ser formalmente reconhecida e catalogada no DSM5 (5º Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), trata-se do luto carregado pela culpa de continuar existindo depois de se perder alguém.
Essa síndrome foi descrita pela primeira vez na década de 1960 depois que alguns especialistas observaram o comportamento de sobreviventes do Holocausto e seus descendentes.
Geralmente, ela se manifesta em sobreviventes de grandes tragédias, mas pode surgir após lutos isolados. "O sentimento existente é o de culpa pela morte dos outros ou também pelo fato de ter sobrevivido", diz a especialista.
Daniel Martins de Barros, psiquiatra do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (SP), esclarece que a síndrome do sobrevivente não é uma condição do ponto de vista clínico. "Ela não é uma doença que precisa ser tratada e, sim, uma vivência de algumas pessoas que não é exatamente patológica. O que precisa ser feito é prestar atenção e entender qual é a dinâmica, as razões dela estar com aquela culpa. Isso é comum de acontecer, as pessoas sentirem que não mereciam estarem vivas no lugar de quem partiu. Se essa sensação crescer, pode evoluir para um luto complicado e chegar a uma depressão", diz Barros.
A angústia de quem vive essa síndrome pode trazer também insônia, perturbações, dor de cabeça, crises compulsivas de choro e alterações bruscas de humor.
Machado adverte que esses aspectos podem deixar a experiência do luto muito mais sofrida e dolorida, tornando-se importante dar atenção maior aos enlutados diante desses sintomas: relatos relacionados à culpa e falhas no cuidado com a pessoa falecida, desejo de ter ido no lugar dessa pessoa, enfoque nos pontos negativos e de possíveis negligências, e ainda ideação suicida.
Em tempos de covid-19
De acordo com Machado, a vivência do luto se encontra atualmente em um cenário desafiador. "Diante do adoecimento em decorrência da covid-19 temos outros complicadores, como a impossibilidade de visitas ao ente querido hospitalizado, caixões lacrados, proibição de despedidas tradicionais como velórios e reuniões religiosas", destaca.
Márcia Torres, assistente social e autora do livro "Algumas Histórias Sobre o Luto", relata que a pandemia gera sentimentos bem peculiares em quem viu seu familiar partir. "Tem algumas pessoas que ficam mexidas considerando que se ficassem totalmente isoladas a morte na família não aconteceria, e outras revoltadas com aquelas que não obedeceram o isolamento social", diz ela.
Torres coordena um grupo de apoio a enlutados e o projeto "A Vida Não Para", no crematório e cemitério da Penitência, ambos no Rio de Janeiro.
Fabiana sabe descrever bem todo esse processo. "A pior sensação é você perder alguém que ama e nem sequer poder ver, fazer um velório. Passado todo este momento terrível, você ainda precisa lidar com toda a suas emoções e dúvidas, como 'por que não levamos ele antes para o hospital?'", questiona.
Ela afirma que o apoio social (mesmo sem contato físico) é de extrema importância nesse momento. "Se colocar disponível para essa pessoa, ajudá-la a decidir como quer fazer esse processo de despedida, readaptação e ainda permitir que essa pessoa expresse livremente seus sentimentos e pensamentos será de grande utilidade", finaliza Machado.
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