Estudo: por que o sistema público de saúde deve prover suporte pré-gravidez
O cuidado pré-concepcional consiste em um conjunto de medidas adotadas no período que antecede a concepção com o objetivo de prevenir, principalmente, a mortalidade materna e infantil. Apesar de preconizado pela Organização Mundial da Saúde - e de estar previsto na Lei de Planejamento Familiar -, é um tratamento pouco ofertado nos serviços de atenção primária à saúde e desconhecido pela grande maioria dos casais em idade fértil.
Esses são alguns dos resultados da tese de doutorado Efeito de uma intervenção educativa no conhecimento, na atitude e na realização de ações do cuidado pré-concepcional entre trabalhadores de saúde da atenção primária, desenvolvida pela enfermeira Natália de Castro Nascimento, da EE (Escola de Enfermagem) da USP.
O trabalho, realizado com médicos, enfermeiros e farmacêuticos em oito Unidades Básicas de Saúde da zona leste de São Paulo teve o objetivo de avaliar se uma intervenção educativa sobre o cuidado pré-concepcional voltada aos trabalhadores da área da saúde poderia ampliar a oferta do serviço.
"Apesar de o conhecimento sobre os cuidados pré-concepcionais terem aumentado, isso não garantiu um maior oferecimento aos pacientes", relata Natalia. A pesquisadora também entrevistou mulheres em idade fértil, entre 18 e 49 anos, usuárias das UBS. "A pesquisa mostrou que, em geral, a população não conhece e não sabe da necessidade de se preparar para uma gravidez", diz a pesquisadora ao Jornal da USP.
A Organização Mundial da Saúde define o cuidado pré-concepcional como "a prestação de intervenções biomédicas, comportamentais e sociais de saúde no período antes da concepção, cujo objetivo é melhorar o estado de saúde e reduzir comportamentos e fatores que contribuem para maus resultados de saúde materna e infantil". No Brasil, o Ministério da Saúde propõe que o cuidado pré-concepcional dê atenção à alimentação e nutrição, à prevenção do uso de drogas lícitas e ilícitas, à prevenção e controle de doenças, além da cessação dos métodos contraceptivos e do tratamento de infertilidade, entre outras coisas.
"Vimos que o serviço de atenção primária é muito voltado para a contracepção ou para uma gravidez em curso", afirma Ana Luiza Vilela Borges, professora da Escola de Enfermagem (EE) da USP e orientadora da Natália. "Se uma mulher chega com suspeita de gravidez, ela faz o teste rápido e, em caso positivo, começa imediatamente o pré-natal. Mas se um casal está planejando engravidar, encontra um serviço muito precarizado."
Metodologias mistas
Natália vem trabalhando no tema desde a iniciação científica, mas foi no mestrado que ela identificou que o cuidado pré-concepcional ainda precisava de muitos ajustes para ser oferecido no serviço público de saúde. "Poucas são as mulheres que se preparam para engravidar; as que se planejam têm alto nível de escolaridade e pertencem a classes sociais mais altas", explica a pesquisadora.
Por ser um cuidado de promoção de saúde e prevenção de doenças, ele deve ser uma realidade no Sistema Único de Saúde e oferecido para todas as mulheres, ainda mais em um contexto de grande vulnerabilidade."
Por esse motivo, Natália desenvolveu sua pesquisa em oito Unidades Básicas de Saúde da Zona Leste, no Itaim Paulista, em São Paulo. Essa é uma região que apresenta um menor número de empregos formais, maiores taxas de desemprego, altas taxas de mortalidade materna e infantil, de gravidez na adolescência e baixos índices de desenvolvimento humano. De acordo com a pesquisadora, optou-se por abordar o conhecimento dos profissionais de saúde como um dos elementos fundamentais para ofertar esse cuidado.
"A minha hipótese era a de que uma intervenção educativa sobre o cuidado pré-concepcional para trabalhadores da atenção primária poderia aumentar o nível de conhecimento deles e ampliar a realização de algumas atividades pertinentes a esse cuidado."
Para mensurar o conhecimento desses profissionais sobre o assunto — e o que eles ofertavam aos pacientes —, Natália entregou um formulário para ser respondido e, depois, realizou a intervenção educativa. "Fiz uma apresentação sobre o que é o cuidado pré-concepcional, quais eram os elementos que constituíam esses cuidados e como eles precisavam ser disponibilizados", esclarece.
No passo seguinte, a pesquisadora fez um grupo focal com o objetivo de entender os entraves do processo. "Reapliquei o formulário um mês e três meses após a intervenção para comparar os dados nesses três momentos."
Além disso, Natália entrevistou mulheres de 18 a 49 anos, usuárias das UBS, antes e após as intervenções.
Eu queria saber se elas já tinham ouvido falar sobre o cuidado pré-concepcional, além de observar se elas haviam recebido orientações por parte dos médicos e enfermeiros", esclarece a pesquisadora.
O resultado, segundo ela, já era esperado. Não houve o aumento dessa oferta pelos profissionais, nem uma maior procura das mulheres pelo serviço. As barreiras descritas pelos empregados vão desde questões culturais da própria comunidade (como a pouca participação das usuárias em grupos educativos e o medo de serem julgadas) até organizacionais (não haver agenda destinada a esse cuidado, tendo em vista a necessidade de dar conta das prioridades elencadas nos protocolos de médicos e enfermeiros da atenção primária, como o próprio pré-natal).
"O que me surpreendeu foi essa resistência em oferecer o cuidado pré-concepcional, como se isso pudesse estimular uma mulher que vive em condições de vulnerabilidade a ter mais filhos", detalha Natália. "Estamos falando do respeito à intenção reprodutiva da mulher: se ela não quer ter mais filhos, entram os métodos contraceptivos de alta eficácia; se ela quer engravidar, entra o cuidado pré-concepcional", continua a pesquisadora, enfatizando que o foco está em atender a uma demanda e não influenciar escolhas.
Se essa mulher está com baixo peso, tem alguma deficiência de vitamina, se é hipertensa, diabética, ou possui alguma infecção sexualmente transmissível, isso precisa ser visto antes que ela engravide, evitando complicações gestacionais", completa Ana Luiza.
Com os farmacêuticos das UBS, Natália observou que não houve um aumento do consumo de ácido fólico por parte dessas mulheres, mesmo após intervenção educacional.
Legado
A conclusão principal do estudo é que a população precisa estar ciente da existência desse serviço e que ele traz benefícios a curto, médio e longo prazos. "O Sistema Único de Saúde deve incorporar essas medidas para que elas sejam universais e democráticas", enfatiza Natália. Já Ana Luiza observa um outro resultado: os profissionais estão bastante sobrecarregados.
"Na estratégia saúde da família, a equipe tem muito volume de trabalho porque atende muitas pessoas em situação vulnerável. Por isso eles focam no diagnóstico e no tratamento de doenças, além de questões de toda a vida familiar."
Maria Inês Rosselli Puccia, consultora em saúde materno-infantil e integrante do Grupo Técnico de Saúde da Mulher do Conselho Regional de Enfermagem (Coren) de São Paulo, disse ao Jornal da USP que o trabalho da Natália quebra um paradigma já fixo no campo de atuação dos profissionais de saúde. "Adotamos o modelo biomédico centrado na cura, na abordagem da doença baseada na queixa-conduta", explica. "A pessoa vem até nós com uma demanda e somos muito mecanicistas, deixando de lado as condutas sensibilizadoras", diz a enfermeira.
Por esses motivos, Maria Inês diz que é necessário também olhar para a condição psicoemocional dessa mulher. "Precisamos entender qual é o real significado de uma gravidez, porque ela precisa estar plena e muito segura do que quer", enfatiza. Alguns fatores podem interferir nesse desejo, de acordo com a enfermeira, como o medo de ter outra perda gestacional. "O cuidado visa à ressignificação de experiências anteriores para que ela se liberte dos medos, das angústias, das ansiedades que podem surgir devido a um sofrimento anterior", completa.
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