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Equilíbrio

Cuidar da mente para uma vida mais harmônica


Após trauma na terapia, negros buscam psicólogos da mesma cor

Getty Images
Imagem: Getty Images

Nairim Bernardo

Colaboração para VivaBem

09/10/2020 04h00

Resumo da notícia

  • Ao se consultar com psicólogos brancos, muitas pessoas negras (pretas e pardas) relatam ter suas dores minimizadas ou desconsideradas
  • Psicólogos raramente recebem formação acadêmica em questões étnico-raciais, o que pode causar efeitos negativos na saúde mental dos pacientes
  • Para procurar um atendimento psicológico pela primeira vez ou mudar de terapeuta, a dica é que a pessoa estabeleça quais são seus critérios pessoais

Thaynara Floriano foi demitida justamente no dia em que o museu onde trabalhava promovia uma formação para mulheres negras na ciência, com direito a exibição de "Estrelas além do tempo", filme sobre cientistas negras que ajudaram a Nasa a levar pela primeira vez um ser humano ao espaço. Além disso, teve apenas 15 minutos para deixar o local. Teoricamente, levar a situação para a terapia iria ajudar, mas só piorou. "Mexeu muito comigo, mas a psicóloga lidou com isso como se não fosse uma questão importante de raça. Tive mais crises de ansiedade pelo tratamento que recebi dela do que com a demissão em si".

Ao se consultar com psicólogos brancos, muitas pessoas negras (pretas e pardas) relatam ter suas dores minimizadas ou desconsideradas e se tornam vítimas do racismo em um ambiente que deveria acolhê-las. No caso de Floriano, ela só voltou a fazer terapia quando uma amiga a apresentou a uma profissional negra.

Psicólogos raramente recebem formação acadêmica em questões étnico-raciais, o que pode causar um efeito bastante negativo na saúde mental de seus pacientes. É o que conta a psicóloga Elânia Francisca, mestre em educação sexual e colunista do VivaBem. Durante a graduação, ela não teve contato com os estudos de importantes pesquisadores negros na área, como Frantz Fanon, Neusa Santos Souza e Virgínia Leone Bicudo. Só pôde discutir essas questões fora da sala de aula, em iniciativas organizadas pelo movimento negro.

"Uma vez atendi uma criança negra que queria ter o cabelo liso. Levei esse caso para a minha professora e ela sugeriu que criássemos estratégias para sugerir um alisante para a menina. Isso foi um olhar racista sobre o sofrimento da pessoa negra", relembra Francisca.

Segundo ela, o racismo pode se apresentar no comportamento de um psicólogo quando:

  • Invisibiliza o sofrimento de seu paciente, ou seja, a pessoa diz que a discriminação racial a afeta de determinado modo, mas o psicólogo responde que a questão não está relacionada a nenhum preconceito, mas sim a algum trauma da infância, por exemplo.
  • Ignora as estruturas sociais e raciais e tende a atribuir os sofrimentos emocionais dos pacientes a questões individuais. Assim, desconsideram que a situação é similar à vida de outras pessoas da mesma raça.

Se o racismo é estrutural e estruturante, ele vai ter um efeito sobre o corpo das pessoas. Nos brancos fortalece a autoestima, nas pessoas negras tem o efeito contrário"
Elânia Francisca, psicóloga e mestre em educação sexual

"No consultório, não achavam que eu era o psicólogo"

Na esteira da falta de identificação, profissionais de psicologia negros estão criando clínicas e rodas terapêuticas exclusivas para a população negra. É o caso de Diego dos Santos Barbosa, cofundador da Clínica Preta.

"Eu não enxergava a psicologia clínica como uma possibilidade para mim, e a maioria dos psicólogos negros que conheço também não, eles estão na área da psicologia social", diz Barbosa. Neste ramo, o foco é a relação do indivíduo com a sociedade, por isso os profissionais da área estão mais presentes em ONGs e no trabalho com grupos marginalizados. A Clínica Preta, segundo ele, foi criada para ser um espaço acolhedor tanto para pacientes quanto para psicólogos.

Quando eu trabalhava na clínica da faculdade, as pessoas marcavam a consulta comigo, surpreendiam-se por eu ser negro e não continuavam. Agora, até pelo nome da clínica, as pessoas já sabem que sou negro
Diego dos Santos Barbosa, cofundador da Clínica Preta

Barbosa enfatiza que propor um enfoque em pessoas negras não é desconsiderar a capacidade de profissionais não negros de atendê-las. Mas, devido ao racismo estrutural e ao fato de as pessoas brancas dificilmente se virem como pessoas racializadas e detentoras de privilégios, geralmente a tendência é minimizar preconceitos e não ter empatia com negros.

A estudante Thaynara Floriano deixou de se consultar com uma psicóloga branca, após ela minimizar o aspecto da raça em sua demissão - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
A estudante Thaynara Floriano deixou de se consultar com uma psicóloga branca, após ela minimizar o aspecto da raça em sua demissão
Imagem: Arquivo Pessoal

Como nessa relação o paciente é a parte mais vulnerável, ele tende a moldar sua percepção à do psicólogo. Com isso, ele passa por um processo de "embranquecimento forçado", ou seja, ignora a estrutura social e racial como gerador de seus traumas.

Para Francisca, quando a pessoa negra busca a psicoterapia com outra pessoa negra, está em busca de uma identificação. Segundo ela, alguns psicólogos brancos ridicularizam essa procura e chegam a equiparar à busca de pacientes veganos por terapeutas com o mesmo estilo de vida e dieta alimentar.

"As pessoas negras às vezes passam por tantas situações racistas que, quando estão diante de uma pessoa branca, percebem-se em uma relação de poder em que elas são inferiores. Elas buscam uma relação em que se sintam à vontade", explica a psicóloga, que também atende pacientes brancos.

"Parecia que o racismo só estava na minha cabeça"

Muitas pessoas negras ainda não consideram necessário cuidar de sua saúde mental, e a falta de profissionais capacitados dificulta ainda mais seu acolhimento.

"Parece supérfluo pensar em saúde mental e qualidade de vida quando ainda precisamos lutar por questões básicas de sobrevivência", diz Barbosa, referindo-se aos sofrimentos da população negra com a violência policial, dificuldade de mobilidade social e os índices de suicídio. Segundo dados do Ministério da Saúde, enquanto a taxa de mortalidade por suicídio entre jovens e adolescentes brancos de 10 a 29 anos permaneceu estável de 2012 a 2016, entre os negros aumentou 12%.

Diego dos Santos Barbosa, psicólogo e um dos fundadores da Clínica Preta - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Diego dos Santos Barbosa, psicólogo e um dos fundadores da Clínica Preta
Imagem: Arquivo Pessoal

Consultar-se com profissionais negros foi determinante para o estudante de turismo Victor Silva, 18. "Sou negro de pele clara e, por muito tempo, isso foi uma questão. Eu ficava muito confuso. Quando eu comentava de situações racistas que sofri, os psicólogos brancos diziam que eu não era negro ou que aquilo não era racismo". Ele conta que chegava a exercer uma função pedagógica com seus terapeutas: pesquisava sozinho sobre o assunto e enviava conteúdos para os profissionais.

Parecia que o racismo só estava na minha cabeça. Uma vez falei que fui seguido numa farmácia e a psicóloga disse que isso era normal, que é assim que os seguranças agem
Victor Silva, estudante

Depois de passar por três terapeutas brancos, ele resolveu procurar especialistas negros. "Na primeira consulta já falei que mudei por conta disso e me senti muito acolhido. Os psicólogos negros me entendiam, sabiam o que eu estava passando, que aquilo não era algo da minha cabeça, e me ajudaram a lidar com essas questões".

Para procurar um atendimento psicológico pela primeira vez ou mudar de terapeuta, a dica é que a pessoa estabeleça quais são seus critérios pessoais, por exemplo: cobertura do plano de saúde, preço, localização, gênero, raça, área de pesquisa. Depois, é possível conseguir indicações com amigos ou em grupos específicos nas redes sociais. Caso não se sinta confortável na primeira consulta ou em qualquer outro momento, o paciente deve procurar outro profissional e, se julgar necessário, mudar seus critérios.