Pai se dedica a cuidar de filho que ficou 45 minutos clinicamente morto
Felipe de Campos, 15, se afogou em uma praia quando tinha 11 anos e ficou 45 minutos clinicamente morto, mas foi ressuscitado por um bombeiro e encaminhado ao hospital. A falta de oxigenação causou uma paralisia cerebral severa.
Segundo os médicos, o garoto, apelidado pela família de Feu, poderia morrer a qualquer momento ou, se sobrevivesse, teria uma vida vegetativa e seria apenas um corpo ligado a aparelhos. Contrariando todos os prognósticos, Fauzer Leandro, 44, pai do menino, luta e se dedica incansavelmente pela recuperação do filho. Em quatro anos de reabilitação, Feu já respira sozinho, se mexe, tem voz audível e se alimenta pela boca. A seguir, Fauzer conta a história deles:
"Antes do acidente, o Feu tinha uma vida normal, como qualquer garoto de 11 anos: ia para a escola, brincava, jogava videogame. No feriado do dia 21 de abril de 2016, Dia de Tiradentes, o Feu foi para a praia com uma vizinha do condomínio onde eu morava. Ela ia fazer um bate-volta para Ubatuba (litoral norte de São Paulo) com o filho dela, o marido e mais um outro menino do prédio.
Segundo fiquei sabendo depois, as três crianças entraram na água e a maré os puxou. O filho da vizinha conseguiu sair a tempo e procurou ajuda. Não havia salva-vidas na praia. Dois banhistas entraram no mar e conseguiram tirar o outro menino, que disse que um amigo dele ainda estava lá. Os banhistas pegaram um bote e começaram a procurar o Feu, encontraram o corpo dele boiando, o resgataram e o levaram para a areia.
Meu filho ficou 45 minutos clinicamente morto, não tinha pulsação nem batimentos cardíacos. Ele foi reanimado por um bombeiro que estava passando o feriado na praia. Ao ser ressuscitado, ele foi intubado e levado para o hospital de ambulância onde sofreu duas paradas cardíacas no caminho.
A vizinha que estava na praia ligou para a mãe do outro menino e contou do acidente. Essa minha vizinha foi ao meu apartamento e me disse que o Feu estava no hospital. Nós fomos para Ubatuba e no caminho liguei para a vizinha para saber o que, de fato, havia acontecido.
Já fui preparado para o pior e perguntei: 'Meu filho está vivo ou morto?'. Ela disse que ele tinha se afogado, que estava em coma induzido e que os médicos não sabiam o que ia acontecer.
Ao chegar lá, perguntei para a médica qual era o estado do Feu. Ela disse que era gravíssimo e que ele poderia morrer a qualquer momento. Respirei fundo, olhei para ela e perguntei: 'Espero ou há algo que eu possa fazer?'. Ela disse que era necessário encontrar uma vaga na UTI em outro hospital.
Médicos disseram que Feu vegetaria e seria corpo ligado a aparelhos
No dia seguinte, o Feu foi para a UTI, foi submetido a vários exames e examinado por um neurologista. O médico disse que ele sofreu um afogamento grau 6 e que a falta de oxigenação causou uma paralisia cerebral severa e irreversível.
Segundo o médico, se meu filho viesse a sobreviver após as primeiras 72 horas, ele teria vida vegetativa para sempre, os dias dele seriam em cima de uma cama, atrofiado e sendo dependente de aparelhos para respirar e para se alimentar.
De acordo com ele, as sequelas do afogamento grau 6 eram incuráveis e irreversíveis. O ortopedista que estava com ele acrescentou: 'Ele será apenas um corpo ligado a aparelhos'.
Ao receber essa notícia, passava dia e noite procurando histórias de pessoas que venceram a lesão cerebral e que voltaram a ter uma vida quase normal com algumas limitações. Vi casos extraordinários em que a reversão levou em média dez anos.
Fui chamado de louco por buscar uma cura supostamente inexistente, mas tive que criar na minha mente um Feu já reabilitado, eu o tratava e o trato como se estivesse bem.
Discordei de todos os prognósticos negativos e entrei num universo diferente, coisa de pai doido que quer o filho bem de qualquer forma.
Sabia que seria uma longa jornada, e que tudo o que eu precisaria era crer e ter persistência.
Ainda na UTI, eu pedi à médica-chefe que o Feu fizesse fisioterapia mesmo contrariando as recomendações do ortopedista da equipe. Ela tentou argumentar, mas disse que preferia que, se meu filho viesse a falecer, que fosse tentando do que eu aceitando e não fazendo nada por ele.
Tinha lido o caso de um rapaz com lesão no cérebro que teve uma boa evolução ao fazer fisioterapia já desde os primeiros dias do acidente.
Meu filho ficou internado por 90 dias e saiu do hospital respirando sozinho
Em oito dias, o Feu saiu do coma. Ao total, ele ficou 90 dias internado, 45 na UTI e 45 na enfermaria. Eu e a minha ex-esposa nos revezávamos e não o deixávamos sozinho em nenhum momento. Já no hospital, a recuperação dele foi positiva, ele saiu do respirador e tirou a traqueostomia. Ele foi para casa respirando sozinho.
Antes do acidente, o Feu morava com a mãe. Após a alta, ele ficou um mês com ela, mas em comum acordo, nós decidimos que ele ficaria comigo pela minha flexibilidade em trabalhar de casa e por estar focado na busca de tratamentos complementares.
Montei um quarto hospitalar para o Feu em casa. No início, tinha o suporte de 11 profissionais de saúde. O Feu fazia e ainda faz fisioterapia, terapia ocupacional, fonoaudiologia, acompanhamento com pedagogo, clínico geral e neurologista. Paralelo às terapias tradicionais, ele faz tratamentos complementares com ômega 3, cannabis, câmara hiperbárica e transplante de células-tronco.
Todo o tratamento é particular e com especialistas. Em média, gasto de R$ 10 mil a R$ 12 mil por mês, fora os custos avulsos, que chegam a 20 mil. Além de trabalhar como webdesigner, tenho um bazar online, faço rifas, eventos e vaquinhas na internet para arrecadar dinheiro e custear os gastos.
Em quatro anos de reabilitação, a evolução do meu filho está bem adiantada, segundo o neurologista, e tem surpreendido muita gente. Ele não está mais em estado vegetativo, se comunica com voz audível, gritos e choros. Tem movimentos curtos, voluntários e involuntários no corpo, e se alimenta pela boca.
Ao me comunicar com ele, falo como se ele tivesse plena consciência e pudesse me responder. Quando vou dar comida, por exemplo, peço para ele abrir a boca e mastigar devagar. Nas minhas pesquisas, li relatos de que algumas pessoas recuperadas de lesão cerebral conseguiam ouvir e sentir tudo o que acontecia ao redor delas.
O cuidado com o Feu exige muita paciência porque a resposta dele é bem lenta. Não olho para ele com dó e tento fazê-lo compreender que a recuperação também depende dele.
Desde o acidente, vivo pela reabilitação do meu filho. Alguns psicólogos já me perguntaram o que vou fazer se ele continuar assim para sempre. Respondi que vou continuar cuidando dele do mesmo jeito.
Hoje o Feu está com 15 anos. Além das terapias, procuro oferecer uma vida dentro do normal com momentos de lazer. Eu o levo ao shopping, ao parque, a eventos. Nós participamos de corridas de rua com triciclo adaptado. Mostro nossa rotina na página dele no Facebook.
Alguns familiares me culparam pelo que aconteceu
Algumas pessoas já me perguntaram se me arrependo de tê-lo deixado viajar. Não me arrependo por que jamais imaginei que isso poderia acontecer. Alguns familiares chegaram a me culpar pelo que aconteceu, mas nunca me senti culpado.
Diante de uma situação como essa que ocorreu com o meu filho, o melhor a se fazer é encontrar uma solução. Culpar alguém, se vingar, querer fazer justiça ou algo do tipo não trará resultados.
Direcionei meu foco para a melhora dele, não canalizo essas energias e perdoei os que me culparam para que pudesse ficar em paz e cumprir minha missão com o Feu.
Se continuarmos por esse caminho, a perspectiva é que o Feu evolua cada vez mais. Meu sonho é que ele volte a andar e a falar. Daqui a seis anos o imagino se comunicando e sendo mais independente. A longo prazo, o imagino fazendo faculdade, trabalhando, casando e tendo filhos.
Acredito que meu filho ainda vai dar o testemunho da superação dele e vai servir de inspiração para outras pessoas, assim como fui inspirado pelos casos de sucesso que eu conheci.
No final de 2020, vou lançar o livro "Eu sempre acreditei em você", onde conto a trajetória do Feu desde o acidente até a recuperação. No livro, eu deixo a pergunta: 'Você estaria disposto a lutar incansavelmente para salvar a vida do filho condenado pela medicina?'. Estou disposto, e com crença e persistência, acredito na reversão da lesão cerebral do Feu".
Lesão cerebral e afogamento
1) Existem quantos graus de afogamento?
A OMS (Organização Mundial da Saúde) define afogamento como dificuldade de respirar em decorrência de submersão/imersão em meio líquido. Existem seis graus de afogamento, com base na apresentação clínica do paciente que é resgatado. O grau 1 representa pacientes que apresentam apenas tosse, porém sem dificuldades para respirar. Já o grau 6 é o estágio mais grave, quando ocorre uma parada cardiorrespiratória em decorrência do afogamento. Neste nível, a vítima normalmente está inconsciente, sem pulsos palpáveis e precisa ser urgentemente reanimada.
2) O que acontece numa lesão cerebral por afogamento?
O nosso cérebro é altamente dependente de glicose e oxigênio para o funcionamento dos neurônios. Em casos de afogamento, ocorre uma redução do aporte de oxigênio na corrente sanguínea, em virtude do líquido que preenche os pulmões e impede que o oxigênio alcance o sangue. Como consequência, o cérebro para de receber oxigênio e o paciente pode evoluir para um quadro que a medicina chama de encefalopatia hipóxica (lesão cerebral decorrente da falta de oxigênio).
3) Uma lesão cerebral por afogamento é reversível?
O grau de sofrimento cerebral do paciente é proporcional ao tempo em que o cérebro fica sem receber oxigênio. Por isso é fundamental o pronto-atendimento e a reanimação para diminuir o risco de dano cerebral. Em pessoas que ficam muito tempo sem oxigenação podem ocorrer danos irreversíveis porque certos grupos de neurônios param de funcionar.
De uma maneira geral, caso o paciente seja prontamente atendido, pode ficar sem nenhum tipo de sequela. Caso ele não seja e sofra parada cardíaca prolongada, podem ocorrer danos cerebrais graves (estado vegetativo persistente) ou mesmo a morte encefálica.
Em resumo, o prognóstico depende do tempo que o cérebro ficou sem receber oxigenação, bem como da idade e condições prévias de saúde do paciente. O cérebro de crianças e adolescentes têm mais reserva funcional e alguns neurônios podem se adaptar para assumir as funções de outras áreas que foram prejudicadas pela falta de oxigenação.
Áreas do cérebro que não tenham sofrido tanto pela hipóxia (falta de oxigênio) podem trabalhar para compensar a perda de função dos neurônios que foram prejudicados. Esse mecanismo de adaptação e compensação é conhecido como neuroplasticidade.
As atividades das equipes de reabilitação (fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional) tentam estimular esse mecanismo para que o paciente alcance o melhor objetivo possível, que é a recuperação das funções motoras e cognitivas.
É possível reverter uma lesão cerebral desde que o paciente seja rapidamente atendido e reanimado. Esse conceito se aplica a vítimas de parada cardíaca, afogamento, traumatismo craniano, AVC (acidente vascular cerebral), dentre outros problemas neurológicos. Após o atendimento na fase aguda, o paciente normalmente precisa receber um importante trabalho de reabilitação para minimizar as sequelas.
Fonte: Mateus Trindade, neurologista do Hospital Sírio-Libanês (SP).
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