Método que levou Nobel de Química poderá tratar anemia falciforme
O avanço científico que resultou no Prêmio Nobel de Química de 2020 poderá ajudar a salvar vidas no Brasil. Utilizando a mesma técnica criada pelas cientistas Emmanuelle Charpentier e Jennifer Doudna - as laureadas neste ano -, pesquisadores do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein (IIEPAE) estão desenvolvendo um tratamento que pode oferecer uma alternativa para cura de doenças hematológicas, como a anemia falciforme, condição hereditária que atinge um a cada mil recém-nascidos no Brasil.
A doença decorre de uma mutação no gene responsável pela síntese de hemoglobina, proteína que transporta o oxigênio pelo corpo. A alteração resulta na produção de uma forma anormal de hemoglobina (hemoglobina S). A alta concentração desta proteína deforma as hemácias (ou glóbulos vermelhos), as células sanguíneas que a carregam.
Na ausência da mutação, as hemácias têm formato de disco, são flexíveis e mais espessas nas extremidades. Elas apresentam essa conformação para que alcancem todos os vasos sanguíneos, assegurando a oxigenação dos tecidos mesmo nas extremidades do corpo, onde estão os vasos de menor calibre. Porém, diante da modificação da hemoglobina provocada pela alteração genética, as hemácias perdem a forma de disco e a resistência: ganham o formato de foice e rompem-se facilmente.
Os efeitos são sistêmicos. As hemácias não chegam onde deveriam, deixando os tecidos sem oxigenação. Além disso, a chance de formação de coágulos sobe. O paciente com anemia falciforme sofre com crises de dores derivadas do entupimento dos vasos e consequente falta de oxigenação dos órgãos e ainda apresenta maior suscetibilidade para infecções e morte precoce.
O estudo do IIEPAE é um projeto do Proadi-SUS - Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde, do Ministério da Saúde - e está na fase inicial de testes (in vitro). O objetivo é corrigir a alteração genética que determina a fabricação da hemoglobina S. Aqui entra o método que rendeu à duas mulheres, pela primeira vez, o Prêmio Nobel de Química. O CRISPR-Cas9 é uma ferramenta capaz de cortar o pedaço específico do gene que contém o erro, permitindo sua substituição pelo trecho correto, criado em laboratório. É como se fosse uma tesoura (e uma agulha e linha ao mesmo tempo).
Por isso, o método é visto hoje como um dos mais promissores para o tratamento e a cura de doenças genéticas (causadas por alterações nas combinações das bases químicas que formam o DNA).
Atualmente, a utilização do recurso está ainda no campo experimental, a exemplo da pesquisa conduzida no Einstein. O foco dos estudos são enfermidades derivadas de mutações genéticas únicas, mais fáceis de serem corrigidas, e que tenham material de coleta acessíveis. Por essa razão, doenças hematológicas de origem genética estão no topo da lista.
No caso dessas enfermidades, o que os cientistas fazem, primeiro, é coletar do paciente amostras de células-tronco que se especializam em células do sangue. Células-tronco são como células indiferenciadas que podem se desenvolver em muitos tipos celulares diferentes e, por isso, têm sido bastante usadas na medicina regenerativa. Células-tronco que resultam em células hematológicas são extraídas da medula óssea, responsável pela fabricação de células sanguíneas. A medula óssea é o que se vê no interior dos ossos.
Depois de isoladas, as células-tronco do paciente terão seu DNA modificado para que, após serem reinfundidas, gerem hemácias sem defeito. Afinal, elas não carregam mais erro genético e, uma vez dentro do organismo, dão origem às células sanguíneas perfeitas. Nesse processo, o CRISPR-Cas 9 entra na fase de correção do gene, cortando a sequência genética errada. A combinação correta das bases que formam o DNA no trecho específico é feita em laboratório e colocada no ponto do DNA onde estava o pedaço com a sequência defeituosa.
As células-tronco com o gene redesenhado serão infundidas no paciente depois que as células sanguíneas defeituosas produzidas por seu organismo forem destruídas. Basicamente, fecha-se a fábrica de células hematológicas imperfeitas e coloca-se, em seu lugar, um maquinário completamente novo que produzirá peças sem defeitos. Dessa forma, chega-se à cura da enfermidade.
Hoje, a única possibilidade de cura da anemia falciforme é o transplante de medula óssea. O objetivo é o mesmo que o da terapia gênica: trocar a fábrica de peças incorretas por outra, novinha. A medula do paciente é destruída e substituída por células sem defeito extraídas de outra pessoa. No entanto, o recurso é restrito a casos em que o doador seja 100% compatível. "Este é um fator limitante. Há muita dificuldade para encontrar um doador", afirma Karina Griesi, especialista em genética humana e integrante do time de pesquisa do IIEPAE.
Os ensaios são feitos em conjunto com cientistas da Universidade Stanford, nos Estados Unidos, pioneira no estudo do método CRISPR-Cas9. A instituição ajuda os brasileiros por meio da troca experiências e transferência de tecnologia. Os pesquisadores do Einstein conseguiram corrigir o defeito genético e se preparam para a realização dos testes em animais. Os resultados animam o grupo. "Em alguns pontos, eles são até melhores do que o esperado", acrescenta Karina.
A última etapa será o teste clínico (feitos em pacientes). Ela terá colaboração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, que irá auxiliar na prospecção de candidatos e aplicação dos testes. "O Brasil é um dos países com maior incidência de doenças falciformes do mundo. Ao trazer a técnica para cá, podemos ter uma abordagem local, focando na realidade e nas necessidades da população", afirma a biomédica Priscila Keiko, da equipe de pesquisa. O trabalho deverá ser concluído dentro de três anos.
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